quinta-feira, 11 de novembro de 2010

não sei como falar-te nos dias intermédios


Alfred Sisquella "Ao levantar-se" 1942


não sei como falar-te nos dias intermédios.
sobre um leito de nuvens, o sol, amarelo, deitado.
sobre a rua a luz branca e o movimento
a cidade cinzenta, e no entanto a ameaça
de um fogo incidente, que não se vê
que não sucede, que não se mexe
permanece no silêncio, como um espírito
que se sente e não diz quando.

não sei como falar-te na voz dos pássaros
aqueles trinados de folha em folha, de ramo em ramo
como naquela tarde mais segura, vinda de dentro
qual marioneta sem saberes de pensamento
seguindo uma mão de sol, um braço sem relento
um rosto onde os cantos dos lábios
bem sabes, como a lua, um berço crescente
balouçando o mar ao som de uma ária ;
uma harpa, um violoncelo, um piano -

não sei como de novo falar-te, prometer
um rio de ouro em grito lancinante, sem medo
um gomo húmido e tangente, 50 000 estrelas
uma nuvem sem tempo, sem pressa, sem ausência -

tudo depende desse lugar que sempre mostra
sem possibilidade de ordem, a fantasia e a pedra
a filosofia e a fome,o icebergue e o fogo
o Id sem ego -


não sei como falar-te, não sei como dizer-te
apenas sei que nos dias intermédios, me lembro
e não sei se me conheço -

Desde a orla do mar


Antínoo Atenas Templo de Delphos


Desde a orla do mar
Onde tudo começou intacto no primeiro dia de mim
Desde a orla do mar
Onde vi na areia as pegadas triangulares das gaivotas
Enquanto o céu cego de luz bebia o ângulo do seu voo
Onde amei com êxtase a cor o peso e a forma necessária das conchas
Onde vi desabar ininterruptamente a arquitectura das ondas
E nadei de olhos abertos na transparência das águas
Para reconhecer a anémona a rocha o búzio a medusa
Para fundar no sal e na pedra o eixo recto
Da construção possível

Desde a sombra do bosque
Onde se ergueu o espanto e o não-nome da primeira noite
E onde aceitei em meu ser o eco e a dança da consciência múltipla

Desde a sombra do bosque desde a orla do mar

Caminhei para Delphos
Porque acreditei que o mundo era sagrado
E tinha um centro
Que duas águias definem no bronze de um voo imóvel e pesado
Porém quando cheguei o palácio jazia disperso e destruído
As águias tinham-se ocultado no lugar da sombra mais antiga
A língua torceu-se na boca de Sibila
A água que primeiro eu escutei já não se ouvia

Só Antínoos mostrou o seu corpo assombrado
Seu nocturno meio-dia

Sophia do Mello Breyner Andresen