quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Amor na frigideira

Reconheço esse teu andar divagante
em fatias miudinhas.

Esse teu refogar vulcânico,
em fogo quente e azeite abundante.

Esse teu perfume basilico, made in Italy.

Uma pitada de sal e derreto-me.
Uma invocação de toque e
aloiro vontades.

Anseio por um copo de vinho branco,
seco.
Ficar bem macio.
Descascar-me.

Anseio por uma colherada de pau
Colher-te
de pé
Comer-te.

Anseio polvilhar-te.
Verte-me em ti,
às postas.

Havemos de trocar revoluções em barra,
testar habilidades balsâmicas,
marinar pele na pele, em lume brando.

Havemos de levantar fervura,
explodir a carne apurada,
untada,
suada.

Havemos de cozinhar probabilidades,
(em 5 decilitros de qualquer coisa),
á deriva com manteiga inexperiente
e arroz bem solto.

Havemos esmorecer condimentos.
Esquecer o confeccionado.
Arrefecer,
até engrossar.

Havemos de concluir que
o amor é uma cebolada.

O robalo





O acaso predomina por volta do meio-dia
hora indistinta de refeição matutina.
Um restaurante vazio. Os últimos talheres
e a mesa ao fundo de chapéus de cozinha,
aventais de bolsos largos, alças limpas;
o último descanso antes de mais um dia.

Apenas meia-hora e chegam as formigas
e algumas cigarras que falam, falam, falam
pelas mãos, pelos cabelos em desassossego.
Um robalo, filetes de pescada, coelho estufado.
Aguardam pacientes as iguarias;
arrefecidas, sózinhas; se tivessem lágrimas
talvez usar toalhas em vez de guardanapos.

Vem a propósito a mesa contígua:
“ Não imaginas o sufoco, o frio, o jeep
um continente de filamentos brancos
uma paisagem de névoas, muitas e finas
como se nem céu nem estrelas
que cintilam, salvam e iluminam.
Tan-tan-tan e nada, avariado o abominável
e nós parados, a despedir vida
na fúria que consumia o convite:
Gostas de neve? Que tal as montanhas da Suíça?
Que frio. Que frio. Que frio. Não imaginas.
No infinito. Tanta sede. Tanto gelo.
Água! Dêem-me água! Não! Não! Whiskie!
Uma garrafinha térmica de boca pequenina!
Que frio. Não imaginas!
E ele! Impávido olhando o carro!
O túmulo! O parvo! Como se aquela lata
fosse um filho fraco que precisa de cuidado.
Ser corrigido. Que raiva! Que desvario!
Dois pontapés assentes nas rodelas de borracha.
Maldito jeep!”


Coloquei auricular ao fazer de conta, inventar:
“Sim! Claro! Naturalmente! Em Santa Catarina.
Os documentos. O B.I. , o número do contribuinte.”
O ar alheado de quem nem ali está
pedindo por fim laranja, doce em fatias.
Mas no fundo a voz de rapina, inaudível:
“Não parem. Vá lá. Faço-me pequenino.
Pego num livro. Continuem as fantasias.”

Na mesa contígua, ali ao lado:
“Bem te disse! Fim de ano decente
pede pedras de granito e uma lareira
a alegria em casa dos amigos;
os corridinhos, os sambinhas, palavras soltas
disparos de rolhas de cortiça
enquanto há pés de dança e energia.
Desta dita durou até às tantas
quando a lua bocejou, abriu os braços
teve preguiça – deitou a noite subiu o dia.”

Doze gramas de açúcar não é bom para a glicose
mas depois de me obrigarem na longínqua Inglaterra
prazeres de café amargo, gosto dele muito doce.

Na mesa contígua, ali ao lado
um prato vazio, não há restos
apenas faca e garfo, encostados
e o guardanapo abandonado.
Do outro o robalo, vestido de Inverno
de soslaio, olhar de vidro, prateado
resiste.

“ Não consigo! Não quero! Faz-me lembrar o frio.
Que frio! Que frio! Não imaginas!”

Levanto-me. A conversa pára.
Cá fora assobio e sinto quente a alma
mas arrasto de surpresa os pés frios
como se dois cubos de gelo...

Deslizo e medito:
“Queres ver que o robalo...”-

Dobrada à moda do Porto

Na sequência de um desafio lançado aos antigos participantes nos cursos de escrita criativa em poesia com a poetisa Ana Luísa Amaral surgiram vários poemas da autoria dos participantes e de alguns poetas por demais conhecidos. O tema proposto era sobre algo que se associasse a culinária ou alimentação. Como exemplo foi lembrado o poema do heterónimo de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, "Dobrada à moda do Porto":



Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...
(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei multo bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.

Álvaro de Campos

( Na sequência deste surgiu o já publicado "Chávena de chá" de José Almeida da Silva e outros que vão ser publicados)

Chávena de chá

Sublime a chávena de chá deste fim de tarde.
Surgiu dela a tua imagem de menina. O chá
Não estava forte. Não estava. Chamemos-lhe
Afecto ou tisana. De facto tornou-se um momento
De quente harmonia. Vi-o reflectido nos teus olhos
E na indómita vontade que me invadiu de ficar assim
Contigo para sempre. O bem-estar é doce e líquido
Como o sangue – fonte de vida sem sobressaltos –
Em que é dual a liberdade. E estou certo. Sim, estou
Certo de que a tisana ou o afecto deste fim de tarde
Inscreveu em nós sossegadamente a eternidade.
(03.02.007)
José Almeida da Silva

Fora e dentro

Lá fora os relâmpagos iluminavam
A escuridão das ruas e o medo
Dos trovões e os raros transeuntes,
Os automóveis moviam-se a custo,
E a chuva transformava a cidade
Em rios de lama e mares de aflição.

Cá dentro a amizade destilava-se
Em conversas, unia os poetas à mesa
Dava lugar à memória longínqua
E próxima da poesia e dos poetas
E as provas tipográficas de toda
A poesia da poeta maior – 500 páginas –

Ali sobre a mesa e ainda dois livros
Que não vieram jantar, mas vão chegar
À gráfica e depois aos ávidos leitores.
Urdiram-se encontros mensalmente
– Não pode perder-se o hábito
Da reunião salutar da poesia –

Da Mestra e dos discípulos –
Aprender pede uma eternidade
Só assim se tece a liberdade
E se derrubam fronteiras
E as pulseiras com que as normas
Destinam o destino e o caminho.

[Uma pinga na mesa entrelaçava
O fora e o dentro e o momento.]

Leça da Palmeira – à beira-mar – é lugar
De ventos por achar. É lá que vive
Em memória o Nobre António
Do lado de lá da Casa de Chá
Desenhada por Siza, o Arquitecto.
E no interior da marítima cidade,

Junto à Igreja Matriz, repousa o Poeta.
Vive Só como sempre se sonhou
No meio de lembranças e saudades
Sem esperanças de voltar à Torre
De Anto. Os seus versos, um espanto.
Só desassossegos e lamentações.

Lá fora, sem dó, cai chuva a rodos,
Continua o vendaval em liberdade.
Era melhor a chuva de molha todos,
Saíamos para a rua e colhíamos Poesia
E se fosse início de Setembro engordava
As uvas – néctar de deuses e da alegria.

Cá dentro o relógio empurrava-nos para fora.
Saímos mesmo assim, aberto o guarda-chuva.
Os carros estavam longe. Veloz, o vento soprava
Rajadas fortes, indiscretas. E a casa lá longe
– Um paraíso ao alcance de uns quilómetros,
Simples versos, inscritos num recanto do presente.
(02.01.2010)
José Almeida da Silva