segunda-feira, 31 de maio de 2010

caem berlindes pela calçada


fotografia de Joana Campos retirada do site "Olhares"


caem berlindes pela calçada.

nada se sente de natural. não passam carros.
um silêncio de avestruz em intervalos de ruído.
de berlindes. multiplicados de vários sons.
sons de vidro. vidros. transparentes. de berlindes.

caem berlindes pela calçada.

no céu um motor em chamas. chamas. amarelas.
a fuselagem de cartão separa-se. um ovo descosido.
passageiros revisitam interiores humanos. histórias.
acertam as dízimas de costas direitas.
alguns falam mais alto.
as asas partem como capas de açúcar de jesuítas.
em mil bocados. há rezas de bíblia sagrada.

caem berlindes pela calçada.

o comboio partiu às dezanove de Berlim
a escarpa cedeu de muitas águas. caíram pedras
a leste da linha federal.
a garganta metálica dos carris esfuma o trinco
fecha as rodas. rotações paradas. os murmúrios.
passageiros escutam, esperam, murmuram
a ausência de um estrondo. alguns falam mais alto.
não rebenta o balão de oxigénio. os pulmões
cheios de ar que estanca. pára a pesada lata.
um susto. apenas um susto. aguarda-se.
aguarda-se de costas apertadas nos bancos.
bancos de napa. bancos verdes de napa.
faz-se escuro. o gerador acende luzes
e é noite. noite escura. depois a madrugada.

caem berlindes pela calçada.

não há só desertos no Iraque.
poços de petróleo insonorizados.
em tempos houve bunkers como retábulos
retábulos de uma ira. uma ira atómica.
o bunker dos fracassos cala a voz das ruinas.
a voz dos antepassados. voz de mortos.
à voz dos mortos juntam-se ainda mais mortos
de mercados , escolas, hospícios – os inocentes
de mãos quedas e corpos ainda moles
nos artifícios do fogo. fogo que sai de dentro.
na glória do espírito. do sacrifício. do sacrifício
santo e inútil. injusto e energúmeno.
um golfo de golfadas. golfadas de rios. intifada.

caem berlindes pela calçada.

não é natural o estado branco.
no interior próximo de uma casa de vidros duplos
estabelece-se um código de tempo parado.
o descanso. batem as portas e as portadas
que encerram a luz por dentro. folheia-se livros.
algumas páginas. apenas. apenas algumas páginas.
não se descobre a invasão branca. de fumo.
de fumo no silêncio de pratas e cristais reluzentes.
o estado branco envolve. retira a cor das casas.
expande e invade. sem carros como um corpo grande.
grande de branco. sem nada. para além dos ruídos.
ruídos de vidro. berlindes. que caem. caem.
longe. cada vez mais longe. em intervalos. pela calçada.
um ruído cego. mais longe. mais longe.
a rua inclinada –

caem berlindes pela calçada.

pecados espalham-se de muitas células.
a humanidade perde-se até ao mar.
há crianças de rosto pequeno no tamanho grande
de olhos. olhos que falam. imploram. a fome.
a indiferente insanidade de tantos. de tantos.
muitos discursos de abjectos oráculos.
o egoísmo auto-abençoado. reza-se por milagres.
o incómodo de ninguém acreditar. histórias.
mente-se demais. morre-se demais. tanto.
a atmosfera branca cresce numa névoa de inquérito.
multiplica-se. multiplica-se. um espectáculo de fantasmas.
cresce na imunidade de glóbulos. como um exército
um exército que trata. que quer tratar. invade.
é noite. espalham-se berlindes. por todo o lado.
o sono é um sonho acordado. a lua está acordada.
funde-se na nuvem branca. o globo engloba.
é preciso obstruir a indignidade –

caem berlindes pela calçada -

domingo, 30 de maio de 2010

Musgo que dá Vida

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Foram dar banho a Patrícia (1) , mesmo assim não descobriram o seu sexo, desinfectam os seus eczemas, cortaram-lhe o cabelo. Puseram-lhe uma fita azul no cabelo curto, limpara as crostas de sangue nas curvas das orelhas, subia um bocado pelas fontes, a febre de Ana, anestesiada pelos calmantes. Fumou um cigarro no jardim do Hospital Psiquiátrico. Ficou sentada muito tempo Num banco de mármore, à sombra de um carvalho.

Não-lhe descobriram o sexo outras enfermeiras: Mas era Patricia, um ser humano múltiplo: Todos nós – No fundo de um lago dois sósias jogavam pólo aquático - estavam sempre empatados. O jogo demorou muito tempo; Patrícia disse que tinha um lago na cabeça. Apagou o cigarro que o médico calcou.


A música é vertical, não se vê mas é no entanto táctil e a maior conquista da Ciência Física ao serviço da Alma: O jogo continuava empatado, dentro da cabeça humana; com duas toucas roxas, o mesmo homem de sexo indefinido jogava contra si próprio e viva num empate do Fundo.
Gostava de ser uma mulher:


Foram dar banho à Patrícia e não lhe descobriram o sexo. Cronos cortou os testículos ao seu pai Úrano e atirou os testículos ensanguentado para o meio do mar. O sangue do sexo no contacto com o sal do mar, gerou uma espuma, pelo sémen de um titã do céu fazer humor com a terra. E da espuma, julga-se que no Atlântico formou-se uma mulher que emergiu: Patrícia foi criada da espuma, Afrodite foi criada da espuma: E Cronos passou a passear pelo lago. E a Patrícia nunca falava do tempo. Um relógio de alta precisão japonês: Era do seu pai: Patrícia meteu-o entre as mamas – O relógio de prata fria entre as mamas: E Cronos mergulhou no lago e ficou a observar os dois jogadores que eram o mesmo, com duas toucas diferentes: às roxas.



*


Do casamento com Afrodite e Hermes, seu filho, nasceu uma criança de sexo indefinido: Patrícia – A hermafrodita que esquece. E nisto vejo a cidade de cima, vejo sempre a cidade de cima e sei onde eles estão: todos os filhos do sangue de Úrano: O planeta era hermafrodita e os pólos vão se unir: Noite e dia, sono e vigília, realidade e ficção, morte e vida, sonho e racionalidade, homem e mulher; espírito e carne (nunca pensei que o espírito fosse assim tão Carnal). A Fusão será única - a Patrícia vai mergulhar dentro do mesmo lago e sair para a rua para beber.

O planeta não pára: o ciclo não se fecha e renova e isso prova-o o coração de Patrícia a bater no peito: coordenado com o batimento cardíaco do seu coração, com o relógio frio entre as mamas

E Cronos passeia-se nas margens, com os pés no musgo, a fazer o tempo avançar dentro de Patrícia: Só há tempo se houver movimento de um ser. E A deslocação de um ser provoca da deslocação no espaço: na boca, na terra –Patrícia riu-se (como se deslocasse as margens de todos os rios sem dar conta: um riso contagiante. Caminhámos um bocado pelos jardins.

Aparece a Memória, a musa mais percersa, no seu bikini vermelho: E Cronos fixa excitado, completamente excitado, e para controlar a ansiedade e diminuir a tensão ordena aos deuses que hajam erupções em vulcões de todo o mundo: para acalmar a libido, os vulcões vêem-se em chamas por todos os cantos, todas as ilhas gregas, toda a Ásia Menor, toda a futura América Latina: Mas a memória é atraente e tudo quer. E Cronos não consegue controlar a erecção, e sai-lhe líquido pré—seminal como o de algumas flores gordurosas. E a Cronos só apetece fazer amor com tudo, fazem amor com tudo e consigo próprio, possuía a memória nas margens frescas do lago de Patrícia. E Cronos puxa a memória e dá-lhe um beijo no pescoço e depois no cabelo; a memória não se vira: Cronos não consegue acalmar a libido e quer possuir a memória de todos os homens, e comprar uma casa perto do lago de Patrícia, e ter os olhos magnéticos que tudo bebem, todas as memórias líquidas (as de todos) e mergulhar no fundo do lago.

E a memória que tudo Absorve compulsivamente chupa de baixo de água o sexo de Cronos, e os vulcões continuam-se a vir , aliviando-se a si e ao planeta: A memória chupa, e o sexo incha de prazer, o farol evangelista dá o sinal, os vulcões param, e Cronos vem-se dentro da boca da memória, e ela que tudo engole freneticamente, absorve algum do seu sémen e outro cospe na água esverdeado: os dois sósias espiam, E A mancha que bóia é o esquecimento e a anestesia. E os sósias vêm cá cima cima como dois peixes famintos e engolem o esperma esverdeado e adormecem abraçados no fundo do lago; Patrícia acende outro cigarro. A Memória volta a aparecer com o seu bikini, e repete-se o sexo oral subaquático, dos quais os dois homens que são o mesmo se anestesiam: e nos quais ficam viciados. E quando a Memória não vem ou vem mais tarde, os sósias ficam de ressaca, e tremem no fundo do lago.

e fazem amor por séculos na água quente do lago de Patrícia, enquanto os dois sósias espreitam no fundo: E o tempo, (toda a motivação só por o ser, é já movimento e acção)

Patrícia faz amor com a música horizontal (de onde vêm o prazer, a vida, a morte)
Patrícia faz amor com a vida horizontal e vem-se sozinha, no seu sexo indefinido, um orgasmo para cima do bolo (Tinha sido fundada por um Ministério, uma Associação que tivesse subsídios para se juntarem e comerem o bolo da Ana, com o leite branco e espesso de um orgasmo de dois sexos. E essa associação reunia-se num palácio com vista para o lago, grandes varandas, com cinzeiros grandes e sumos de laranjas e rissóis: E viam a Ana a afazer amor com tudo o que é horizontal, a Vida, a Música.

Conheci a Ana, levavalhe leite. Tentei que ela fosse comigo ao cabeleireiro, ao médico. Os seus eczemas preocupavam-me. Depois do leite bebia cerveja e vinho com outro sem abrigo ao lado Pingo Doce. Levei-a comigo mais tarde para o Hospital Psiquiátrico: Ela falou-me de um lago. Onde dois sósias jogavam Pólo-Aquático e estavam empatados e *as vezes lutavam e outras vezes faziam sexo dentro das balizasou no meio do campo.. Falou-me que o erro é a única forma de salvação e contou-me a origem do nome sexo e do nome sector. Os seus olhos pareciam de um magnetismo de âmbar, luminoso, um pôr do sol dentro da cabeça a iluminar de dourado o lago: Os seus olhos eram de cor nenhuma: mas extremamente Vitais. Do outro lado do lago outros olhos magnéticos, a chuparem a vida toda para si. Como se pelos olhos lhes entrasse todo o Universo.

Zeus criuou um único ser e colocou-o no planeta, um ser de sexo indefinido; Zeus achou-o feio e tosco e a precisar de companhia. Mandou que o fossem buscar e dividiu em dois; sectarizando, partindo, tornando um ser em dois. O homem ees mulher, cabia-lhes agora a eles serem deuses e eliminar essa secção e criarem eles próprios como deuses. E aproximarem-se na forma e em tudo numa fusão contínua. Patrícia levantou-se a sombra começava a desaparecer e fomos para outro banco, ofereci-lhe um cigarro à e ela continuou.: Riu-se “ A sombra dos lírios masturba a sombra dos homens”

Vivemos um século febril – Disse-me –Já leu Julian Artl? – Respondi que não – O nosso século precisa que a tecnologia se alie ao mais profundo da alma – A tecnologia ser só alma, ( o seu maior instrumento): Preciso de um abraço – Disse-me. Abraçámo-nos durante muito tempo. Eram por volta das seis da tarde.

Precisamos de mergulhar no mais fundo do humano: os seus olhos magnéticos, reflectiam o sol: Precisamos ser todos os outros, aprender com todos, mergulhar dentro dlees, nos seus olhos nas suas nucas, nadar dentro de cada ser humano, Lê-lo e ser também ele: Como se fosse morfina, o sémen de Cronos ( o que tudo faz mover) ou outra poderosa anestesia – o contrário de sentir que a memória cuspia, da cor na morfina para a água quente que e, que logo atraía o mesmo homem, que em dois corpos diferentes, nadava à superfície para com as suas duas para anestesia: Como o sémen liberto do tempo, fosse metadona: O esquecimento

Ficamos a falar durante mais meia hora e tive de regressar ao consultório.

(1) A mesma referida em "Delírio Húngaro"


Nuno Brito

Notícias do Inferno





No inferno, reencarnamos a cada minuto que passa
numa nova comédia viva. E isso cansa, inevitavelmente, cansa
o teatro anatómico do tempo, as estruturas tortuosas
do pensamento racional a que nos tinhamos habituado em vida
e os costureiros da má fé são dos únicos
que não pagam o tributo do zapping genesíaco
para trabalharem dia e noite nas oficinas da inconformidade geral.
Tudo isto pode ser ainda um pouco mais severo
se tivermos em conta que o diabo nunca existiu.

O inferno pode inclusive ferir
a insensibilidade dos espectadores
mais distraídos com questões pirotécnicas
ou com as sessões permanentes de sexo ao vivo
entre os seus conflitos mais nítidos
e toda a organização do festival.

Neste sentido, o inferno não só são os outros,
mas os outros que já não são eles próprios
e eu mesmo quando deixo de ser eu mesmo,
fora dos sessenta segundos que me justificam
e em que ainda é possível assegurar a analogia.

sábado, 29 de maio de 2010

Inquérito


Cartier Bresson "Londres"

Pergunta às árvores da rua
que notícia têm desse dia
filtrado em betume da noite;
se por acaso pressentiram
nas aragens conversadeiras,
ágil correio do universo,
um calar mais informativo
que toda grave confissão.

Pergunta aos pássaros, cativos
do sol e do espaço, que viram
ou bicaram de mais estranho,
seja na pele das estradas
seja entre volumes suspensos
nas prateleiras do ar, ou mesmo
sobre a palma da mão de velhos
profissionais de solidão.

Pergunta às coisas, impregnadas
de sono que precede a vida
e a consuma, sem que a vigília
intermédia as liberte e faça
conhecedoras de si mesmas,
que prisma, que diamante fluido
concentra mil fogos humanos
onde era ruga e cinza e não.

Pergunta aos hortos que segredo
de clepsidra, areia e carocha
se foi desenrolando, lento,
no calado rumo do infante
a divagar por entre símbolos
de símbolos outros, primeiros,
e tão acessíveis aos pobres
como a breve casca do pão.

Pergunta ao que, não sendo, resta
perfilado à porta do tempo,
aguardando vez de possível;
pergunta ao vago, sem propósito
de captar maiores certezas
além da vaporosa calma
que uma presença imaginária
dá aos quartos do coração.

A ti mesmo, nada perguntes.

Carlos Drummond de Andrade, in 'A Vida Passada a Limpo'

sexta-feira, 28 de maio de 2010

sublinhar os livros


Vittorio Corcos "Sonhos" 1896


sublinhar os livros ou tomar notas no caderno ao lado
quando as palavras surgem como aves
e as frases voam penduradas nas copas das árvores:
a interior psicanálise.

viajar no TGV da pendular reflexão
colocar vírgulas e vírgulas e vírgulas.
o ponto final é estação bloqueada igual a ordem.
ordem quando a desordem paragem sem forma.
de livros derretem-se estradas por fora dos traços;
lâminas de sabres elfos de batalhas pedras de água.
beneficia-se as notícias das notícias. reinventa-se
genocídios transitórios. máximos sacrifícios
de verdades ou falsas verdades.
edifica-se a definição imprevisível de lugares fantásticos;
argentinos árabes.

estende-se os pulsos por três voltas apertadas
metáforas vivas metáforas mortas metáforas tortas
nos casulos da metamorfose.

os livros como marcas e sinais que ardem;
a alma um labirinto de origem indeterminada
como pássaro de fogo em atmosfera clara
de mármore branco
onde as nuvens são sólidas e por vezes se partem–

os livros não são alimento mas constroem evanescência
ausência de limites os sonhos como ciência -

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Cerejas do fundo*

Uma rapariga comia cerejas, descalça na praia, e as ondas vinham e levavam os caroços. E no fundo do mar os caroços davam cerejeiras. E no cimo, com os pés molhados e salgados a rapariga comia cerejas numa praia perto de Nagasaky. Um cogumelo de fogo e fumo formou-se no ar e o mar contraiu-se com as cerejeiras no fundo. E a sombra da rapariga continuou a comer a sombra das cerejas: E as sombras dos pára-quedistas descem, fluorescentes no ritmo sobre a tarde roxa: e a sombra roxa recheia de susto os pescadores, todos eles com ametistas nos bolsos.

Mais tarde Mina cantaria Nagasaky Blues.

Nuno Brito

Os que levam

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De vez em quando uma língua de mármore entra no Aleixo, por entre as nuvens, e leva uma criança: Se a língua quiser leva duas crianças, se lhe der vontade a língua tira três ou quatro grupos de crianças aos seus pais e desaparece. Os pais vão à Segurança Social e a língua não devolve as crianças: E os pais pedem à língua uma segunda oportunidade; que vão tratar da vida, ter rendimentos: A língua recolhe-se para dentro do edifício burocrata e volta sem trazer nada.



Nuno Brito

As Paliças

Estava sentado numa taberna perto dos Clérigos, quando me chamou a atenção a conversa que dois homens tinham à porta enquanto fumavam: ÓH Paliça! – A Paliça que vi pelo vidro cheio de publicidade à Sumol, fez-lhes um sinal obsceno e continuou.

Um deles disse: Esta, se lhe pagarmos uma bola de Berlim ela chupa-nos durante uma hora. A desdentada anda cheia de fome. Parece uma cadela: – Os outros riram-se. A paliça continuou com o cabelo curto e branco, cheia de eczemas na cara.


Mais tarde ao entrar em casa, vi descer pela rua a Paliça, meti conversa com ela; vinha com uma saca com um frasco de metadona e alguns pêssegoa, explicou-me que o seu filho lhe pediu para deixar em casa o frasco, e comia um pão ressesso, que os poucos e frágeis dentes da Paliça iam trincando como um ratinho, mastigando muito tempo para os amolecer com saliva.

A Paliça pediu-me um euro – Eu dei um euro à Paliça e ela deu-me um beijo com a cara cheia de batom de uma loja dos trezentos. Convidou-me a ir a casa dela. Tinha muito gosto que conhecesse asua casa. Falou-me do filho de uma forma vaga. Que estava na prisão a cumprir sete anos, e amanhã ia a Custóisas e lhe ia levar Pêssegos e cerejas e uma caixa de bombons, pediu-me mais um euro, enquanto subíamos. Percebi que a metadona não era para o filho. A Paliça tinha-se habituado a comprar no cimo da rua a um vizinho. Porque o filho estava a ser perseguido por dívidas e não podia ir ao CAT e um dos vizinhos, antigo frequentador do CAT que voltava a recair na heroína, ia todos os dias ao centro para a comprar, e fazia o tráfico dos frascos. A Paliça ia comprar para o filho quando ele estava ainda em casa. Depois ele foi apanhado a vender e foi para Custóias; e a Paliça ia comprar metadona para si. Traficava o seu corpo, e isto não era violento nem atroz, era simplesmente natural; E pensei que nenhum aforismo de Cioran se podia adaptar à vida da Paliça e que nenhum outro aforismo produzido pela humanidade se podia jamais adaptar a uma situação vivida pelo homem. Comemos pêssegos na cozinha. A Paliça parecia-me muito com uma figura que tinha visto no museu da cera em Fátima, quando era criança: uma figura anónima, que num conjunto de outras estátuas tapavam com os seus braços de cera, a luz que irradiava do sol e da aparição mariana. Cera incrédula que se convertia ao milagre. A Paliça disse para eu descontrair no sofá. Imaginei que não queria que a Paliça me chupasse, isso seria sexo oral feito entre duas estátuas de cera, isso assustou-me: Escultura que soube anos mais tarde, tinha sido feita por um artista plástico dinamarquês. Falei-lhe que era escritor e a Paliça, tal como Julian Artl e DJ Kant aconselhou-me a não escrever. Fui comprar fruta e bombons para a Paliça levar ao filho e fui para São Bento apanhar um comboio aleatório. A viagem que comprei acabava perto. Regressei várias vezes ao Porto e visitava com frequência a casa da Paliça, víamos no sofá os programas da manhã, os concursos da tarde, as telenovelas da noite, e outra vez os concursos que ficavam entre as telenovelas e os concursos. A Paliça tinha o comando.


Nuno Brito

fogo nas palavras


Matisse


se deixasse cair o corpo como página
de um livro, um romance, uma fábula
de centenas de palavras
ler-me-ias com cuidado?

nas mãos de um fogão de sala
no fumo de um braço de acácia
despindo cinzas depois de brasas
sem o corpo por imagem
ler-me-ias com cuidado?

no estalar dos dedos
ressoando os cantos da sala
na distância de uma grande estrada
na proximidade de um fogo nas palavras
de verona, de varandas, sem venenos
ler-me-ias como página?

na moldura ausente de um quadro
onde a árvore, o canto de ave reflectido
no grande espelho de um lago de metáforas
e lábios, lábios de asas
voando vassalos, voando vassalos
ler-me-ias como página?

como raíz maior que atravessa o planeta
toda a terra, de uma seiva que não seca
sublimando sementes ebulindo sentimentos
ler-me-ias como página? com cuidado?
sem o corpo como imagem?
se -

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Este poema é absolutamente desnecessário


Joana Vasconcelos

Este poema é absolutamente desnecessário
pela simples razão de que poderia nunca ser escrito
e ninguém sentiria a sua falta
Esta é a sua liberdade negativa a sua vacuidade dinâmica
e o movimento da sua abolição
a partir do seu vazio inicial
Mas qual é a sua matéria qual o seu horizonte?
Traçará ele uma linha em torno da sua nulidade
e fechar-se-á como uma concha de cabelos ou como um
[útero do nada?
Ou será a possibilidade extrema de uma presença inesperada
que surgiria quando chegasse a essa fronteira branca
que já não separaria o ser do nada e no seu esplendor absoluto
revelaria a integridade do ser antes de todas as imagens
a sua violência inaugural a sua volúvel gestação?



António Ramos Rosa
in Deambulações Oblíquas

Kant

Vieram de longe para ver Santa Teresa de Ávila a espumar petróleo, óleo sobre tela, de grandes dimensões pintado pelo DJ Kant, o mesmo que Julian Artl considerava o único crítico literário digno do nosso século febril: O mesmo que era incapaz de ler um livro porque os seus dedos lhe tremiam e porque estava sempre com um cigarro na mão (não podia folhear). Contavam-lhe histórias. Da exposição fazia parte também um conjunto de retábulos que Kant pintou para a sua primeira exposição nos arredores de Berlim: “Uma Sagrada Família com o reactor de Chernobyl ao fundo”, ao lado de Uma imagem de Cristo e São João Baptista na Segurança Social”, E uma de “Soror Inês de La Cruz a ser possuída analmente por um cavalo”. O último painel era uma Última Ceia, num jardim, os apóstolos sentados por baixo dos guarda-sóis comiam lírios, que estavam nos pratos e nas travessas: Pedro comia um lírio, Simão comia um lírio, Judas e Paulo também comiam lírios e Jesus descascava a parte branca enquanto trincava a parte laranja, de uma forma que alguns críticos acharam obscena e outros críticos acharam extremamente sensual. A exposição foi bem acolhida pelas revistas de crítica de Arte e ao contrário do que se esperava, passou praticamente desatenta às críticas das Associações católicas. O prior de uma Igreja de Roma comprou os retábulos, para possuir pinturas sagradas de novos valores emergentes da pintura contemporânea.

Artl era um dos convidados para a exposição, escreveu-me depois de Berlim, falando de cada um dos quadros e da admiração que nutria por Kant. Disse-me que Kant o aconselhou a nunca mais escrever, enquanto não conhecesse a fundo a natureza humana. Artl disse-me que ia seguir o conselho: Perguntou-me se seria possível enviar-me por mail o catálogo com as imagens de Kant, e se havia alguma hipótese das imagens serem scanizadas em folha de gelatina. Eu disse-lhe que o cão já estava morto, ou quase morto, porque há muito tempo que não se levantava do tapete, tinha apenas espasmos de vez em quando, nos primeiros dias: Agora nem isso:

Está morto com estômago recheado com os seus últimos contos.


Nuno Brito

Três contos sobre Lírios



“A Literatura é um pacto com o absurdo…”

Rober Diaz


A cultura é o que fica quando tudo o resto é esquecido: Contra esta premissa Julian Artl cozinhou as doze folhas de gelatina onde tinha três dos seus últimos contos. O cão andava na cozinha. Vi no seu prato de comida misturada com um pedaço de ração uma folha de gelatina crua que o cão se tinha recusado a comer; estava endurecida, e dizia a marcador: A cultura é tudo o que deve ser esquecido: Julian foi ao prato do cão e pôs esta folha na panela onde já coziam outras, juntou dois xanax esmigalhados e açúcar.

Depois da gelatina estar pronta o cão comeu-a e ficou a dormir. Ele sentou-se na sala comigo e contou-me a sinopse dos três contos: um deles passava-se na Antiga Grécia e uma rapariga com uma fita azul na cabeça “masturbava um lírio” e depois disse: o lírio ficou viciado nisso, e esperava a rapariga, que umas vezes aparecia e outras vezes não; e o lírio começou a murchar: o segundo tratava de um escritor que tinha ganho uma bolsa de criação literária na Islândia e conseguiu, junto do consulado, autorização para visitar o vulcão em erupção, apresentando um projecto de criação inovador que tinha permitido ao júri pressionar as autoridades civis para o autorizarem como o único membro externo à protecção civil e aos bombeiros a visitar a ilha. Foi de barco e conseguiu junto dos comandantes autorização para subir ao vulcão com o seu último romance e um lírio; atirou o lírio para dentro do vulcão, depois atirou o seu último romance, em fases de provas e exemplar único a aguardar publicação – Depois atirou-se a ele próprio para dentro do vulcão. O terceiro conto tratava de uma rapariga que em 1945 vivia perto de uma aldeia de Nagasaki e tinha por costume masturbar os lírios: um dia saiu de casa e viu um cogumelo de fogo a elevar-se no ar, e viu as sombras espalharem-se pelos campos e no lugar dos lírios havia a sombra dos lírios: Ela meteu uma fita verde no cabelo, e tirou as cuecas por baixo das saias. Sentou-se no chão e esperou. O quarto conto era sobre um homossexual não assumido que entrou numa sex-shop de Roma, perto da estação de Octaviano para comprar um dildo. Tocou à campainha e a porta abriu-se automaticamente; Desceu uma escada onde estava um indiano ao balcão a falar com outro indiano que via num monitor extractos de um filme porno, alguns clientes estavam a ver os dvd’s. Dirigiu-se à secção dos dildos, escolheu um e foi pagar. O indiano olhou para ele de forma perversa; começou a persegui-lo nos dias seguintes. Não me contou o fim da história (que o cão tinha comido – folhas de gelatina gravadas com marcador vermelho cozidas com xanax e rum) O cão dormia, com os quatro contos dentro de si, e isso não lhe provocava qualquer reacção: apenas uma dependência pela medicação e o álcool que o fazia seguir com atenção todos os gestos de Artl quando este escrevia ou estava na cozinha.

Tudo isto Julian Artl contava-me enquanto fumava um cigarro e dizia que em pouco tempo ia para Berlim, onde o esperava Kant, o DJ Kant, eu disse que não conhecia o DJ Kant, ele disse-me que era um homem de uma inteligência fora do comum que nunca tinha lido um livro no mundo mas que era o único crítico capaz em todo este início de século. Disse que não lhe ia levar os contos, porque os contos tinham sido comidos pelo cão que continuava a dormir. Mas que queria falar com DJ Kant sobre literatura: Fui levá-lo dois dias depois ao aeroporto.

Nuno Brito

Linha

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Foi um sósia negro que atendeu do outro lado da linha: Já tinha ouvido falar dos sósias extra-continentais que viviam com feições e traços expressivos iguais a homens de outros continentes, apenas com as naturais distinções de raça (palavra obscura). No Dicionário Britânico Universal havia uma entrada para este tipo de sósias, que tem no fim uma extensa bibliografia e lista de célebres sósias inter-continentais.
Do outro lado da linha ouviu a sua própria voz, a penas com um sotaque mais carregado do centro de África, um sósia dos PALOP, que rapidamente identificou consigo próprio. Era a linha de apoio ao suicídio, e a pastilha cor de rosa encontrava-se em frente na mesa, ao lado cinzeiro cheio e de um copo de whisky.

Falou ao sósia, da sua vontade de cometer um nascimento oposto, e contou-lhe a sua história de desempregado. De antigo funcionário nos serviços de apoio ao suicídio da Direcção Geral de Saúde – Agora falava com um colega seu, que lhe parecia inexperiente e que era ele próprio numa versão negra.

Conteve as lágrimas ao falar do último relacionamento; da queda no álcool, do tempo na faculdade de Psicologia, dos conturbados anos do Mestrado. O negro não dizia nada: Sendo ele próprio que falava do outro lado da linha, sabia já a história completa e não deu nenhuma espécie de conselho, não aconselhou a psicoterapia, não passou a chamada a outro especialista, não perguntou antecedentes, o médico que o seguia, não mostrou interesse em saber quais os fármacos psiquiátricos que estava a tomar.


O silêncio manteve-se durante muito tempo entre o mesmo homem de um lado e do outro da linha, que se tornava enferrujada, comunicação tornava-se impossível e muito negra; Porque eram a mesma pessoa, inteiradas do mesmo caso clínico, o silêncio prolongou-se – Pegou no copo de whisky e na pastilha cor de rosa, acendeu outro cigarro e ouviu o isqueiro acender-se do outro lado da linha.


Nuno Brito

maio de 99 - a lua descida




levanta o braço de uma boneca bela de porcelana.
penteia imaginárias pestanas de olhos grandes.
torna oblíquo o cabelo lustroso e castanho.
tem uma estrela tatuada na testa.
dobra o joelho e passeia a passadeira
incontornável de vermelho.

maio de noventa e nove. noite. quarta – feira.
na casa de aldeia
desfia-se um terço de água benta, um rosário
contas pretas de novena e brancas de marfim
na origem de moçambique, longínqua.
brilha no canto de uma quina aguda
uma barriga grande de cobre: alambique
dádiva de um tio emigrado na Turquia.

dentro da cabeça de Madalena
apressam-se os fios sobre a boneca
pernas da marionete passam em rodopio
por muitos lugares escondidos
enquanto prossegue a melodia, a rotina.

vem ali o rinoceronte.
naquele lago há um crocodilo.
a zebra é um cavalo de listras.
o elefante sacode uma tromba de gritos.
o urso é amigo.

mãe? se houvesse uma entrada secreta
um nó de tábua que saísse
a minha boneca podia ser Alice.
( a mãe na ladainha)

mãe? se voasse num tapete mágico
até ao minarete arábico de lua descida
podia ser Jasmine.
(riu-se o alambique)

mãe? se tivesse os sapatos de morango
voava eternamente depois da grande ventania
olhava as nuvens de cima
tocava o arco- íris.

dobrava o joelho e passeava a passadeira
incontornável de vermelho.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Sem

Em cada morte há uma ausência eterna
Um vazio irrepreensível, silencioso e cheio
Em cada morte há uma luz que se perde
Um grito que se silencia na carne

Não há sentido na ausência
Não há corpo na memoria física

Olho o corpo frio, sem cor
Já não sei onde estás -

O luto é uma treva transitória
Tatuagem na mente e na pele
Uma luta vã pelo que já foi
Apesar da vida que fica

A saudade permanece
Morta-viva sem (a)braços

Há algo vivo nesta morte ainda viva em mim
Há algo de morte que me impregna os sentidos
Adormecidos de dor

Sentidos sem-abrigo
Sem o teu - abrigo

despir o poema



Salvador Dali "livro-árvore"

despir o poema em intervalos longos
cortar as sílabas, uma a uma, nos dedos de cada verso
e do avesso e não só por cima da mesa onde a folha
o sonho de um rumor que desliza.

despir o poema daquelas palavras que nasceram dos antípodas
clareando, na procura do que deveria ter sido a nudez pura
de Cleópatra e dos papiros, a branquidão de vestes, as letras
na magnitude de hieróglifos nas Pirâmides das paredes do Egipto.

despir o poema no exagero de te querer
como se ali os lábios abrindo o sono
os sons saindo, as roupas caindo
e não ser só o poema mas mais o desejo
de tocar a Génese, alimentar a semente
a terra e a tiara, de diamantes loucos
que serpenteiam nas ondas de um fumo rubro

e um som branco de alaúde -

O pior está para vir




Ajuda a garantir a descontinuidade da espécie.
Usa a paixão em todos os pontos finais
e lava sempre a tuas vírgulas com água e filosofia.
Veste-te ocasionalmente de príncipe.
Pelo menos duas a três vezes por semana
diz a Camila que a amas com frequência
e sentido funesto.
Não uses o W.C. destinado ao pensamento
a não ser que tenha mesmo de ser
e não haja gente viva num raio de uma vida
e 300 milhas para oeste.
Se te apetecer algo para comer
esquece a vizinha da frente
até porque essa já tem um marido
a pilhas e sete gatos para dar de comer
e o vírus da moda e as mucosas tristes.
Volta-te antes para Pessoa ou Baudelaire
dá uma volta por Benedetti, visita Borges
na cegueira de uma biblioteca antiquíssima,
os clássicos fazem-te calar
e tornam a fome mais subjectiva,
comestível até,
como uma lepra lenta e autotélica.
E depois reaparece. Todos desejam alguém
que surja das cinzas.
Mas não prepares uma ressurreição qualquer,
dessas que se compram na iconografia do previsível,
aberta vinte e quatro horas por dia,
entre o espancamento e o cúmulo da reacção.
Faz a vontade do pai e ao país: foge deles.
Mata-os a cada microsegundo com mais decepção,
dedos, dardos e gasolina
mas nunca o bastante
para que eles não se possam mexer,
pelo menos um pouco, da influência para cima.
E deita-te com a literatura toda aos teus pés,
porque entre centro e ausência
o pior está para vir.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Mascarada

…………………………………………………………………………………………



Pensou ir mascarada à festa - Descobriu no espelho da sala que já estava mascarada; não percebeu de quê. Descalçou-se como as outras raparigas de cabelo curto para ir à festa. A cara fugia-lhe para um estranho ângulo, não era bem cara; Observou-se em campo/ contra campo – Não a ela – Mas às outras. Não era cara o que tinha; Descalçou-se e escreveu três poemas em métrica sáfica: “A Expiação de Pizarnik”, “Pathos de Mariana Alcoforado” e “A Tentação de Berlim”. Fez um bolo com muito chantilly para levar à festa. Parecia que voltava a ter cara.

Nessa Noite sonhou que caminhava pelo gelo de um dos pólos, e estava cheia de febre, e era muito grande, anormalmente grande, e os seus pés quentes faziam derreter a neve, e esse degelo criava pequenas lagoas e rios que desciam pela Escandinávia e depois pela Europa toda, e conseguia ver, pelo seu tamanho anormal a Europa toda, os fabricantes de cerveja em Munique, os semeadores de trigo da Sicília, os apostadores da bolsa de Amesterdão: alguns atirando-se de janelas por perderem tudo num mesmo dia. Os pescadores que pescavam no Báltico, os transportadores de sal, os camionistas a entrarem em França e a saírem de França, os leiteiros de todo o continente a levarem as bilhas a casa das pessoas, os guardas de todos os faróis da Europa a ouvirem rádios mal sintonizados, os pastores a percorreram com os seus rebanhos vários trilhos, os paquistaneses a venderem guarda-chuvas e flores em todas as metrópoles da Europa.
E a neve estava um pouco vermelha, como se depois da neve tivessem chovido morangos, e ela calcava a neve e os morangos que no contacto com o seu corpo quente faziam rios vermelhos que desciam das montanhas. Olhava o mar, agora no seu tamanho normal e apareceu uma ninfa com a boca negra de petróleo, vinha do golfo do México onde no seu fundo Neptuno ficava imobilizado, com os músculos presos e cristalizados pelo petróleo gordo. E lembrou-se que o petróleo era antes de o ser, sangue de animais vivos como os dinossauros e de árvores vivas fossilizadas, coisas com vida, que agora davam vida, pensou na revitalização do planeta, e na morte como a grande ficção. A ninfa com a sua língua negra abraçou-a, e deram um linguado que demorou muito tempo, a sua língua estava também negra e o petróleo colou as duas línguas que ficaram presas e entrelaçadas: Mas isso não provocava pânico, era sangue de animais vivos, agora fossilizado, aquilo que permitia agora os carros dos bombeiros apagarem os fogos e fazer os aviões voarem: os dinossauros permitiram o voo aos homens. Isto fez rir as duas. Entraram no mar pensando-se uma única coisa. Escorria-lhes do sexo um leite adocicado enquanto o linguado continuava, e as línguas continuavam entrelaçadas e presas, tal como os braços, os da ninfa gordurosos de petróleo colavam-se aos seus como resina e eram uma só coisa, sentadas de joelhos em frente ao mar, à espera que a maré subisse.


Nuno Brito

alvéolos de infinito


Marc Chagall "o pintor na lua"


a tesoura de folhas afiadas cortou a estrada.
um salto no abismo. alvéolos de infinito .
asas a escoar sonoridades pianíssimas.
a liberdade oca. a proximidade da neblina.
um limbo. um ponto de espírito
desencontra a forma na descida da Lua
atinge a sólida cicatriz no estalar da Terra.

um limbo.
fechou uma concha de gelatina
transparente de morango.
há portas e janelas abertas de madrugada.
um caderno de folhas soltas esvoaça;

pérola brilho risco e palavra -

Perigo de esquecimento global




O mundo está suspenso
por uma mnemónica
exaurida.
Já nenhum mês tem 31 dias
contados pelos nós
das nossas mãos.
Milhões de pessoas
esquecem depressa que vivem
depressa e usam
a abertura absurda do mundo
como despensa e intestino,
abreviaturas quando
se lembram de ti,
uma coroa de flores de sono
que te oferecem enquanto
dormes coberto
de distância e formigas.
Os teus melhores amigos
fazem de ti uma ideia difusa
quando dormem pouco
e vão trabalhar de manhã cedo
com a mesma nódoa de whisky
na camisa que levaram na última vez
em que estiveram juntos
e brincaram às hemorragias.
O tempo é um grande diurético,
já diziam os antigos.
Mas a mulher que amaste há mais de dez anos
e há mais de dez anos amas, sem reservas,
embora se degrade e degrade ao som assumido
e sincrético da mais eficiente fisiologia
todos os dias da tua vida
e se pareça já mais com um escombro do sentido
do que com aquela que deixou a sua imagem pesada
e convexa no camarim da letargia

mesmo essa, precisamente essa,
não te poupa o carnaval das suas réplicas diferidas
cada vez que te aproximas de uma nova possibilidade
de amares outra vez outra viciosa despedida
e assim sucessivamente até ao fim
se é que o fim não estará ele também suspenso
por uma mnemónica com inúmeros problemas
de existir.

domingo, 23 de maio de 2010

PAULO EDUARDO CARVALHO (1965-2010)

PAULO EDUARDO CARVALHO

A perda de Paulo Eduardo Carvalho para a cultura portuguesa e para a cultura do mundo é irreparável. E digo mundo, porque ele era conhecido além-fronteiras pelo saber que detinha sobre as artes do espectáculo, um saber que sempre partilhou com os outros. Alguns de vós hão-de ter visto peças traduzidas por ele, ou encenadas por ele, de Samuel Beckett, de Harold Pinter, de Brian Friel, de Caryl Churchill, de Frank McGuinness, de Martin Crimp… Paulo Eduardo era um professor imensamente dedicado, um tradutor originalíssimo, um investigador de mérito incomparável. Não chegam os adjectivos para descrever este homem do teatro que, tal como o teatro, era composto de mil valências e mil faces boas.

Como Goya, descrito por Jorge de Sena, o Paulo tinha “um coração cheio de fúria e de amor”. Por isso às suas qualidades científicas se somava todo um mundo de partilha de afectos. O seu desaparecimento é de uma violência inaudita. Era a pessoa mais extraordinária que eu conheci e eu tive o privilégio de o ter como o meu amigo mais querido. Preciso de o lembrar aqui.

Ana Luísa Amaral
_______________

PARA O PAULO

Era um dia de Verão, como o de hoje, e nós ali, sentados na minha varanda, falando de um dicionário que a Ana Gabriela e eu então preparávamos. Em cima da mesa, um cinzeiro muito raso. “Precisas de cinzeiros”, reparou o Paulo. E ia sugerindo entradas. Que tínhamos que incluir aquele termo, e que não nos devíamos esquecer daquele outro, ia dizendo. O calor desse dia era bom e, a certa altura, o Paulo acrescentou: “E ‘silêncio’, Ana? Num dicionário feminista, convinha que vocês tivessem uma entrada para ‘silêncio’”. “Tu achas?” – e fiquei a pensar. Depois, perguntei-lhe: “Olha, não queres fazer ‘o silêncio’ comigo?”. Olhámos um para o outro, e o Paulo, a rir, disse-me: “Ó Aninhas, isso dava poema”. Nunca houve no dicionário entrada para ‘silêncio’, mas houve, alguns dias depois, dois cinzeiros, um branco e outro castanho, grandes e protectores, que ele me deu e que nos serviram bem durante muito tempo. Houve ainda, como ele previu, poema, que eu lhe dediquei num livro, mas que, nas muitas leituras de poesia que fizemos juntos, nunca lemos em voz alta. A entrada para silêncio é esta nossa aqui, a da vida.


ALITERANDO SILÊNCIOS: COMPOSIÇÕES

Para o Paulo Eduardo



Não queres fazer o silêncio
comigo?
Sobressalta-se um pouco uma varanda
e acrescenta-se: vento

Por sobressalto: um vaso mal de frente
a estas flores,
ou um cinzeiro de pequeno porte,
ausente de cavalo,
e algum
desequilíbrio nessa mesa

Fazemos o silêncio,
se quiseres,
e assim mantemos tão aliteradas
as primeiras palavras

Está bem assim o vento,
não lhe mexas,
fica-lhe bem a asa sibilante
e ajuda à cinza que se alastra agora,
que transborda de lado na varanda
e desfaz a aridez dessa
roseira

Traz-me um pouco de paz
e ajuda-me a compor
esta paisagem

Vem fazer um silêncio,
porque o resto:
azul de som
– como em sereno
palco

Esquecimento Global




O tempo é um grande diurético.

Um dia Eva sofre o seu primeiro susto
verdadeiro quando acorda condecorada
pela música da hematúria.

A declarada intrusão do tempo no chichi
fazendo-se passar com as credenciais
de um sangue apócrifo
procurado pela polícia
microscópica do sigilo
fê-la readormecer.

Não contou nada do que viu e sentiu a Adão,
que continuava ocupado a contrair a sua sífilis.
E começou a emagrecer.

Eva era uma cidade cheia de fome
fundada no baixo-ventre,
rotundas com circulação temporária
nos dois sentidos
e avenidas amplas e amabilíssimas
onde se podia encontrar artistas,
multidões e arquitectura incandescente.
Mas agora ela tinha o tempo todo contra si.
Por isso, quando chegou aos 40 quilos
e vendo-se enclausurada num corpo
que mantinha apostas cada vez mais
altas e arriscadas com o silêncio
teve a primeira conversa com o marido.

Adão chegava sempre demasiado cansado
e bêbado para a ouvir.
Foram inúmeras as vezes que tentou
ligar ao seu criador, mas o número estava
sempre deserto.

Além de emagrecer, Eva encolhia.
De uma forma, aliás, magistralmente
proporcional e moderna.
Migrava até à nulidade com uma nitidez quase abrasiva
talvez por nostalgia da nudez perdida
algures entre um e outro arquétipo
talvez porque a decepção lhe pagava
um melhor salário pelo seu trabalho imunodeprimido
que era viver.

O enfraquecimento e a nulidade crescentes
colocaram-na primeiro numa cadeira de rodas
depois numa cadeia de acontecimentos reduzidos
mas com grande impacto no futuro da Terra.

Quando não tinha mais do que o tamanho
e o protagonismo de uma bactéria, Eva
descobriu, por si própria, a cura contra o tempo
e pela primeira vez insurgiu-se.
Tinha agora uma verdadeira família
e, nas regiões anaeróbias do desejo,
o regime patriarcal do tempo
praticamente não existe.

Antes de voltar a ser mulher, Eva participou
em muitas festas, colónias e ritos
unicelulares e proibidos.
Depois despediu-se de todos e voltou a si.

Adão não quis acreditar novamente no que via.
Deus tinha o telemóvel desligado
ou com um número não atribuído.
E Eva, cansada de limpar o pó
das roldanas da história
e de beijar as mãos oportunistas
da injustiça
foi procurar a mentira.
Que é como quem diz: voltou a dormir.

Jorge Luis Borges - Entrevista soler serrano 1980 1/9

Um dos raros testemunhos televisivos com um dos maiores mestres da língua espanhola e das letras do mundo inteiro.

sábado, 22 de maio de 2010

Rua João das Regras - número cinco


Gustav Klimt "Castelo sobre a água" 1908

A casa é a harmonia pentagonal,
As estrelas debruçadas à janela,
Dinâmicas cozinham iguarias
Enfeitadas com flores de hortelã.

A casa é reunião de treze comensais
– A força do poder e do sublime –
Estimando as leis universais regidas
Pelo céu, e sempre cinco no total –
Cores, sabores, tons, metais
Vísceras, planetas, orientes
E do espaço cinco regiões,
Cinco sentidos, não seis que são demais –
Eis a Terra toda em sensível plenitude.

A casa é também Poesia, Vinho e breve Spleen
E a Alegria de estar assim em união, nutrindo
O corpo, o espírito e a magia surgida da cozinha
Transtagana. Janeiro em Abril é Mulher e é Viola
E acordes em estreia absoluta. Em tudo melodia.
Melodia é ainda a casa toda – há ecos do direito
E monarquia – as Cortes de Coimbra, os discursos
Exaltados a favor do Grão Mestre de Avis –
a eloquência na argumentação, a força do braço
Em Aljubarrota, as fontes da Lei Mental de D. Duarte
– Um baluarte, o João das Regras!

Bendito seja quem assim recebe.
Abril, 2010.
José Almeida da Silva

Acorde ou sinfonia




Quero um acorde de serenidade.
A vida é um ruído em sobressalto,
E chaga dolorosa o dia-a-dia,
E a alma do meu corpo radiosa
É quaresmal em pleno carnaval.

Sei bem que um acorde será pouco,
Mas mais é impossível por agora;
Senão pedia-te uma sinfonia – talvez
A Pastoral ou a Nona de Beethoven
– Um hino ao choro e à alegria de viver.
2010.05.19
José Almeida da Silva

Efémera eternidade





Soa a música vinda do universo
E entra na alma serenando-a
Ou agitando-a. O pensamento
Entra assim na cadência do verso
Ou do anverso do ser. Transfigura –

O bater do coração acelerado ou calmo
É sinal de lá maior ou menor em fusa
Ou semifusa, em sorriso ou lágrima,
O sossego de toda a agitação –

Lembro de Beethoven a sua Pastoral,
Lembro-a aquietando a dor da morte,
Lembro-a exultando a alma em festa,
Sinfonia bifronte – o choro e a alegria.

A música é o divino no humano, essa força
Que reforça os laços com a efémera eternidade.
2010.05.19
José Almeida da Silva

a casa semi-pintada


Magritte

sopros na altura de três pisos fustigam folhas.
sombras oscilam impressas no asfalto
de uma rua tracejada, traços brancos.

um homem de olhos vagos de zeros igual a nada
atravessa indiferente de ver ninguém.
não pertence na rua na cidade
faz parte de um quadro que desenha
na parede mais larga de uma pequena casa.

a casa pequena é um acaso de horizonte;
cem hectares de campos e searas
cinquenta árvores e a forma grávida de terra
por onde nascem os bagos e as parras
junto a muros de penedos partidos.

assim o grito quando pousa os pés subidos
nas botas duras rosadas de muitos sinais;
modelo de sapateiro no meio da aldeia;
cordões de três voltas e saltos de borracha.

não pertence não pertence
a construções de régua e esquadro;
passeios de muitos quadrados e paragens de autocarro.

não usa caminhos de zebra listada nas aberturas de compasso
foge do ruído de uma multidão brava ao lado dos semáforos.
e passa ausente passo a passo mais abaixo longe de gente
longe de gente
nos cabelos de erva em frente do alpendre onde onde
o espírito diponível acende as chamas quentes do silêncio
e forma brasas e acende e reacende e deixa cinza cinzas
na poeira nas poeiras uma poeira fina ínfima que se levanta
e ultrapassa clareiras dividida em parcelas de ar ar muito ar
e pousa trémula nas pernas do melro que recicla migalhas
migalhas de um pão de centeio.

será que sabem?
como é bom andar sózinho nos campos essa morte das cidades

será que sabem?
o sabor parado de chapéus de palha o defunto rumor dos sinos
ao longe e os badalos breves e múltiplos de rebanho
um prado de lã nos ritmos de heras e o som esvaindo.

na casa semi-pintada na parede mais larga
ruiram roeram os alicerces da cidade
e em todo lado flautas de pampas encantadas
uma torre invisível sem confusões de babel
na proximidade dos astros.

na cidade o vento espalha a sombra das folhas
e um metrónomo cresce tenso de intensidade
em milhares de olhares vigilantes, as idades
os calçados, as roupas decotadas, o caminhar pinguim
de ombros apertados e patas patas digitalizadas.
contas números num crivo redondo
depois de uma espátula, espátula de esquinas;
as mesmas que diferenciam e exprimem
como âncoras firmes.

os olhos vagos
a impressão de um homem que não pertence
de planos virados ao céu ao fundo da terra inclinados
e uma rosácea circular de medir o tempo
sem acordar o pêndulo que aprofunda a hipnose
que adormece nos poços de profundidade
com as cegonhas a derramarem águas
lágrimas de águas frescas águas selvagens
e acorda que acorda de pés de terra no meio da cidade
no calor preto e duro dos asfaltos

e esboroa e esfuma e desaparece
nos olhos vagos de zeros igual a nada -

sexta-feira, 21 de maio de 2010

quinta-feira, 20 de maio de 2010

unir ao nada, todo o ar ser cor

Mundo do corpo todo
útil vagar em ritmo
sonoridade fácil
ilumina lugares
como deixando de ser
a humana voz na corda

19 dias y 500 noches - Joaquin Sabina

Música para cépticos (um caso de negligência médica)







O médico tinha acabado de desistir
de mim.
Ouvi o rufar de um tambor próximo
da expectativa mais negra.
O sexo exausto de um saxofone
na periferia da vida
anunciando
do alto das suas últimas notas terrestres
o nível de saturação da vertigem.
E o público, finalmente,
a aplaudir.

A sua sombra era uma poça de suor,
o suor da sua desistência traduzida
em transpiração, memórias vagas
de um quarto em Antuérpia
agora compelido num estranho número de sapateado
de dedos inquietos
sobre a pele proibida
da escrivaninha.

O médico pousava o estetoscópio
como um domador de serpentes
pousa a flauta na melodia
e dizia qualquer coisa incompreensível
enquanto atirava a espátula ao lixo e o olhar à parede
que se perdia nas sombras soerguidas
da descrição do problema
e o verbo que viria a seguir
começava já a brincar
numa cama de sangue
ao início da sua boca
como uma espécie de alegoria
com baixo índice de glicose
na certeza.

Amar começa por uma ligeira inflamação
nos bons princípios
- disse ele -
e depois essa música que me fala,
essa música é pertinente,
infectou, fez-se ver,
arrastou literalmente o senhor Humberto
para uma patologia amoral que o corpo nega
numa escola de desejo e espelhismos.

O senhor está a amar, senhor Humberto,
- continuou o médico, deixando um pouco a sua desistência
de lado, tentando convencer-me de que a música
que eu ouvia era apenas uma consequência deserta
própria dos seres com uma forte susceptibilidade
à voz amada, morta e constituinte,
e às suas inúmeras plateias de sentido
nem sempre do agrado de um Orfeu
com pouco jeito e paciência para descer
às profundezas do objecto.

Amar não tem cura, senhor Humberto,
mas também não mata ninguém.
Pode ter uma vida quase normal.
Faça longos passeios e divirta-se.
Evite apenas a profilaxia.

E mandou-me sair.

Mas eu não estava a brincar.
Nem a amar verdadeiramente
a vida.
E no dia seguinte,
enquanto o médico lia a notícia
do meu falecimento
passaram helicópteros do exército
cisnes da polícia lírica
e sinestesias com pedaços de metáfora
entre os dentes
doentes civilizacionais
com falsos apaixonados pela trela

e a tarde rebentou e a noite eclodiu
e o silêncio voltou a dar o exemplo
numa cidade onde ninguém existia
na acústica do outro
a não ser como ruído
ou revés.

Cantiga dos Ais



poema de Armindo Mendes de Carvalho (1927-1988)
dito por Mário Viegas (1948-1996)

como te chamas?


fotografia retirada da internet


não sabia porque contava histórias.
como o sol a chuva o vento acontecia.
eram duas da tarde no jardim das buganvílias
onde cresciam as brancas as mais raras
em armação de ferro e alumínio.

chegaram um e uma de mãos dadas ligadas
moravam do outro lado da estrada.
sentaram no relvado mais escuro da sombra
de uma latada ainda adormecida de bagos
em frente de um aroma claro que crescia
por trás de um banco e de uma bengala.

doze e doze vinte quatro e as mãos dadas.
a curiosidade pequena: aqui não há praia?

soltava uma das mãos e pousava.
a outra mão e pousava. De novo uma.
de novo outra. o queixo na curva de prata.
colocava a bengala de lado. Cofiava a barba.
no sabor da idade lembrou a história:


doze de agosto a tarde plana
por cima de duas três árvores uma ave
de peito claro e cauda rápida
parecia que chamava.

doze de agosto. Porto. a maré vaza
liberta areia muito acesa depois húmida
no preenchimento de pés de espuma e água.
o sol daquela hora é uma chuva de brasas
nos bicos dos ombros na beira do mar branco.
acima só andam os cães descalços
com as línguas de fora de lado.

doze de agosto melhor a barraca.
os olhos nos olhos indicam que os pés se tocam
dez dedos brancos dez dedos morenos
os brancos de unhas de cor.

como te chamas? – como as estrelas
como te chamas? – como as deusas
como te chamas? – açúcar de sobremesa
como te chamas? – como queiras

sobre a toalha laranja dos quadrados
um raio de poeira diagonal atravessa as riscas largas da barraca;
velas fortes de telas de algodão nas mãos de vento
como um balão de fôlego côncavo convexo.

doze de agosto não há qualquer cadeira
geladeira de sandes queijo ou marmelada
leite de morango ou limonada. água lisa
uma saca um saco duas toalhas uma cassete
posições várias de cohen leonard.
como te chamas? - dança dança

a voz clara e fina no feminino:
não é o mais importante vai vai
vai sem pressa como quando se descansa.
primeiro falamos do Verão e do Inverno
se houver encantos os verbos de verdade
definem as frases
encostam os ouvidos nas leituras
definem as curvas de caligrafias.
gostas mais de rios ribeiros
largos poços ou vastos mares?
falemos de programas de televisão
nada de exclusivos e defesas de ocasião
não queiras parecer, sê, sê como um piano.

como te chamas? – amanhã sabes.

continuaram de pés juntos como teclas
encontraram tudo o que era no que viam.
caiu na tarde uma leve cor laranja no mais longe do mar.

como te chamas?

de olhos grandes e cabelos sem trança
subiu apoiada na barraca beijou-lhe a testa
sorriu nos lábios dela:
amanhã à mesma hora e de surpresa
fala-me de flores para além da rosa
e não tenhas pressa
quatro estações tem a natureza
não vejo inverno chegou cedo a primavera
quem sabe
quando os olhos sentem
quando os olhos falam o coração sabe
adormece num conto sem data.

doze de agosto na praia do Porto.
a maré vaza.

levantou-se na dificuldade da curva da bengala.
doze e doze vinte quatro voltaram para casa
de mãos dadas.

uma música longínqua de um canto de pássaros
cravou-lhe no espírito uma melodia de força
um voo de garças que pousam e molham
as pernas altas de novo nas águas
e um sal grosso salvou-lhe os olhos
da secura de só palavras mudas sem nuvens
no jardim das buganvílias.

amanhã de novo o banco e as crianças
continuava a história
ocorreram-lhe muitos nomes e a resposta
como te chamas?

as claves claras de um sol de leonard
traziam o aleluia e a dança de uma valsa
nas posições várias das faixas.

caminhou sem a pressa do regresso
levava dentro da cabeça uma teia feita de cordas
melodias de um novo universo.

dobrou as voltas de uma chave pesada
curvou o puxador de pedra mármore ou seria ágata?
recolheu algumas migalhas de um bolo de manga

horas de lanche -

música

linhares da beira - serra da estrela
.© raquel patriarca

há uma música bonita
que me inunda a
memória
de gestos serenos
e dias de sol

uma melopeia de coisas simples

o encanto de uma
história
contada de cor

‘era uma vez
há muitos muitos anos
numa terra distante...’

o murmúrio de uma oração
e o toque das contas
do terço
o abrir -
- vagaroso
de uma manga
à procura de um lenço

o som da água
a correr no ribeiro
empurrado pelo vento
e o bailar da roupa
que se mergulha e esfrega
ao ritmo
sincopado
de uma cantiga sem tempo

o burburinho
dos dias de feira
o tamborilar das compras
na cesta
o toque dos sinos tão perto
o encadeado dos cumprimentos
‘como está?
vamos indo obrigada
até amanhã
se deus quiser’

o flautear de uma
gargalhada
no fim da brincadeira

o compasso do
caminhar
em direcção a casa

o estalar do
pão de trigo
à hora da merenda

o suspiro cansado e
fundo
ao pousar
as mãos nodosas
no colo
alisando
resignadamente
as rugas da pele
as pontas do avental

o sussurro doce de uma
canção
de embalar
o soluço de
um afago e de um
beijo
antes de deitar



há um silêncio surdo
que me ensopa a
alma
de ecos vazios
e ausências doridas

‘era uma vez
há muitos muitos anos
numa terra distante...’

aos avós

raquel patriarca
dezanove.maio.doismiledez

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Coisas que servem para ver mais longe

...........................................................

1.

Sonhei que Santo Agostinho emergia de uma piscina de etanol, a mesma do nosso colégio. Tinha uma touca às riscas, a mesma que usávamos nas competições de natação. O Santo olhava para mim com uns binóculos antigos, notou a minha erecção, que fazia nos calções justos um chumaço torto. A minha boca sabia ainda lixívia doce. O Bispo de Hipona voltou a mergulhar com os binóculos como se procurasse no fundo da piscina uma relíquia da cruz de Cristo.

2.

Vinha da piscina em direcção aos balneários, todos os outros estavam a jogar futebol, no balneário estava o monge, sentado e nu, apenas com uma toalha azul-marinho pelas pernas, que lhe escondia o sexo, a toalha tinha uma ânfora dourada.

3.

Disse que eu era um bom rapaz e convidou-me a sentar ao lado dele, enquanto se ia esfregando, senti aumentar o estampado da toalha, uma ânfora em fio dourado erguia-se com a erecção do monge, parecia triste. Senti necessidade de lhe dizer qualquer coisa, que cantava bem por exemplo, que tinha sido com ele que tinha aprendido a decorar e solfejar os salmos mais belos dos livros antigos. Ele sabia a minha paixão por hagiografias e sobretudo do meu interesse pela obra de Santo Agostinho, e muitas vezes pedia ao monge bibliotecário para me deixar ficar mais tempo com os volumes da “A Cidade de Deus” que eu lia muito devagar, tirando algumas citações do Santo para o meu caderno porque não os podia sublinhar.

4.

A toalha estava quente, o monge guiava a minha mão para cima e para baixo, tive vergonha de olhar para ele. Tirou a toalha e vi o seu sexo erecto, guiou-me a mão até ao sexo e voltou-me a falar dos binóculos, que tinham sido do seu avô, e falava-me de “A Cidade de Deus”. Corrigiu-me a postura da mão, depois disse – um bocado mais depressa – Os binóculos são bons – Eu disse que aquilo era porco e podia aparecer alguém. Ele disse que não e voltou a falar dos binóculos. Eu adorava ter aquele livro, por isso, quando me pôs a mão na cabeça e ma baixou devagarinho, não me atrevi a negar.

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5.

Pensei nos binóculos e na edição nova da “A Cidade de Deus”. Pediu só que eu tocasse na toalha, na parte da ânfora, a que estava mais levantada, eu toquei, e ele pôs a mão por cima da minha, e disse – Faz assim devagar – Eu disse que aquilo era porco e não se devia fazer – Ele não respondeu e começou a contar a história da nossa Instituição, dizia que se lembrava de cor da cara de todos os meninos abandonados que passaram nesta casa, meninos que cresceram e têm agora um futuro pela frente podíamos ter nesta Santa Casa um abrigo, uma esperança e um futuro. Falou-me de um menino que era agora deputado e de um outro professor Universitário em Inglaterra. Enquanto eu continuava no ritmo regular, ajudado pela sua mão, que corrigia por vezes os meus movimentos, fazendo acelerar ou abrandar a intensidade do gesto contou-me que foi ele que pressionou o director a montar a piscina e o pequeno ginásio, porque é bom para nós e para os monges fazer-mos desporto, e o campo de terra batida só dava para os jogos de atletismo, a ginástica e o futebol quando não chovia.

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6.

- Meti a boca e chupei, tentando pensar nas imagens de um livro de milagres ilustrado que tinha no meu quarto. Segurou-me na cabeça, e pediu que continuasse, esquecendo-se de falar. O sexo ficava cada vez mais duro, e ele pediu para eu continuar até que grunhiu e a minha boca encheu-se de um jacto quente. Ele disse que depois passava no meu quarto e foi tomar banho.
Fui lavar a boca, o esperma quente estava-me nas covas dos dentes, no fundo e debaixo da língua, algum nas amígdalas, e durante vários dias parecia que tudo o que comia no refeitório me sabia a lixívia adocicada.

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O monge boiava numa piscina de etanol, Depois voltou à superfície com uma touca igual às riscas, e Santo Agostinho ficou lá em baixo durante muito tempo. Depois o monge grunhiu de prazer, o mesmo som que tinha feito comigo, imaginei a mancha de esperma a boiar no fundo da piscina. Os espermatozóides em dança eléctrica, nadando uns bruços imperfeitos: procurando um útero, que lhes garantisse a sobrevivência, inexistente na piscina do Etanol.

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No sonho tive medo que pensassem que a mancha branca na piscina fosse minha, de fazer coisas porcas na piscina e sai a correr para o pátio. Entrei na igreja e rezei em frente ao altar de Santa Helena. No etanol a mancha, por um efeito químico, tornava-se fluorescente, como se fosse uma mensagem que o colégio devia acolher.
À noite voltei à piscina para me certificar se a mancha ainda lá estava, procurando o intervalo em que o funcionário do ginásio estava a fumar um cigarro.
Da água escura voltou a emergir Santo Agostinho com a sua touca às riscas, trazia na mão um pedaço de madeira e um espinho. Saiu da água e deu-me as relíquias para a mão, ainda com os binóculos ao peito. A minha boca ainda sabia a lixívia doce, e o arroz na cantina sabia a lixívia doce, e os rissóis pareciam ser de lixívia doce. Embrulhei as relíquias na minha toalha.


Nuno Brito

Cidade-ponto (poema de Sylvia Beirute)



















CIDADE-PONTO


{ao tiago gomes, com amizade}

não escrevi um livro em miniatura sob uma lupa falsa.
não pedi qualidade aos clássicos.
não pretendi reparar a eficácia de qualquer sistema humano.
não endossei poemas porque os poemas não são cartas.
não tenho um cativeiro de poetas.
não visitei cidades-poema.
não segui preceitos que se vejam.
não azuleci por pertencer ao céu.
não tive ilusão e coragem para crer na desistência.
não escrevi que o fingimento pode ser um ódio com casca.
não tenho maneiras puramente estéticas.
não tenho processos literários.
não tenho dois corações.
não li masaoka shiki ou matsuo bashō.
não li a crítica para não perder a liberdade e o meu
dom impreparado.
não peguei no tempo e o atirei para dentro do corpo
como células estaminais.
não escrevi sobre a revolução industrial.
não respeitei o meu passado enquanto índice temático.
não estimulei diagnósticos de subtileza grosseira.
não recuperei emoções com a cabeça.
não coloquei questões delicadas no campo da poesia suprema.
não transferi permissões de mim para mim.
não imaginei versos paralelos para prender significados.

Sylvia Beirute
inédito

terça-feira, 18 de maio de 2010

Quando o amor era som

Compasso binário
pé ante pé
numa manta de colcheias
ao teu ritmo

ao meu ritmo
notas na pele
pausas nos lábios
abraços em semibreve

no teu cabelo
pautas desalinhadas
de tons dourados

mínimas de ausência
as nossas mãos unem-se
apertam-se em sol maior

o teu coração
metrónomo exacto
orienta o meu descompassado
extasiado na dança rítmica dos corpos

o som fica
depois da música
dentro
dentro
dentro
em eterna vibração
em clave de si

Música arrepia ossos

Cuidado!

Se me tocas o esqueleto
a perônio
não quero ais

Estalo-te o osso
se te bato com os metatarsais

Cuidadinho com os meus ossículos!
Vai o martelo à bigorna
salta-me o estribo
parto-te os óculos
esborro-te partitura

Vai Lá tocar para o teu corpo e tem Dó de Mi, Si?

Ana Janeiro

Für Elisa




A repartição repartia processos de Kafka
Omnipresente de ruas douradas de Praga
Sem ser praga em viagem de searas;
Que não havia nem espigas nem voagens
Apenas uma minúscula formiga ou seria bicho?

No mesmo banco na altura indevida de um ouvido
Em roupagens de um vestido ; flores de poliamida
A música, os acordes de Für Elisa
Audível, audível .

No teclado dos dedos seguia na aurora neuronal
As claves andantes, as notas brancas, as sustenidas
Que não são tantas mas sobressaem no piano.

Tan taran tan tan taria a an. Taria a an. Taria a an -
Tan taran tan tan taria a an. Taria a an. Taria a an -


Como no interior original de um autista
A neblina, a nebulosa, um fumo de nuvem
Os marfins fugitivos, o corpo inclina
A cabeça sublima a sublime melodia;
O som dos sons tão colorido: o azul
O fuchsia magenta violeta e o verde rio.

Tan taran tan tan taria a an. Taria a an. Taria a an –
Tan taran tan tan taria a an. Taria a an. Taria a an -

A repartição repartia os lugares disponíveis.
De Kafka: metamorfose de lagartas
A crescer de borboletas.
Número trinta e três. Número trinta e três.
Só dois ouvintes no estampido de processos.
As folhas inflamadas caem duas de cada vez
Número trinta e três.

Os vidros reflectiam a voz do funcionário
Mas de olhos fechados a alma voava;
O maldito gafanhoto na seara.
O leve toque na palma onde o papel amarrotado.
Desculpe. Chamam. Por acaso –

Não não.Obrigado. o meu é trinta e quatro –

Tan taran tan tan taria a an. Taria a an. Taria a an-
Tan taran tan tan taria a an. Taria a an. Taria a an-
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segunda-feira, 17 de maio de 2010

o canto dos pássaros no mar


òleo de Marynete Martins retirado da internet "Prímulas numa tarde de domingo"

no horto da avenida respira-se um sossego de aurora.
nove horas e a névoa de uma certa nostalgia fixa as rosas
cor de rosa de santa teresinha junto a dois vasos de prímulas;
estas pétalas tão pequenas de pequenos aromas chamam
com uma certa alegria os momentos bons ; comovem
e tocam o rumo da alma como barco de águas calmas.
um rumor de mar, de onda, de onda no mar. adormecem
adormeço as pálpebras como dobras de um lenço
fino de transparência e os olhos, os olhos castanhos
como ramos de uma árvore que flutua e anda
em águas sólidas, em pés de raízes levando o canto
o canto dos pássaros em direcções de horizonte.

adormecem e adormeço num outro mundo –

e o horto é só miragem e as plantas saltam
em crinas de algas junto das árvores, dos ramos
dos olhos castanhos e povoam o oceano
de um novo êxodo onde ninguém se afoga.
e as águas são calçadas cheias de passos verdes
que tornam verdes os mares;
milhares de folhas que tocam o ar de musgo
no céu ainda branco -

adormeço e adormecem
as rosas pequenas e dois vasos de prímulas -

domingo, 16 de maio de 2010

estado liquido do som

há bichos na rua
de pulsar azul

o pulso
entra pelos olhos
e pendura-os pela nuca

concentrados
pousam o centro no chão
e contam pedras
com os dedos dos pés

em cuidada vertical

pilhas de pedras
por baixo dos dedos
para aliviar a nuca

sopram canudos de pulsos
quase oblíquos
com canetas demasiado estreitas

não chegam
não sabem do pulsar

mas há entre eles
um liquido azul
muito próximo ao pulsar
que adivinham pelos ouvidos

o liquido é horizontal
e quando os enrola por dentro
entre pulsos e pedras

há bichos a dançar

sábado, 15 de maio de 2010

Créme de la Creme

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O mar é aquela coisa bela,
Azul e profunda onde os homens se afogam

Anónimo Português século XXI


Não sou o tempo que demoram as ametistas a chegar ao fundo do mar,
Sou só uma pessoa que quer mergulhar em todos os olhos e não sair, uma ametista
Ansiosa que as pessoas se abracem; e ser também esse abraço para que as estrelas se venham, e que os olhos tristes da minha amiga nevem
Ando pelas ruas à espera que dois olhos me violem o metaplasma, Acendam a espinha;
Adoro lamber lágrimas e caras inteiras, as pequenas estrias e nódoas negras que Bernini esculpiu nos tornozelos da estátua A Verdade, são iguais às dos teus tornozelos, estrias, veias finas e azuladas, nódoas negras, hematonas, nas pernas / na pedra / bem torneados de um veio de mármore um pouco mais azulado
O amor é como carne
sabe a mar e a limão, a parte de trás das orelhas – disseste
Que as estrelas-do-mar são virtualmente eternas, porque são só pontas e sensação,
e quando uma ponta é cortada dá origem a uma estrela nova, e isso pode demorar séculos, inquisições, guerras mundiais, guerras nucleares, holocaustos africanos, eclipses totais do sol,
As estrelas-do-mar são virtualmente eternas
se me pedem para escrever um texto de cariz social, lembro-me da imagem do Rodas, a ingerir os pacotes de coca e heroína, poucos segundos antes da polícia aparecer no início da rua e de alguém lhe assobiar, vinte minutos depois de ser revistado a ir à banca beber água quente e azeite, e meter os dedos dentro da boca para vomitar - Tudo antes que os sacos rebentem: Na esquadra, diz-me o Rodas, levam alguns que não têm produto nos bolsos, ou enfiado nas meias para o hospital,
E no hospital metem-nos o caga-rápido, e descobrem as embalagens – Já esteve preso seis meses, mas as coisas correm bem, mesmo com duas noites seguidas que passou na esquadra, e depois olha-me febril, a dizer que tem de sair da cidade, no dia anterior à visita do Papa, noite em que não é seguro vender, porque anda muita polícia na rua, e pensa sair, ir para o sul onde tem família. E lembro-me do discurso sobre a dignidade do homem de Giovanni Pico della Mirandola, e da responsabilidade total do homem de Jean Paul Sartre, e isso dá-me vontade de rir, e de ser abraçado pelo Sol, e dar Vida, nos braços, de um beco escuro ao lado da rua Mouzinho, dois injectam o sol líquido nos braços e tombam para a frente, e o sol aparece mais acima carregado de um esperma, gerado em chamas pela vitalidade e loucura dos homens: que lhe permite brilhar, num cio de estrela dependente de emoções

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atravesso a nado os teus braços, as tuas pernas, a tua nuca, a parte de trás das orelhas sujas de café, de uma lambidela suja: por ti, (e vemos de todos os olhos) – O que foi visto e se há-de ver: abraço-te a mim, num corpo único que há- de rebentar recheado de sol, sinto o teu corpo pelas minhas mãos, pelos teus olhos vejo entrarem todos os mares, e acenderem¬-te de desejo e resignação, como se uma orquestra que tocasse Mahler fosse enviada para Neptuno, os músicos unidos por fios dourados, coisas que ligam – pessoas a pessoas – tudo se acende à minha volta, assobiam do fundo da rua, o Rodas corre. A travesti canta para nós. A orquestra faz o planeta vir-se, e uma chuva de néon cai sobre a terra, da Eurásia à Austrália. Atiramo-nos para uma piscina, e no fundo, descobrimos uma galeria subaquática, que se bifurcava por baixo do solo: saíamos na região do medo, como se saíssemos na estação de Montparnasse


Mostrou-me um livro – Eu escrevi um livro sobre a droga – Corrigiu: Eu ditei para um escritor a minha experiência com a droga, Rodas! Rodas! – O Rodas chegou do quarto – Sabes onde está o livro sobre a droga que ajudei o escritor a escrever? – Está aí naquela gaveta – O Rodas foi à gaveta e tirou de lá um livro com a capa de um cor-de-laranja muito carregado e mostrou-me:
O título era “Como evitar a droga?” – A capa estava geometricamente cortada em cima, faltava um bom bocado – O Rodas disse que tinha sido para fazer uns filtros – Abri ao acaso e surgiu-me uma página marcada com uma prata queimada na página 120, não decorei a que capítulo pertencia. O Rodas ligou a aparelhagem e acendeu um cigarro.

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Continuámos pelas galerias que a piscina nos oferecia, encontramos Cronos de calções, dois semideuses sem os dentes da frente nadavam em sentido contrário como Neptunos. Mais à frente descia o nível das águas, e passámos a caminhar no lodo, apareceu um guia da América central com um microfone preso ao pescoço, guiou-nos pelo Inferno com a sua voz de sopinha de massas – Em que círculo estamos? – Perguntei ao meu amigo, que era uma puma, e outras vezes uma mulher – Não estamos em nenhum círculo – Estamos por baixo da casa onde mora o Rodas: E mais à frente ali os ratos – Não são ratos, são homens que desceram na condição social – Disse o guia – A pirâmide, está a ver, aqui vemos pirâmides, pensamos em triângulos, vemo-los por todos os lados, ainda não somos capazes de assumir a natureza humana, sem hierarquias verticais – Mas o planeta é uma linha horizontal da qual o homem se aproxima na sua subida. Assim, não são ratos, são homens: Vivem como ratos mas são homens. Pedi um cigarro ao meu guia e ele falou-me de um homem sábio.

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Qualquer rato tem a sua mãe, e as mães dos ratos vão visitá-los à prisão e as namoradas dos ratos vão à prisão e fazem sexo com os ratos, e levam os filhos mais tarde para que os ratos vejam os seus filhos – E os ratos olham-se ao espelho – ansiosos por descobrir os mais Fundos Limites humanos e não vêm o espelho, vêm só um homem que são eles, obrigados a ter dignidade.

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O homem sábio era David Foster Wallace, disse-me o guia, que como qualquer homem é sábio: E isto deu-me vontade de rir, e não sei porquê imaginei os músicos ainda ligados por fios dourados em Neptuno a tocarem agora Bethoven – e lembrei-me da palavra “húmido” como adoro a palavra “húmido” como adoro tudo o que está húmido no corpo humano – como amo – tal como Milton – Tudo quanto fluí – e senti-me escorregar pelas galerias sem rumo e sem escolha do caminho entrando por umas saindo por outras auxiliado pela música:
A forma mais evoluída de literatura – David Foster Wallace escreveu em “raparigas de cabelos estranhos” uma pequena história sobre um grupo de amigos que vão assistir a um concerto de jazz, na segunda parte do espectáculo, dois deles saem (um deles é a personagem principal do conto) E o outro rapaz que tinha tomado LSD antes do concerto diz à personagem principal: De onde advém a tua felicidade natural? --- Se me explicares de onde advêm a tua felicidade natural deixo-te esporrar para cima de mim e da minha namorada – No conto a personagem principal sente-se embaraçada com a pergunta mas começa a responder, são cinco páginas completas a resposta dele, uma resposta insegura que não convence o outro que lhe diz – Falas-te muito, mas não me disseste de onde provêm a tua felicidade natural. A personagem principal sente-se derrotado na capacidade de diálogo, mas tenta uma última tentativa: Se eu te der 1000 dólares deixas-me ir com a tua namorada? – O amigo aceita. O conto acaba pouco depois, ficando em aberto essa hipótese que o fim da narrativa não permite saber se se concretiza.

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As estrelas do mar são virtualmente eternas
As medusas são virtualmente eternas
(Porque não têm sistema central, não pensam, sobretudo não reflectem, são só nervos e sensação, ponta e electricidade)

A capa estava geometricamente cortada em cima, faltava um bom bocado – O Rodas disse que tinha sido para fazer uns filtros – Abri ao acaso e surgiu-me uma página marcada com uma prata queimada na página 120, não decorei a que capítulo pertencia. O Rodas ligou a aparelhagem.


Nuno Brito