segunda-feira, 29 de março de 2010

penélope - a canção de primavera


Jonh William Waterhouse " a song of springtime" 1913

preso,penélope, preso
na memória dos teus seios
que em sonho abres qual cisne de lábios grossos
em dança branca na altura de dois braços.

luzes,penélope, luzes
nos faróis helenos de fogueiras nas muralhas
onde adormeço células de cordas tensas
no círculo veloz de sangue enfermo;
caminhante de desejo .

desconheço, penélope, desconheço
as invejas de helena, as fúrias de aquiles
só não gosto destes muros onde esmoreço
de espada à cinta, lassa, sem deslizes.

ainda,penélope, ainda
trabalham agulhas sobre as águas
na esperança de um barco à vela,
uma jangada, uma tábua colada de dedos
e o corpo, o corpo forte de ulisses.

resistes,penélope, resistes
e sei que um dia não serão só raios
sobre o ulmeiro de ítaca
nem só lágrimas de noite no destecer de tecidos.
a luz exacta de uma seta surgirá no teu pranto
e o fim dos pretendentes.

levaremos argus e o alaúde de ébano
voltaremos a visitar os campos -

O último andar

No último andar é mais bonito:
do último andar se vê o mar.
É lá que eu quero morar.

O último andar é muito longe:
custa-se muito a chegar.
Mas é lá que eu quero morar.

Todo o céu fica a noite inteira
sobre o último andar.
É lá que eu quero morar.

Quando faz lua, no terraço
fica todo o luar.
É lá que eu quero morar.

Os passarinhos lá se escondem
para ninguém os maltratar:
no último andar

De lá se avista o mundo inteiro:
tudo parece perto, no ar.
É lá que eu quero morar:

no último andar.


Cecília Meirelles (Rio de Janeiro, 1901-1964)