quinta-feira, 27 de maio de 2010

Cerejas do fundo*

Uma rapariga comia cerejas, descalça na praia, e as ondas vinham e levavam os caroços. E no fundo do mar os caroços davam cerejeiras. E no cimo, com os pés molhados e salgados a rapariga comia cerejas numa praia perto de Nagasaky. Um cogumelo de fogo e fumo formou-se no ar e o mar contraiu-se com as cerejeiras no fundo. E a sombra da rapariga continuou a comer a sombra das cerejas: E as sombras dos pára-quedistas descem, fluorescentes no ritmo sobre a tarde roxa: e a sombra roxa recheia de susto os pescadores, todos eles com ametistas nos bolsos.

Mais tarde Mina cantaria Nagasaky Blues.

Nuno Brito

Os que levam

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De vez em quando uma língua de mármore entra no Aleixo, por entre as nuvens, e leva uma criança: Se a língua quiser leva duas crianças, se lhe der vontade a língua tira três ou quatro grupos de crianças aos seus pais e desaparece. Os pais vão à Segurança Social e a língua não devolve as crianças: E os pais pedem à língua uma segunda oportunidade; que vão tratar da vida, ter rendimentos: A língua recolhe-se para dentro do edifício burocrata e volta sem trazer nada.



Nuno Brito

As Paliças

Estava sentado numa taberna perto dos Clérigos, quando me chamou a atenção a conversa que dois homens tinham à porta enquanto fumavam: ÓH Paliça! – A Paliça que vi pelo vidro cheio de publicidade à Sumol, fez-lhes um sinal obsceno e continuou.

Um deles disse: Esta, se lhe pagarmos uma bola de Berlim ela chupa-nos durante uma hora. A desdentada anda cheia de fome. Parece uma cadela: – Os outros riram-se. A paliça continuou com o cabelo curto e branco, cheia de eczemas na cara.


Mais tarde ao entrar em casa, vi descer pela rua a Paliça, meti conversa com ela; vinha com uma saca com um frasco de metadona e alguns pêssegoa, explicou-me que o seu filho lhe pediu para deixar em casa o frasco, e comia um pão ressesso, que os poucos e frágeis dentes da Paliça iam trincando como um ratinho, mastigando muito tempo para os amolecer com saliva.

A Paliça pediu-me um euro – Eu dei um euro à Paliça e ela deu-me um beijo com a cara cheia de batom de uma loja dos trezentos. Convidou-me a ir a casa dela. Tinha muito gosto que conhecesse asua casa. Falou-me do filho de uma forma vaga. Que estava na prisão a cumprir sete anos, e amanhã ia a Custóisas e lhe ia levar Pêssegos e cerejas e uma caixa de bombons, pediu-me mais um euro, enquanto subíamos. Percebi que a metadona não era para o filho. A Paliça tinha-se habituado a comprar no cimo da rua a um vizinho. Porque o filho estava a ser perseguido por dívidas e não podia ir ao CAT e um dos vizinhos, antigo frequentador do CAT que voltava a recair na heroína, ia todos os dias ao centro para a comprar, e fazia o tráfico dos frascos. A Paliça ia comprar para o filho quando ele estava ainda em casa. Depois ele foi apanhado a vender e foi para Custóias; e a Paliça ia comprar metadona para si. Traficava o seu corpo, e isto não era violento nem atroz, era simplesmente natural; E pensei que nenhum aforismo de Cioran se podia adaptar à vida da Paliça e que nenhum outro aforismo produzido pela humanidade se podia jamais adaptar a uma situação vivida pelo homem. Comemos pêssegos na cozinha. A Paliça parecia-me muito com uma figura que tinha visto no museu da cera em Fátima, quando era criança: uma figura anónima, que num conjunto de outras estátuas tapavam com os seus braços de cera, a luz que irradiava do sol e da aparição mariana. Cera incrédula que se convertia ao milagre. A Paliça disse para eu descontrair no sofá. Imaginei que não queria que a Paliça me chupasse, isso seria sexo oral feito entre duas estátuas de cera, isso assustou-me: Escultura que soube anos mais tarde, tinha sido feita por um artista plástico dinamarquês. Falei-lhe que era escritor e a Paliça, tal como Julian Artl e DJ Kant aconselhou-me a não escrever. Fui comprar fruta e bombons para a Paliça levar ao filho e fui para São Bento apanhar um comboio aleatório. A viagem que comprei acabava perto. Regressei várias vezes ao Porto e visitava com frequência a casa da Paliça, víamos no sofá os programas da manhã, os concursos da tarde, as telenovelas da noite, e outra vez os concursos que ficavam entre as telenovelas e os concursos. A Paliça tinha o comando.


Nuno Brito

fogo nas palavras


Matisse


se deixasse cair o corpo como página
de um livro, um romance, uma fábula
de centenas de palavras
ler-me-ias com cuidado?

nas mãos de um fogão de sala
no fumo de um braço de acácia
despindo cinzas depois de brasas
sem o corpo por imagem
ler-me-ias com cuidado?

no estalar dos dedos
ressoando os cantos da sala
na distância de uma grande estrada
na proximidade de um fogo nas palavras
de verona, de varandas, sem venenos
ler-me-ias como página?

na moldura ausente de um quadro
onde a árvore, o canto de ave reflectido
no grande espelho de um lago de metáforas
e lábios, lábios de asas
voando vassalos, voando vassalos
ler-me-ias como página?

como raíz maior que atravessa o planeta
toda a terra, de uma seiva que não seca
sublimando sementes ebulindo sentimentos
ler-me-ias como página? com cuidado?
sem o corpo como imagem?
se -