domingo, 6 de maio de 2012

Palavras para a minha mãe - um poema de José Luís Peixoto


                                      imagem retirada da internet
Palavras para a Minha Mãemãe, tenho pena. esperei sempre que entendesses 
as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz. 
sei hoje que apenas esperei, mãe, e esperar não é suficiente.

pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te 
desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente. 

às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo, 
a fotografia em que estou ao teu colo é a fotografia 
mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz. 

lê isto: mãe, amo-te. 

eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não 
escrevi estas palavras, sim, mãe, hei-de fingir que 
não escrevi estas palavras, e tu hás-de fingir que não 
as leste, somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes. 

José Luís Peixoto  Lido aqui

a carta que te escrevo ( XVI )



                                         Picasso, Guitar, 1913


escrevo-te esta carta para que a guardes
como uma música acústica de lianas sensíveis
um discurso de alma no meio das cordas
a tocar as madeiras exóticas , a torná-las únicas.
a dedicá-las, as cartas, com os desenhos de letras
e o pêlo encostado dos gatos, sussurrando poemas.
vou-te contar, começa assim:

não podia deixar de soltar as palavras. oferecê-las como aromas
para que emoldurem a noite, a noite grande de lua cheia.
peço que te aproximes, na ponta dos pés, um rodopio de dedos fortes
pelo meio de salas, pelo meio dos quartos como un pas de deux
no primeiro dia do primeiro ano, até às cortinas
até aos vidros mais claros para que o som se inspire
para que o som se inflame e suba, suba acima
pelas estradas do corpo, na longitude do pescoço
pela aurora  da cabeça e com asas nos cabelos;
a insustentável leveza -

e para que sempre  te segure, sem nunca te magoar
 numa seda branca, numa recordação segura
e te acalme
e te sossegue
num colo longo –

escrevo-te com um milagre nos olhos e nada mais à volta
escrevo-te no meio de um coro de vozes
um coro de vozes pequenas e infantis que nos une e encanta
e nos faz sorrir como se não houvesse chuvas fortes
com as ruas todas molhadas. 
como se não houvesse tempestades
como se não houvesse nada para além de um silêncio bom
um silêncio bom num intervalo de palavras -

escrevo-te como se não houvesse códigos e incertezas
como se todos os segredos fossem os nossos segredos
um bailado de sonhos, um milhar de poemas, a cor e o sentir das alfazemas –

escrevo-te na noite branca de uma lua cheia
para que os olhos não tenham frio, não tenham o trémulo arrepio
para que a boca seja um smile de dois pontos no finalizar de parênteses
um amarelo de flores e um vermelho intenso e invisível
da cor das primeiras cerejas, nas encostas do Douro
num maio de maias, um fruto doce e luminoso –

escrevo-te na caligrafia dos poetas, um mar de versos
um oceano diferente, uma pele de ondas e uma labareda de incêndios
as duas ao mesmo tempo, porque habitam para além do horizonte
um lugar que nem a todos surpreende, mas existe.
existe como uma conversa que não acaba porque chega o sono
e ao fechar os olhos continua na semi-realidade de freud e dos sonhos
um inconsciente que ilumina os olhos e faz ver todas as vírgulas
os dois pontos, o achamento precoce de alvoradas, a protecção das baías
 e a imensidão de ser tão fluida a planície –

a meteorologia fala de oito graus, oito graus de mínima
portanto espero que te cubras de um manto temperatura
a temperatura óptima de um conforto, com uma botija de água quente
onde de proximidades se juntam os pés; primeiro na fuga e no retomar
de uma e de outra vez, como nos apetecer, até que botija e pé
pé e botija se equilibram e permanecem unidos durante muito tempo –

espero que te acomodes num livro de poemas, que os leias devagarinho
com uma música que não digo, seria óbvio, sem mais caminho –
preciso que te acomodes para que o tempo se envolva, da flor ao fruto
na cor dos nossos olhos, depois de um rubor súbito e o pé a rodar tímido
as orelhas vermelhas e um calor do tamanho do Edna, um perigo –

um perigo, um palco, uma alegria capaz de reinventar o cálice
o cálice de Graal, um cálice doce de vinho, para alimentar os sentidos –

cresceu tanto a lua, cresceu tanto a lua… grande como duas luas juntas
tanto que cresceu a lua, como duas, e redonda e perfeita, como duas
duas luas juntas, e branca e redonda e perfeita, como duas
as luas, duas, tão juntas
duas luas em uma, duas
uma lua grande sem nuvens
e um mar como um espelho gigante de duas almas que se juntam –

sossega, chega, bem sei, caiem as pálpebras. espalho a mão aberta  sobre o teu rosto
sobre a tua testa, num repetido gesto de um pouco de cabelo que se ajeita
e que retorna e que se ajeita e depois um beijo, muito inocente
na têmpora, por sobre a veia que acalma o sangue.
junto do cabelo que retorna e de novo na têmpora
e depois um gesto mais largo, mais cuidado
apertando melhor a roupa, arredondando a curva do colo
para que o frio não entre, oito graus de mínima –

e depois uma canção antiga, de Brahms, junto aos ouvidos
de nã,nã, nã nã, nã ni, muito baixinho, nã, nã, nã nã, nã ni, devagarinho –

até que se feche a janela de uma lua cheia, até que a boa-noite seja um ninho
no silêncio de um quarto, com um livro aberto no chão
e as costas inamovíveis de um gato, no seu ruído agradecido –

bem sei que todas estas cartas, as que têm significado, são ridículas
não as mostres a ninguém, são um segredo de duas luas juntas
um trevo de quatro cantos, ou de oito cantos, como queiras
duas luas juntas, a iluminura de um sorriso
tranquilo –

dorme bem, suavemente, ouço as cordas da guitarra
um conjunto de sinos, o paralelismo das linhas.
fico esgotado com tantas palavras que te digo
mas dormes, estás adormecida
e a lua está grande, magnífica  -

e sinto-te 
com os anjos que não sabes
que não sabes
e que te envio -