terça-feira, 31 de janeiro de 2012


talvez os polegares não desviem as águas
dobradas pelas raízes 
em conversas a fio
pensava nela a regressar das raízes pelas mãos
de como se lembra de toda a água que já foi
e se ouve ainda o fechar da maré 
em cada rotação dos seus olhos
ouvia repetidamente
divide a luz se te atreves
e talvez aí a sombra
cada célula 
grávida de um segredo:
não espero da água 
o que espero de mim
que no código de vez em quando 
tenha sobrado um verso:
pode levar-se uma pergunta ao infinito
ou dar-lhe um beijo

a ideia antiga (Old Idea)



.........The troubles came I saved what I could save
.....a thread of light a particle a wave
L.Cohen

recupero um poema e deito-me sobre ele
como se falasse e tivesse mãos, dedos, cabelos longos
a ideia antiga –

um poema de mulher
a mulher
de olhos ternos, eternos -

em Abril corriam os rios pelos sinais das nuvens
a janela estava fechada e os vidros tracejados de gotas;
escrevi-o como se cada palavra fosse um pedaço de roupa
a cair, a desnudar o corpo, o teu, o meu, ao mesmo tempo
e à distância:

- serás sempre, disse-o. não chovia -

reli-o na última hora de um dia.
Janeiro, não estava frio -
caiu-me no colo como Freud, o gato branco
de olho azul, não na cor de safira mas mais claro
encolhido na curva quieta da cauda e ronronando
como um motor de barco abrindo as águas e olhando o rio -
caiu-me no colo como se fosse uma canção de gôndola
um sole mio num canal de Veneza; um remo longo
uma camisola de algodão, às riscas -
caiu-me no colo e pronto, o inevitável morno rodopio
de um crepúsculo laranja macio e persistente
que pode ser miragem, pode ser desvario
pode ser tudo porque sentido -

é curioso observar a ladeira do tempo
o escorregar nas folhas dos versos como se de um Outono
e o ultrapassar dos frios polares conservando o fluir do pêndulo –

batem intensamente os batimentos de fogo
e mergulho no acaso do poema
a ideia antiga
para sentir o presente e o futuro

como um rumo

e um destino -

josé ferreira

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

sei que te cansas quando pára o vento


imagem daqui

sei que te cansas quando pára o vento
quando cessa o movimento e pára o dia
sei que te cansas quando pára a cor
quando se perde o girassol
e os campos são nítidos de vazio –

os círculos não podem perder a velocidade, dizes
não podem perder a tontura centrífuga, dizes
precisam do arco das penas e do ar de suporte, dizes
a subida a um lugar de onde se vê tudo
sem chão e sem a gravidade do cinzento
o insustentável desvanecimento
o azul é o caminho –

o lugar é único e moves-te como ninfa;
um lugar sem cartografias, de nuvens sem linhas
um algodão suspenso a meio caminho
soprado pelo vento para cima
sempre para cima –

e depois a promessa e o eterno afastamento;
um leão de ausência, a selva no vazio -

como nos noves meses de um parto
assim não se explica o rosto, a cor dos olhos
a inclinação do nariz.
como no parto antes de ser
o rosto surge como inanimado, de cera, resistindo à água
e não cresce, não abre os lábios, não faz nascer a palavra.

não temos falado é certo e hesitas decidididamente, digo –

o momento, a hora marcada, hás-de ouvir-lhe os passos, dizes.
os vidros, a janela, o corpo deitado numa cama desarrumada
e os gatos, sempre os gatos, de olhos esticados
talvez um dia, dizes –


não é possível deduzir e não se explica o azul
o intocável céu e o mar que parece impossível
o horizonte longínquo e o equador de linha invisível
a sedutora mania que se afirma
o simbolismo de um gesto, o improviso –

não é possível deduzir não se explica
porque apertamos cordas de nós que parecem infalíveis
e porque se desprendem.
qual o momento definido?

será que existe o fogo que escreves como clic?
não eternizes, digo.
a eternidade pode não existir.
não coloques o éter nos sentidos
e ilumina
o insustentável azul
e a nitidez do caminho -

josé ferreira 29 janeiro 2012

sábado, 28 de janeiro de 2012

Lugares comuns - um poema de Ana Luísa Amaral




Entrei em Londres
num café manhoso (não é só entre nós
que há cafés manhosos, os ingleses também,
e eles até tiveram mais coisas, agora
é só a Escócia e parte da Irlanda e aquelas
ilhotazitas, mais adiante)


Entrei em Londres
num café manhoso, pior ainda que um nosso bar
de praia (isto é só para quem não sabe
fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era
mesmo muito manhoso,
não é que fosse mal intencionado, era manhoso
na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha
suja. Muito rasca.

Claro que os meus preconceitos todos
de mulher me vieram ao de cima, porque o café
só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate
(se fosse em Portugal era sandes de queijo),
mas pensei: Estou em Londres, estou
sozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses
até nem se metem como os nossos,
e por aí fora...

E lá entrei no café manhoso, de árvore
de plástico ao canto.
Foi só depois de entrar que vi uma mulher
sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me
mais forte, não sei porquê, mas senti-me mais forte.
Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e
depois eu

Lá pedi o café, que não era nada mau
para café manhoso como aquele e o homem
que me serviu disse: There you are, love.
Apeteceu-me responder: I’m not your bloody love ou
Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois
pensei: Já lhes está tão entranhado
nas culturas e a intenção não era má, e também
vou-me embora daqui a pouco, tenho avião
quero lá saber

E paguei o café, que não era nada mau,
e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta
a ver a tribo toda a comer ovos e presunto
e depois vi as horas e pensei que o táxi
estava a chegar e eu tinha que sair.
E quando me ia levantar, a mulher sorriu
Como quem diz: That’s it

e olhou assim à sua volta para o presunto
e os ovos e os homens todos a comer
e eu senti-me mais forte, não sei porquê,
mas senti-me mais forte
e pensei que afinal não interessa Londres ou nós,
que em toda a parte
as mesmas coisas são


Ana Luísa Amaral

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

suzana, temos mil razões para calar as fotografias



temos mil razões para calar as fotografias
na gaveta de madeira, a quarta a contar de cima
da secretária antiga onde preencho folhas, uma a uma
folhas de um livro, poemas compridos -

as últimas notícias são repetitivas
falam do naufrágio, um grande barco de muitas janelas
como um queijo suiço, e o comandante, e os heróis
e a falta de vida de algumas vidas -

o contemporâneo prende-se no subterfúgio
economias líquidas, as reformas e o umbigo
do presidente, dos directores e dos amigos
a importância ilógica de ser o mais importante
o nosso cantinho, o territóriozinho, a nossa vidinha
quando está em causa o oxigénio limitado de um planeta
quando há o perigo de um excesso de fumo
como um furo no cabedal do mundo
a esvaziar o conteúdo
a tornar-se mudo perante uma coleira
que aperta muito -

é preciso uma estrela mais abrangente, não tão pequena
não tão miúda, mais refulgente, que oriente
que dê um rumo
é preciso denunciar a inclinação recorrente dos colarinhos
brancos na superfície e de negros fios por dentro
muito escondidos -

seremos atentos perante as garras do milhafre
os voos picados da águia e a impaciência do abutre -

porque este é o quotidiano da politiquice que emaranha os dias -

quanto a nós temos mil razões para calar as fotografias
na quarta gaveta a contar de cima
menos uma
a que mais observo e ganha vida
como um quadro na fractura caiada
como uma parede branca impregnada de filme -

josé ferreira 26 Janeiro 2012

abre o sol, não há náufragos nas ilhas -


Bill Brandt

abre o sol como luz obrigatória para que corra o dia.
abre na forma de um arco a longitude clara
na metade do mundo, e é normal a rotação das rotinas
em si
e este sol que abre único e original, sempre
como estrela porosa dos frios
colocando sobre o rosto
uma dúzia de raios ou mais –

quando adormecemos lembramos o sol e fechamos a lua dentro de nós
uma lua aprisionada pelo metabolismo dos fluxos
dos labirintos e das claridades sobrepostas
as respostas daqueles limbos que espantam
quando de repente um ruído abre os olhos
e nos conta uma história, letras que ganham consistência;
frases com sentido ou pedaços náufragos de ilhas
existências antigas ou um episódio que não era assim –

foi assim na manhã dois de um amanhecer de campismo
em Espinho
onde uma tenda abria sobre uma linha de água a sua cor azul
e um rádio na estrutura de alumínio soltava um fluido de sons
teclas recolhidas na polpa dos dedos
resilientes no levantar suspenso que suportava o tempo –

foi assim no cimo da serra quando um cobertor de lã grossa
era um manto que incendiava o corpo
antes de uma correria pelas neves e tombos suaves sobre o branco;
as luvas resistiam –

foi assim pelas ruas de Madrid numa ostentação feliz de sorrisos
pelos museus de Sofia sem as indefinições de Mona Lisa
nos grandes copos de um retiro, onde não havia nuvens
apesar do frio -

é estranho este sol nesta manhã de dia de semana
um rosto distante que não se afirma
não tem olhos, nariz, lábios, ombros e pescoço
nasce na incontinuidade absoluta de sempre se despedir
como as folhas que se escrevem ou as páginas de um livro
nas capas grossas de fenómenos que se redescobrem
com um outro significado como um filme repetido –

e não há metáforas determinantes neste poema de linhas
é um discorrer de fim de inverno como se deve ver a vida
a surpreender como cor e como os rios
na direcção objectiva.
rios apertados para se libertarem e abrirem
nos lagos provisórios
ou em mares onde há ondas fortes
que os empurram de novo pelas encostas da cabeça
até aos fragmentos da memória
para rever as margens mais distantes
lugares incisivos incandescentes vivos
um pouco depois das nascentes
e de novo novos como este sol nos caminhos:
fogo, fios de chama e raízes
de essência subtil
nesta manhã de dia de semana
que podia ser domingo -

abre o sol e bate nas pedras
que viram fogueiras e se perdem dos frios
no afirmar de incidências e sem perigos
quentes, no envolvimento que vem de longe
- um afecto uterino
quentes e navegantes
do tamanho de sermos grandes e diferentes
de sermos únicos e juntos no uníssono
neste ou num qualquer dia
através de um sonho ou de um cruzar de caminhos
seguros
decididos -

precisamos procurar as certezas
o sol é bússola
e procuramos e conseguimos

não há náufragos nas ilhas -



josé ferreira 25 janeiro 2012

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Mulheres correndo, correndo pela noite - um poema de Herberto Helder


Picasso "Guernica"

Mulheres correndo, correndo pela noite.
O som de mulheres correndo, lembradas, correndo
como éguas abertas, como sonoras
corredores magnólias.
Mulheres pela noite dentro levando nas patas
grandiosos lenços brancos.
Correndo com lenços muito vivos nas patas
pela noite dentro.
Lenços vivos com suas patas abertas
como magnólias
correndo, lembradas, patas pela noite
viva. Levando, lembrando, correndo.


É o som delas batendo como estrelas
nas portas. O céu por cima, as crinas negras
batendo: é o som delas. Lembradas,
correndo. Estrelas. Eu ouço: passam, lembrando.
As grandiosas patas brancas abertas no som,
à porta, com o céu lembrando.
Crinas correndo pela noite, lenços vivos
batendo como magnólias levadas pela noite,
abertas, correndo, lembrando.


De repente, as letras. O rosto sufocado como
se fosse abril num canto da noite.
O rosto no meio das letras, sufocado a um canto,
de repente.
Mulheres correndo, de porta em porta, com lenços
sufocados, lembrando letras, levando
lenços, letras - nas patas
negras, grandiosamente abertas.
Como se fosse abril, sufocadas no meio.
Era o som delas, como se fosse abril a um canto
da noite, lembrando.


Ouço: são elas que partem. E levam
o sangue cheio de letras, as patas floridas
sobre a cabeça, correndo, pensando.
Atiram-se para a noite com o sonho terrível
de um lenço vivo.
E vão batendo com as estrelas nas portas. E sobre
a cabeça branca, as patas lembrando
pela noite dentro.
O rosto sufocado, o som abrindo, muito
lembrado. E a cabeça correndo, e eu ouço:
são elas que partem, pensando.


Então acordo de dentro e, lembrando, fico
de lado. E ouço correr, levando
grandiosos lenços contra a noite com estrelas
batendo nas patas
como magnólias pensando, abertas, correndo.
Ouço de lado: é o som. São elas, lembrando
de lado, com as patas
no meio das letras, o rosto sufocado
correndo pelas portas grandiosas, as crinas
brancas batendo. E eu ouço: é o som delas
com as patas negras, com as magnólias negras
contra a noite.


Correndo, lembrando, batendo.

Herberto Helder, A faca não corta o fogo, Assírio &Alvim,2008

A preguiça

A alma adora nadar. Para nadar, há que deitar-se de barriga. A alma despega-se e parte. Parte a nadar. (Se a vossa alma parte quando estais de pé, ou sentados, ou de joelhos, ou apoiados nos cotovelos, para cada posição corporal diferente a alma partira com uma locomoção e uma forma diferentes, segundo concluirei mais tarde).

Fala-se muito em voar. Não é isso. O que ela faz é nadar. E nada como as serpentes e as enguias, nunca de outro modo. Há imensa gente que tem assim uma alma que adora nadar. Chamam-lhes vulgarmente preguiçosos. Quando a alma deixa o corpo pelo ventre para nadar, produz-se uma tal libertação de sei lá o quê, é um abandono, um gozo, uma descontracção tão íntima.

A alma parte a nadar no vão das escadas, ou na rua, consoante a timidez ou a audácia do homem, porque ela conserva sempre um fio que a une a ele, e se esse fio se quebrasse (às vezes é muito fino, mas só uma força terrível o poderia romper) seria terrível para eles (para ela e para ele).

Então, quando ela está entretida a nadar ao longe, escoam-se, por esse simples fio que liga o homem à alma, volumes de uma espécie de matéria espiritual, como lama, como mercúrio, ou como gás – gozo interminável.

É por isso que o preguiçoso é incorrigível. Nunca mudará. É por isso que a preguiça é a mãe de todos os vícios. Pois acaso haverá coisa mais egoísta do que a preguiça?
Tem fundamentos que o orgulho não tem.

Mas as pessoas irritam-se com os preguiçosos.

Quando os vêm deitados, batem-lhes, mandam-lhes água fria à cabeça, eles têm de recolher a alma imediatamente. Olham-vos então com esse olhar de ódio, bem conhecido, que se vê sobretudo nas crianças.

HENRI MICHAUX

Fragmentos XIV - mexerico


Manet "O Bar de Folies Bergéres" 1882


Mexerico.Dor experimentada pelo sujeito apaixonado quando verifica que o ser amado está envolvido num «mexerico» e ouve falar dele de um modo vulgar.

(...)

O mexerico reduz o outro a ele/ela e uma tal redução é-me insuportável. O outro não é para mim nem ele nem ela ; apenas tem o seu próprio nome. O terceiro pronome é um pronome mau: é o pronome da não pessoa, afasta, anula.

(...)

Roland Barthes "Fragmentos do discurso amoroso", ed. 70, 1981

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

uma vaga no mar de Renoir


Renoir "La vague" 1879

não se deve usar a trovoada da razão
na rotação colada de todos os dias.
impreterível a propriedade do acto
como surpresa
como rasgo imediato
pequena porta do sonho –

tudo aconteceu como um pano largo de um teatro
o levantar no silêncio de pontas de agulha
interrogações afiadas
perante os olhos e as vozes
o movimento dos corpos
os cenários vestidos de décor e depois modernos
vazios e cheios de simbólicos
na ausência
que apenas se sugestiona
e abre o ponto por detrás da cabeça
exactamente nesse lugar incerebral
impenetrável e invulgar
como um fragmento
que mostra a parte
o visível do azul
ondas que se aproximam devagar
e uma vaga no mar de Renoir –

tudo aconteceu no imprevisível lugar
nem cedo nem tarde
a hora exacta
escrita pelo desenho na areia
como um braço de árvore
uma oliveira de paz
que escreve e apaga
e apaga e escreve
os teus olhos a tua voz a tua pele
como linhas brancas
caminhando sem pressas
sem revoltas inconfortos ou vinganças
em direcção ao areal
o visível azul
e o branco
de uma vaga no mar de Renoir -

tudo aconteceu porque era primavera
e procurávamos o sol
talvez seja vulgar de dizer
mas um sol pode ter mais valor que um mundo
mesmo que cegue e enlouqueça
na possibilidade -

não houve na pacificidade das asas que sobrevoavam
as palavras fortes que desejavas
um Herberto Hélder de garras e fluxos intermináveis
incontidos como um poema imparável que nos leva atrás
presos por uma corda no pescoço
entre a falta de ar e uma tesoura de pontas afiadas
que desce certa e corta
mesmo antes de chocar com o muro as rochas o precipício
e um corpo desfeito por todos os lados entre sensações
e dúvidas terrenas ou superstições -

tudo aconteceu
porque não há ponteiros de tempo dentro dos nossos olhos
tudo aconteceu na forma de uma insígnia de liras
uma música de cordas na voz dos búzios
tudo aconteceu porque merecíamos e fomos capazes
sem palavras
entre os ombros e os abraços
na cor azul
de um mar indizível-


josé ferreira 23 Janeiro 2012

Maria Sousa

O processo de contar histórias é sempre lento
começa-se pelo início
e há quem diga que chegar ao fim é simples
uma frase é a melhor medida
para juntar os fragmentos
e se a noite a subir pela voz
é um método de fazer silêncios
e o coração é um órgão que
espreita pelos buracos da gramática
no fundo é porque têm um corpo como fronteira


Maria Sousa, Exercícios para endurecimento de lágrimas, Língua Morta, 2010.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Blanc et Blanc


 
I.
O pastor alemão veio morar para o Centro,
Onde a releitura do ódio parece a releitura do amor
trouxe na viagem e na língua ainda o sabor das lágrimas de Heidi
elas nunca tocaram o chão -
a meio da queda ele bebia-as
como um limite, doces e citrinas, sabiam a gin tónico com muito limão
O caminho em direcção ao centro, a carreira de professor que ensina as estações
o medo vem a seguir ao Outono e o desejo a seguir ao Inverno
mas os ciclos são interiores: como as estações
a meio da queda, o frio congela as lágrimas,
 são agora flocos de neve que caem dos olhos de Heidi, parecem estrelas
cobrem os soldadinhos de chumbo de um manto branco

 
II.
despe Sebald… alguém
não é homem nem mulher
porque os géneros mentem –
A sua cara é feita de traição,
de traição os nervos, o contorno do queixo,
 o contorno das orelhas,
de traição os nervos,
 o viso, a expressão,
 de traição também o vento quente que lhe bate na cara.
Tem um derrame nos olhos por ter visto de mais,
e em todos os glóbulos a febre: Vermelha e branca -
Branca e Branca, como a ficha dos homens que fugiram -
 desenha a lápis um fundo onde morar
na expressão um afogamento interior
Desaparece como personagem, Heidi
 No lugar dela: uma memória magnética
Que acende os olhos, o derrame do centro
para onde a memória foi morar
 Ele ou ela disfarçado de noite porque os géneros mentem
Congelam na descida,
 o cair decidido no chão – rotundo,
Os nervos coloridos disfarçados de noite.



III.
Puseram uns patins no pónei branco
e empurram-no para cima do lago congelado
  os seus movimentos numa dança de susto,
O arfar do potro, o medo preso aos tendões
Uma respiração nervosa diz-lhe que sobreviva
O sangue a correr rápido
 o chão a fugir-lhe por baixo das patas
o espectador era só um: Toda a Gente.
O desenho que ficou no gelo, as marcas dos patins,
Da tracção, do espasmo, da dança dos reflexos,
as asas de uma borboleta
  no meio de um livro
 o último leitor fecha-o,
 noutra página um trevo de quatro folhas,
 outros amuletos ainda
ganham vida dentro da Montanha Mágica – Não será mais aberta.

 Falo de um entrar verdadeiro, um Entrar Magnético

IV.
Se nas mãos o mensageiro traz uma vela acesa
e se o mensageiro sofre de insensibilidade motora,
não dá conta que ela lhe queima as mãos
 e de arder todo o mensageiro se faz nova mensagem –
a expressão feita de muitas somas,
uma sede  de novo - foi toda para os olhos,
 desenha a linha da vida, o lápis, o pulso, o traço seguro
O fotógrafo da realidade pousa a máquina, sinal de abandono
 tem só agora a retina e no branco da parte de trás dos olhos,
as duas asas da borboleta, invertidas,
afogadas na representação da órbita
O coleccionador desta realidade faz uma nova cartografia do espaço,
 mas tem de ser ágil, a terra treme e muda muito rápido,
Surgem novas penínsulas, novas ilhas, novos medos onde antes era terra,
 e ao cartógrafo são exigidos reflexos rápidos,
porque também o mapa lhe foge por baixo das mãos.
O pulso seguro desenha a terra que treme
Só a velocidade lhe é permitida, como salvação e nela
a releitura do ódio parece-se com a releitura do amor.
Agudizam-se, chega-se logo aos pólos,
Talvez por isso ele foi morar para o centro.
O fotógrafo da realidade está desempregado, não porque não haja realidade (trabalho não falta) – mas porque o nosso século não permite mais a representação.
Também o cartógrafo. Resta-lhes o precário mas doce ofício de criar novos medos e neles entrarem
Dos teus olhos destilo uma Vontade Nova,
Todo o Desejo, toda a Viagem em nova anatomia
 a minha obsessão por braços, destilo das tuas mãos o caminho.
Da tua sede, a minha sede, da tua língua a minha vigília


V.
De todos os frutos se destila o prazer e o esquecimento
De todos os medos se destila a Crença – procuramos novas formas de beber
A viagem
não admite géneros, só procura -
de viagem a nova anatomia que rasga o universo à escala humana
Os dentes alinhados transmitindo coragem
os nervos tão seguros, os braços a remarem
por canais que abrimos e não se fecham

VI.
Na anatomia a minha obsessão por braços
Na geografia a minha obsessão por penínsulas:
Aquilo que entra –
E depois dos braços, as mãos, e depois os dedos
 extremidades, pontas que recebem e dão, por isso perecíveis, vulneráveis.
E depois penínsulas cada vez mais finas e estreitas,
 paredões, finíssimas línguas de areia que entram pelo mar:
parecem dedos, os Faróis,
pescadores solitários com a lancheira ao lado, namorados –
 Aqui nas pontas recebe-se e leva-se para o centro.
Ali um caminho ou uma artéria fina,
em direcção ao coração,
ao núcleo
Ele pede a sensação que as pontas lhes dão.
As flores roxas fecham-se à noite e as flores amarelas fecham-se à noite.
é no fundo das pessoas e não debaixo das botas
que se calcam os esqueletos das folhas de Outono -

VII.
os soldadinhos de chumbo que o pastor alemão deixou no chão
cobertos pelo manto branco da neve que continua ainda a cair
O frio foi todo morar para dentro, nos ossos, nas pontas dos dedos

Não é só a máquina que filtra, mas também os olhos
Deles nevam as lágrimas ou as estrelas
E elas voltam a subir para desenhar as nuvens do fundo
também da queda se faz subida:
Já não vertical – mas um espalhar-se contínuo, infiltra-se em todo o lado

Não sei de que ângulo a vi partir
Subia, subia
branca e branca era a montanha
Um moinho no cimo, um novelo dentro do moinho
Um cão a guardar o moinho – um pastor alemão
A cauda a abanar a assim que a viu, o riso foi todo para os homens
O resto da natureza ajuda a desenhá-lo
O que vi na tua cara – Mais Deus que qualquer outra coisa
Mais Criador do que tudo… o Branco cruza o Branco
Alguém me perguntou - De que falamos? De que falamos desde que nos conhecemos?
 Os faróis parecem dedos.

Nuno Brito

palavras de prefácio de um livro que se chama abraço




Os livros, esses animais opacos por fora, essas donzelas. Os livros caem do céu, fazem grandes linhas rectas e, ao atingir o chão, explodem em silêncio. Tudo neles é absoluto, até as contradições em que tropeçam. E estão lá, aqui, a olhar-nos de todos os lados, a hipnotizar-nos por telepatia. Devemos-lhes tanto, até a loucura, até os pesadelos, até a esperança em todas as suas formas

José Luís Peixoto

sábado, 21 de janeiro de 2012

Capital humano...


Capital humano…

“Tu, que me traças o perfil e me desenhas o fundo, ensina-me a cair nele, porque estás mais perdido do que eu”.
                                                                                                                                             Pastor Alemão

I.

Eram doze os irmãos do Renascimento português.
Onze deles: os irmãos do amolador romeno, estão à porta de hipermercados, cada um à frente de um supermercado do grupo Jerónimo Martins. Desceram a Europa. Ocuparam o lugar que antes pertencia aos lobos. Vão fumando os cigarros que o segurança lhes enrola. À noite juntam-se à volta da sopa e do pouco pão que há, o vinho fica todo para o pai que é doente e não pode trabalhar e quando não há vinho há problemas e os vizinhos chamam a polícia. Mas o amolador optou por outro caminho, outro canal de comunicação com a realidade portuguesa, um trabalho mais técnico. A de amolador de facas. Na Roménia tinha estudado música, mas o violoncelo já há muito vendido ocupava agora uma vitrina de uma loja de artigos em segunda mão em Constança. Levava o seu cão atrás e a bicicleta que foi  roubando às peças e construindo, só teve de esperar dois dias até encontrar o guiador que formava o conjunto. Foi trabalhar para o aeroporto e no amplo espaço vazio onde se cruzavam viajantes, o amolador oferecia os seus serviços. Era raro alguém ter uma faca, mas alguns iam com facas na mão, mas ainda mais raro era que  aqueles que as traziam, não as levassem suficientemente afiadas para os serviços que delas pretendiam (cortar o pão, o queijo – para as sandes da viagem, golpear um homem na barriga, descascar um ananás trazido da Madeira). Mas era compensador este trabalho sem remuneração, era especializado e nem só do local certo se faz o destino.

II.

À entrada de um aeroporto lusitano está o pastor alemão – os aeroportos lusitanos são os mais asseados, de longe os mais limpos e os melhores – São um espelho fiel da realidade do país e por isso o pastor alemão escolheu um destes (e não outro do continente europeu) para a sua partida. O pastor alemão encontrava-se cá fora, táxis, grupos a fumar à pressa, relógios nos pulsos.
Ele não tinha a certeza se ia começar uma viagem ou se tinha acabado de a fazer. Estava cá fora o herói desta narrativa, sem saber se entrava num avião ou se tinha acabado de chegar – Na verdade isso era um pormenor, porque a viagem é sempre contínua e nem sempre é feita de movimento mas de uma simples motivação do fundo. O pastor alemão olhou para o fundo, mas não havia fundo – Nenhuma rota traçada – Nenhum sinal de destino, apenas uma certa apatia feita de muitas pegadas, um delírio controlado que lhe deu vontade de beber. Na sua mala que abriu apenas havia búzios pequeninos e um livro verde e grande – Talvez a Montanha Mágica … Foi até aos quartos de banho, e ao seu lado um homem urinava – reparou que o urinol dele era de prata, o seu não. Era de cerâmica das Caldas – importada do interior para Lisboa onde outros estrangeiros a colocaram com todo o cuidado – O homem trazia uma mala – Na mala tinha búzios pequenos e dentro dos búzios novas histórias – Isso permitia-lhe construir um novo passado assim que chegasse ao Brasil – Construir uma vida nova – com um passado limpo – A “ficha limpa” era a sua obsessão, como se a a ficha fosse uma entidade paralela ao processo que corria no tribunal. Demoraria 10 anos a resolver e prescrevia – Mesmo assim era necessário ter todo o cuidado. Os aeroportos lusitanos são seguros para quem foge - têm urinóis de prata para quem os merece – O processo de branqueamento de capitais, o tráfico de relíquias de Cristo – sudários, dentinhos, rótulas recheadas de musgo – Era mais seguro ir para o Brasil que é grande, muito grande e depois as autoridades perdem o rasto e a ficha fica limpa, limpa e branca como um lençol.
O caso do pastor alemão não tinha paralelismo possível com o deste homem determinado e consciente do seu caminho, que já ia a meio (No Céu, dentro do avião da TAP a ler o Capital). O Pastor não. Não sabia do que fugia, nem se fugia, e muitas vezes fugimos sem saber que o estamos a fazer, é quase mecânico, tão mecânico como um espasmo, muitas vezes estamos realmente longe, realmente longe de tudo.

III.

Na actual conjuntura económica o grupo Jerónimo Martins trava uma luta enorme com uma cadeia de hipermercados rival, é então que um grande grupo de peritos em marketing é contratado e esse grupo reúne-se e decide-se por uma campanha promocional: vários cabazes de produtos a preços económicos – É feita uma lista de trinta cabazes de produtos, a preços muito baixos, um desses cabazes incluí 50 facas de cozinha, todas elas mal afiadas, mas a um preço compensador. O anúncio passa na televisão e o amolador romeno que estava num snack-bar ao lado do aeroporto vê-o e decide-se pela viagem até um Pingo Doce da capital; aí cria a sua pequena banca, a bicicleta, o som do aboio, com um pequeno organino chama os clientes, a música está recheada de um magnetismo animal que atrai os clientes para fora do supermercado, todos eles muito contentes com os seus cabazes optam pela primeira solução que lhes aparece: afiar as facas ali logo, e compensa porque o preço do cabaz com as 50 facas mal afiadas mais o preço que o amolador leva para as afiar não chega a 60% do preço dessas facas. E há esperança que um dia haja pão em casa e aí vão ser precisas facas para o cortar. O grupo Jerónimo Martins pensou nisso e começou a levar uma pequena percentagem ao amolador pelo serviço prestado, 40% do lucro do romeno era metido num pequeno saco e esvaziado nas seis registadoras do supermercado. Facilitava os trocos.

IV.

O pastor alemão lembra-se subitamente da sua namorada – Dá-lhe um baque tremendo esta recordação magnética – Puxa-o para o fundo – Várias cordas – Sente necessidade de uma ponta, uma ponta segura que o ligue aos canais da realidade, BAQUE, é violento o que uma memória-fêmea pode trazer, um tornado-menina a calçar-se, a percorrer todo o aeroporto lusitano de um susto maior que por o ser, não deixa de ser doce. Os seus olhos iluminam-se, o branco dos olhos desaparece. Foi todo para as nuvens que os aviões rasgam, numa dessas viagens podia já estar ele, mas está de certo o fugitivo da justiça portuguesa a pensar na ficha limpa que associa ao branco. Se calhar já chegou e começou uma vida nova, gere um vasto capital humano. O pastor alemão não tem ficha e nisso lembra-se, as fichas são caras, tudo tem o seu preço. E novamente a recordação da namorada e o sangue a correr todo ao coração onde uma aparição mariana lhe desperta todos os sentidos, lhe bombeia a música para as extremidades. E ele lembra-se – Não estou aqui pela viagem, mas para saber um pouco mais sobre a morte. E por isso vim. Não porque vou ou porque acabo de regressar. Mas para saber mais, o amolador de facas sabe muito sobre a morte e é com ele que devo falar.


V.

Procura-o, em todo o lado, e não há sinal dele, uma das empregadas da limpeza diz que não o vê há muito tempo mas que acha que ele emigrou para o Pingo Doce mais próximo porque é o que todos fazem a conselho dos nossos ministros. E o pastor corre com a sede toda nos olhos, avisam-no que o Douro subiu, há muitos anos, na verdade foi muito tempo a espécie de hibernação no aeroporto, trazia a mala, os búzios, sem passado dentro. O gondoleiro ajudou-o a subir para a barca, perto da estação de São Bento, depois seguiram pelos canais estreitos do Porto. Ali uma torre torta, gémea de uma outra torre torta, ali um barco ambulância a rasgar as águas, ali uma gôndola funerária a perder-se pelos canais, perto da Rua das Flores. E é estranho o ideal que os move, os braços seguros do gondoleiro, o remar forte que cria a rota onde nada se escreve. Não fica registo de nada, de nada. Mas há ainda a mala com os búzios sem passado e um desassossego tão português atravessa os canais, contorna a cidade e avisa o pastor alemão que é impossível ver de cima. O desconforto prende-se aos pulsos, serve de óculos, uma radical armação que filtra a realidade, são todos os ângulos dentro da mala, não convém abri-la. O som do organino que o romeno toca alerta o gondoleiro e o pastor que está para breve o conhecimento da morte. Ele sabe, como qualquer amolador, muitas coisas sobre ela. O som está cada vez mais alto. À porta do Pingo Doce muitas gôndolas paradas, e os homens saem com os seus cabazes. O amolador já lá não estava. Tinha reunido o dinheiro suficiente para o dia e agora os doze irmãos em casa, uma cegonha no lugar do pai - ela não bebia. Esperavam o pastor. A assembleia foi honesta, sincera com o seu próprio fundo, como só um animal paciente pode ser. Discutiu-se o capital humano, o inumano de tudo isto, estabeleceu-se um plano de fuga. Não passava pelo aeroporto. 

Nuno Brito

Poema inútil com montanha


Vejo a montanha à minha frente pousada
Sobre a água sempre verde, e penso na inutilidade
De tudo o que ela é, e na inutilidade de estar pensando nisto,
Quando um pensamento inútil me sugere
Que a montanha pode ser
Um pormenor pensado por ela
Na paisagem do meu próprio pensamento, para
Com isto me levar a pensar sobre pensamentos,
E não sobre montanhas, ficando ela, como antes,
Pousada na água sempre verde, sem ser
Pensada por ninguém.

Rui Costa 
em A Nuvem Prateada das Pessoas Graves (2005)