quarta-feira, 29 de junho de 2011

Um poema de Miguel - À Beleza




Não tens corpo, nem pátria, nem família,
Nem te curvas no jogo dos tiranos.
Não tens preço na terra dos humanos,
Nem o tempo te rói.
És a essência dos anos,
O que vem e o que foi.

És a carne dos deuses, o sorriso das pedras
E a candura do instinto.
És aquele alimento
De quem, farto de pão, anda faminto.
És a graça da vida em toda a parte,
Ou em arte,
Ou em simples verdade.
És o cravo vermelho,
Ou a moça no espelho,
Que depois de te ver se persuade.

És o verso perfeito
Que traz consigo a força do que diz.
És o jeito
Que tem, antes de mestre, o aprendiz.
És a beleza, enfim! És o teu nome!
Um milagre, uma luz , uma harmonia,
Uma linha sem traço…
Mas sem corpo, sem pátria e sem família,
Tudo repousa em paz no teu regaço!


Miguel Torga "Odes" 4ªed. 1977

se alguém disser que morri, avança até à varanda do céu


Tamara Lempicka

se alguém disser que morri, avança até à varanda do céu,
escuta a noite e recolhe o meu corpo da espuma dos planetas.
não deixes que o meu rosto se dissolva nas tuas mãos,
insiste no meu nome até que o mar ascenda à tua boca.
e de luar em luar celebra o coração que fiz teu, mudamente,
como se o amor fosse sobreviver às veias paradas de sangue.

Vasco Gato "Um mover de mão" Assírio & Alvim

terça-feira, 28 de junho de 2011

Um poema de Emily - Vou dizer-te como nasceu o Sol


Annie Leibovitz

Vou dizer-te como nasceu o Sol -
Uma Fita de cada vez -
Os Campanários nadando em Ametista -
As Notícias corriam, como Esquilos -
Os Montes desatavam os Chapéus -
As tristes-Pias - começavam a cantar -
E eu disse baixinho, para mim -
"Há-de ter sido o Sol!"
Mas como ele se pôs - isso não sei -
Parecia ser escada carmesim
Que meninos e meninas de Amarelo
Estivessem a subir e a subir -
Até que chegando do outro lado,
Um Pastor todo vestido de Cinzento -
Erguesse suave as Trancas da noitinha -
E levasse consigo o seu rebanho -

Emily Dickinson "Cem Poemas" Relógio D'água Trad. Ana Luísa Amaral

segunda-feira, 27 de junho de 2011

a carta, Brahms e um quadro



escutava as quatro baladas de Brahms
enquanto colocava um pouco mais de cor
na tela incompleta em frente da janela.

as mãos lentas mas precisas no rigor minucioso das linhas
preenchiam as quadrículas pré-estabelecidas,
fruto de um impulso indefinido e interior
talvez ditado por Atena ou uma outra deusa que desconhecia;
construía uma rainha vestida de ganga
de olhar penetrante e sapatilhas laranja.

três meses de distância -
naturalmente as chuvas permaneciam assim como a melancolia;
a carta, a carta a meio que havia escrito um destes dias -
procurava sossegar as dúvidas, construir o refúgio -
uma pintura -
e os dedos de Ashkenazi colados na música -

colocou mais azul e um pouco de branco;
um não excesso de céu porque sem nuvens só o deserto
um chapéu de palha, largo,gasto
uma trança de lado, índia, e um laço
percorrendo o ombro; esquerdo ou direito?
pensou um pouco -

nada de prédios, um lugar fora do tempo, diferente
um campo feito de silvas, arbustos , árvores -

o sol percorreu a esquina do telhado
tornou-se forte em frente da janela e deixou a sombra
primeiro no piano e depois ao longo do gato branco;
sentia-se cansado como se tivesse lavrado um campo
cavado um poço ou erguido em pequenas pedras de granito, um muro -
puxou uma cadeira, sentou-se pesado como um tronco
um braço sobre a mesa -

uma luz, uma pequena luz, oscilava lenta
como se do quadro um pêndulo
um, dois , um , dois, a hipnose -

uma aragem percorria os fios unidos do cabelo
e invadia no quarto os cantos da parede -

na intimidade do quadro as árvores tinham copas vermelhas
as folhas eram amarelas e as flores verdes -
as mãos, as mãos eram brancas -
o brilho nos olhos, flamejante -
os lábios falavam -

a carta, estava muito cansado, a carta -
a carta, Brahms, o quadro -

José ferreira 26 Junho 2011

Puma Bartolomeu Júpiter



Puma Bartolomeu Júpiter acaba de receber, summa cum laude, a maior ovação da sua vida. É uma torrente eléctrica de mãos na intermitência histérica e sublime dos aplausos, uma plateia antiga que ergue do nada um exército de rostos convencidíssimos e cauterizados, entre o rigor atrófico, a inveja fúnebre e a transpiração, e, como se isso não bastasse, o estertor das palmas das mãos de quem, finalmente, compreende, sofre um verdadeiro ataque de compreensão e fornece, por isso, ao escândalo protocolar, uma dose extra de cinismo e elegante mal-estar.
A tese de Júpiter é aparentemente muito simples: Júpiter provou que o amor dissolve-se no sexo, antes mesmo de lhe tocar. Partiu primeiro e até por intermédio das analogias da ingenuidade do composto fictício de Asimov, a “thiotiomoline”, composto este que se dissolveria em água antes mesmo de lhe tocar, e transferiu as propriedades da “thiotiomoline” para o amor e as da água para o sexo.
À forçosa semelhança de Asimov, Júpiter acreditava que o amor (100% solúvel no sexo) antecipava materialmente a sua solubilidade, porque, é ele que escreve, “há no composto raro do amor um registo espacio-temporal cindido, onde o átomo de carbono cria ligações químicas apaixonadamente reactivas à estabilidade física geral”.
O mundo não teria mudado sem esta tese de Júpiter. A sua invenção foi de tal forma sobrevalorizada, o nome de Júpiter foi tão ouvido e citado, dentro e fora da academia, que tudo se tornou previamente solúvel em tudo, tudo com o seu átomo de carbono instável, tudo com a sua face dupla e miserável, tudo com a sua insurreição temporal.
“Há um momento – pensa Júpiter, esmagado pelos aplausos – há um momento em que alguma coisa me leva a descrer profundamente na espécie humana. É como que se eu não fosse inteiramente solúvel nela e nos seus e nos meus argumentos armados viesse à tona o cadáver louco da sua antecipação.”

domingo, 26 de junho de 2011

Inscrição - Escrever um poema é ensaiar uma magia menor


Salvador Dali


Escrever um poema é ensaiar uma magia menor. O instrumento dessa magia, a língua, é assaz misterioso. Nada sabemos da sua origem. Só sabemos que se ramifica em idiomas e que cada um deles consta de um indefinido e mutável vocabulário e de um número de possibilidades sintácticas. Com esses inacessíveis elementos formei este livro. ( No poema, a cadência e o ambiente podem pesar mais do que o sentido).
É seu este livro Maria Kodama. Precisarei dizer-lhe que esta inscrição compreende os crepúsculos, os cervos de Nara, a noite solitária e as populosas manhãs, as ilhas partilhadas, os mares, os desertos e os jardins, o que o esquecimento perde e o que a memória transforma, a alta voz de almuadem, a morte de Hawkwood, os livros, e as gravuras?
So podemos dar o que já tivermos dado. Só podemos dar o que já é do outro. Neste livro estão as coisas que sempre foram suas. O mistério que é uma dedicatória, uma entrega de símbolos.

Jorge Luís Borges ”Os conjurados” Difel 1985

sábado, 25 de junho de 2011

uma pequenina luz de Jorge de Sena




Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una picolla... em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indeflectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha.



Jorge de Sena
1919-1978

Antologia Poética
Jorge de Sena; edição de Jorge Fazenda Lourenço
Guimarães Editores

sexta-feira, 24 de junho de 2011

não queiras acordar as palavras durante o dia



não queiras acordar as palavras durante o dia, dormitam
vê como respiram -
depois a lua abre os olhos e as palavras esticam os braços
vê como espreguiçam -
e juntam-se em células de escrita como um tecido;
depois um corpo e um outro ainda
vê como se alinham -
tornam-se fortes, ao sul, ao norte
e preferem o mar que é vasto, largo, infinito -
vê como ensinam os ecos redondos
e escrevem um caminho
pelos reflexos brancos das ondas
iluminando as sombras negras, as culpas em fatias
esquecendo tudo e voando por cima -

vê como descansam, agora que é de dia
vê como voltam pela noite, suaves e invisíveis
rodeando
os teus olhos de Afrodite, o teu corpo de ninfa
e caindo
na prata das mãos, no ouro das linhas
como chuva de sedas, escorrendo na forma de letras
a cor permanente das tintas
e subindo, de seguida, pelo tronco dos cabelos aos ramos dos ouvidos
soprando o vento azul dos sensíveis, os versos, invisíveis;
uma cortina de lábios
por todos os lados, em uníssono
desfolhando as pétalas dos poros, síncronas e decisivas -

as palavras incompletas são como as malhas de Penélope
os versos, como os trabalhos de Ulisses
quanto ao pêndulo do tempo, não diz quando
mas pelo sal doce das vagas e pelo salto dos golfinhos
anuncia Ítaca -


José Ferreira 23 Junho 2011

quarta-feira, 22 de junho de 2011

a explicação do silêncio


Robert Doisneau

não saberia explicar o silêncio
o qual, no maior ruído absolutamente inaudível
não representava a desistência unívoca;
se de um lado um véu sem cor cobria as cortinas
do outro o deserto sem janelas e os raios fulminantes
fixavam ainda mais a frescura das palavras antigas;
a descer as nuvens, a percorrer planícies, a subir montanhas
e por fim, a seguir os rios pelos ombros comprimidos
até ao diminuir das ondas, o torná-las pequeninas;
tempos bons, tempos plenos, um mar liso -

não saberia explicar o silêncio
os dias eram os mesmos, gradualmente recuperando as margens de luz
nos passos que se arrastavam pelas sombras das árvores verdes
ou nas corridas forçadas por uma ordem, a mensagem, uma rotina de cidade;
a filosofia não explicava, não dava a anterior certeza da seta
de dias luminosos, permanecia a incerteza
e uma certa imobilidade ímpia, um céu escuro, de dia -

não saberia explicar o silêncio, o eclipse
quando o olhar se cruzasse de novo no preto e branco das fotografias
não saberia apagar o incêndio, os dias dolorosos de searas queimadas
dentro dos infinitos da pele irrigados nas artérias de versos
pelo lado de dentro, absolutamente imperceptível
exteriormente -

agia na transparência do rosto, suave no face a face;
um ligeiro levantar dos lábios, um sussurro sempre que alguém
uma palavra, sempre, uma frase mais completa e de sentido, sempre
quando alguém, alguma, ou mesmo uma chamada, do outro lado da linha
sempre, quando alguém se lhe dirigia e pretendia escutar o fim de um silêncio
tão calado, cronometrado no tic-tac ; um passo, dois passos.
por vezes imaginava, interiormente, um submundo de operários de Metrópolis
acertando as luzes nas múltiplas janelas dos prédios que invertiam os abismos
e reflectiam uma prosperidade oca de viadutos, estreitos, sem fim
verdadeiros labirintos mudos cortados pela força sonora dos violinos
dos metais, dos ruídos rufados de uma tumba de percussões
que invadiam as massas por entre danças hipnóticas nos destroços da máquina
enquanto o dilúvio ameaçava a barca dos últimos filhos -

não saberia explicar o silêncio, de mais um dia
uma multidão de tempo nos ponteiros da vida, minutos falecidos, gastos
sem qualquer substância, sem alimento entre o pensar e as mãos
sem um coração pelo meio que ditasse nos subúrbios da razão
o lugar das reticências, as gotas d’água sensíveis nos olhos irreflectidos -

não, não saberia nunca explicar o silêncio
nem a enorme força interior - a anterior chama ardente que iluminava os dias
seda, semente e nascente de tantas palavras que brotavam multifacetadas
surpreendentes, em muitas cores de tulipas, em esguias e humanas
estrelícias, palavras vaporizadas na delicadeza impregnada de bons perfumes,
de jacintos, de rosas laranja, de jasmins;
e por vezes as pálpebras caíam no sonho profundo de ter os pés elegantes
percorrendo as imperceptíveis marcas no soalho, deslocando-se pela sala
numa valsa, uma dança, de rosto direito e olhos brilhantes;
aquele desejo não realizado de decidirem qual o canto iniciático
e percorrerem um a um, rodando, rodando, rodando, todos os cantos
todos os outros cantos, esvoaçando e esvoaçantes.


não saberia explicar o silêncio
nem até quando -

surgiu de súbito uma ambulância branca de lâmpada acesa
em gritos de cruz vermelha, e todos os habitantes da rua
viraram a cabeça, rodopiando;
um táxi parou junto ao passeio e despejou uma senhora de lantejoulas
um mendigo exigiu a presença de um euro
uma criança de dois anos correu para uma Collie altiva
um carteiro de ar indeciso reviu o jogo observando as cartas
e entregou-as certas, duas para o 1º esquerdo, três para o 5º, à direita

a cidade em cada minuto apresentava um quadro, movimentava-se
mas mesmo assim, envolvido na massa
não saberia explicar o silêncio, a ausência
sentiu um manto de tristeza naquela hora de ponta -

primeiro a vibração móvel, depois a música de Viena
procurou, procurava, onde estava?
na montra da loja um cinema mudo de um noticiário
não era tarde, acertou o ritmo dos passos, quase voava
não sabia como, quase voava -

um carro travou de repente, um quase acidente
um som de flauta numa janela aberta repetiu uma estrofe de pauta
uma quase música
um casal de namorados abraçava-se e quase juntou os lábios
passou um autocarro de dois andares.

quase voava,quase voava, os pés apressados.
chegou. a campainha tocou.
a cortina de renda com o cisne do lago, oscilou.
uma cadeira de baloiço abandonada. alguém descia.

uma brisa amenizava o suor na camisa. sorria;
o primeiro dia de há muitos dias -


José Ferreira 21 Junho 2011

terça-feira, 21 de junho de 2011

O tempo presente e o tempo passado


Fotografia de Exposição "José Barrias" em Serralves



O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro,
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo o tempo é irredimível.
O que podia ter sido é uma abstracção
Permanecendo possibilidade perpétua
Apenas num mundo de especulação.
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.
Ecoam passos na memória
Ao longo do corredor que não seguimos
Em direcção à porta que nunca abrimos
Para o roseiral. As minhas palavras ecoam
Assim, no teu espírito.
Mas para quê
Perturbar a poeira numa taça de folhas de rosa
Não sei.
Outros ecos
Habitam o jardim. Vamos segui-los?
Depressa, disse a ave, procura-os, procura-os,
Na volta do caminho. Através do primeiro portão,
No nosso primeiro mundo, seguiremos
O chamariz do tordo? No nosso primeiro mundo.
Ali estavam eles, dignos, invisíveis,
Movendo-se sem pressão, sobre as folhas mortas,
No calor do outono, através do ar vibrante,
E a ave chamou, em resposta à
Música não ouvida dissimulada nos arbustos,
E o olhar oculto cruzou o espaço, pois as rosas
Tinham o ar de flores que são olhadas.
Ali estavam como nossos convidados, recebidos e recebendo.
Assim nos movemos com eles, em cerimonioso cortejo,
Ao longo da alameda deserta, no círculo de buxo,
Para espreitar o lago vazio.
Lago seco, cimento seco, contornos castanhos,
E o lago encheu-se com água feita de luz do sol,
E os lótus elevaram-se, devagar, devagar,
A superfície cintilava no coração da luz,
E eles estavam atrás de nós, reflectidos no lago.
Depois uma nuvem passou, e o lago ficou vazio.
Vai, disse a ave, pois as folhas estavam cheias de crianças,
Escondendo-se excitadamente, contendo o riso.
Vai, vai, vai, disse a ave: o género humano
Não pode suportar muita realidade.
O tempo passado e o tempo futuro
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.


T.S. Eliot (Trad. Maria Amélia Neto)

domingo, 19 de junho de 2011

Créme de La Creme


Livro de Nuno Brito apresentado pelo Prof. Arnaldo Saraiva




Aconteceu a uma irmã de Medusa cortar

os dois pulsos com vidro e esperar assustada em frente ao espelho,

Percebeu que não era sangue que lhe saía dos pulsos mas musgo,

Dos pulsos lácteos nascia-lhe musgo verde e fresco, que torneava o azul

das veias mais pequenas, musgo verde e fresco como das fontes de Minos, então voltou

a olhar-se ao espelho e percebeu que não podia morrer

Não por já estar morta, mas por estar condenada à mais doce pena, a de renascer

sem dar conta disso; o que a olhava no espelho beijou-lhe os pulsos, lambeu o fresco

musgo cheio de vida; ela deitou a cabeça no peito do que faz adormecer e sentiu o seu

batimento cardíaco. Beijou-o e lambeu-lhe os pulsos frescos e quentes,

Então ela riu-se e bebeu vinho de Marsala e com vinho de Marsala desenhou nas costas

do que faz adormecer, uma letra e outra letra e outra letra – Mandou que lhe

trouxessem papoilas e margaridas, algumas comeu, com outras decorou o cabelo


Nuno Brito

Fragmentos IX- Na calma dos teus braços amantes

É pois um apaixonado que diz:

"Na calma de dos teus braços amantes"(Jean Lahor)


Marc Chagall 1916


Abraço: O gesto do abraço apaixonado parece preencher, num momento para o sujeito, o sonho da união total com o ser amado.

Roland Barthes "Fragmentos de um discurso amoroso", Ed. 70, 1981

sábado, 18 de junho de 2011

Verão o Inverno

Chove
A mesma água escorrida
Do dia, do olho e da ferida
Num dilúvio indistinto
Neste dia e no que sinto

Cá como lá
Assobia
Um vento que desafia
A verticalidade do ser
Pontes, ossos e dentes
Tremem forças indiferentes
À vontade de fazer

Trago dentro o mau tempo
A nuvem negra, o relâmpago
O tsunami e o ciclone
E quando de dentro me escapo
Abro a janela e destapo
Mais um negro pensamento
Que me trata pelo nome

E se da janela aceno
Vejo a cena tal e qual
Cá dentro mora o Inverno
Lá fora o temporal

O dia deu em chuvoso


Fotografia retirada da internet

O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.

Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.

Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.

Carinhos? Afetos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...

O dia deu em chuvoso.

Álvaro de Campos

sexta-feira, 17 de junho de 2011

a hora primeira do acordar


Ernst Kirchner 1908

ao escutar, na hora primeira do acordar
a cor dos teus olhos, achei-os perigosos -
não, não, não no sentido comum
não interpretes a imediata luz da dúvida
não é sob esse reflexo que se ilumina a perigosidade
antes como um relâmpago que abre e dispõe
sem que seja possível o segredo
uma semente clara de possibilidade
o perigo da perda -

mas mesmo assim não diminuiu a chama -

José Ferreira 17 Junho 2011

quinta-feira, 16 de junho de 2011

sementes que nascem em terra queimada

sementes que nascem em terra queimada I

anteontem.
inquietude tão imprudente
rasga-me.
apetece demais bulir
agarro-me.

ontem.
da paralisia
não resvalou repouso

antes fosse sono.

sementes que nascem em terra queimada II

o tempo que acabaste
diluísse barulho
cassou calma por dentro
às vezes para sempre.

traste.

se o amor morre não se cuida.

não evocadas imagens, luto é luta

espuma de tristeza, dias

por mim passam mal.
não voltaste.

adormeci rápido, acordei bem
não sabia em falso abraço.
quero paz.

sementes que nascem em terra queimada IV

a verdadeira terra, essa
sem lume queimada
sempre, tarde percebo
de muito antes o negado

tarde percebo sem remédio
como a morte, só que
é loucura não te amar.

eternidade.
apenas uma, a semente.

ainda a, ainda proibida a palavra...


Apresentação de "Créme de la Creme"




Convido-vos a todos a participarem na apresentação do meu novo livro: "Créme de la Creme" que se irá realizar este Sábado pelas 16h30 na Cooperativa Árvore


Abraço a todos

Nuno Brito

quarta-feira, 15 de junho de 2011

- Que as andorinhas não choram

I
É uma porta de ferro
Alta, larga, densa – Não se lhe conhece o fim.
O bando já foi
As andorinhas nasceram para rasgar o céu
Voou, mais uma vez, de uma investida,
Conforme lhe ditava o coração
A porta não se abriu.
Como num bailado, duas piruetas
Uma andorinha no chão, duas asas partidas
- Éeee – Um eco – Dois miúdos jogavam à bola
- Iuiui – Passou o amolador das facas
- Pic pic pic – As primeiras gotas batem no vidro
Entra o cheiro da terra molhada
E começou a chover
- Que as andorinhas não choram.
Primavera Verão Outono Inverno

II
- Então não estamos aqui? – Perguntou ele.
- O corpo sim – Disse ela nua – Mas, tu não abriste a porta. E eu estou morta.
No palco também chovia
Sobre o olhar atento de Pina
E a rapariga de branco
Dançava como andorinha e gritava
- Eu sou jovem!
Primavera Verão Outono Inverno

Cansei-me desta chuva miudinha



















"Golconde", René Magritte, 1898-1967
.
Cansei-me desta chuva miudinha,
Teimosa e poalha venenosa –
Molha sempre a minha poesia
E enruga a folha lisa onde mora.
.
Fechei a janela e a gelosia,
Mesmo assim aquela miudinha
Entra-me em casa sem pedir
Licença, curiosa e atrevida.
.
Pousa-se logo ali na mesa
De trabalho e olha a tinta
Como uma rival – as palavras
Entende-as como quer e pode.
.
Afinal, tanto lhe faz se estão
Deitadas ou se estão de pé,
O que ela quer é encharcá-las
Todas. Sim, mesmo até à alma
.
E fá-lo sempre com a calma
De um crítico de literatura.
A criatura lê tudo a direito
Sem respeito por quem
.
A pensou e escreveu. Enfim,
Presunção e água benta,
Tem-na ela à flor dos olhos:
Lê e insensível diz – não presta.
.
E esgueira-se de aresta em aresta
Feliz e rindo da patifaria. Eu fico,
Já se vê, como o sol no deserto
Capaz de a matar de insolação.
.
Mas sem demora guardei a poesia
Enrugada na gaveta, e fui para a janela
Exorcizar a chuva para que fosse embora.
.
E mesmo tímido, o sol iluminou-lhe o caminho –
.
2011-06-06
José Almeida da Silva
.

Reflexão à chuva

.
Foi de chuva intensa esta manhã, eu sei,
E a noite de caudalosas lágrimas.
.
Não sei que te diga. Tu sabes, a chuva
Aborrece e depura, apesar da lama a correr
Pelas ruas [é verdade, as sarjetas entopem,
Não são limpas – o verão distrai quem é já
Propenso à distracção e à monotonia]
Enlameando os degraus das casas e as caves.
.
Às vezes, nutre a chuva, sobretudo
Se surpreende as pessoas que a não
Esperavam, distraídas, e que correm
Às lojas chinesas que pululam na
Cidade como os cogumelos nas terras
Húmidas e quentes, e compram baratos
Guarda-chuvas de qualidade duvidosa.
A lama é também aluvião, fertiliza a terra.
.
Queixas-te muito de que a chuva incomoda.
E as lágrimas desassossegam-me ainda mais,
Brotam do magoado coração como a elegia,
Um coração que pensa somente em remoinho,
Sempre a mesma ideia, sempre a mesma força
Centrípeta confundindo a lucidez do espírito.
.
Melhor teria sido ir para a rua festejar
Como as crianças chapinando nas poças
E molhando os sapatos e as meias, rindo –
.
[Vejo-me no espelho de uma poça a brincar,
Sapatos encharcados até aos pés, e as calças
Molhadas nas bainhas, tudo uma emoção,
E felicidade por esses momentos de alegria.
.
Sei bem o que custa assim a liberdade,
A minha mãe vem lá de mãos atrás das costas –
.
E tu sorriste ao sol do meu sorriso –
.
2011-06-04
José Almeida da Silva
.

Toquei de leve a chuva

.
Toquei de leve a chuva
Caída no teu rosto
.
Somente à transparência
O teu olhar de luz
Era frágil inocência
.
Abandonada a beleza
É ainda mais bela
E iluminada
.
Repousa a chuva
Na manhã de rosas
E tu resplandeces
.
Afrodite não estaria
Mais sublime –
.
2011-06-08
José Almeida da Silva
.

Borges e a chuva


Renée Magritte


La lluvia



Bruscamente la tarde se ha aclarado
porque ya cae la lluvia minuciosa.
Cae o cayó. La lluvia es una cosa
que sin duda sucede en el pasado.

Quien la oye caer ha recobrado
el tiempo en que la suerte venturosa
le reveló una flor llamada rosa
y el curioso color del colorado.

Esta lluvia que ciega los cristales
alegrará en perdidos arrabales
las negras uvas de una parra en cierto

patio que ya no existe. La mojada
tarde me trae la voz, la voz deseada,
de mi padre que vuelve y que no ha muerto.

Jorge Luís Borges



A Chuva

Bruscamente a tarde se há desanuviado
Porque já cai uma chuva minuciosa
Cai ou caiu. A chuva é uma coisa
Que, sem dúvida, sucede no passado.

Quem a ouve cair há recobrado
O tempo em que a sorte venturosa
Lhe revelou uma flor de nome rosa
De tão peculiar avermelhado.

Esta chuva que escurece os vidros
Há de alegrar os subúrbios perdidos
As uvas pretas de uma parra em certo

Pátio que já não existe. A molhada
Tarde me traz a voz, a voz desejada,
De meu pai que volta e que não morreu.


lido aqui

terça-feira, 14 de junho de 2011

Meditação do Duque de Gândia

a propósito da chuva (um poema republicado)


fotografia de um filme de Godard


......................................"o eu é um movimento na multidão
.........................................................Henri Michaux


o prédio no meio dos outros prédios
tem paredes tem alicerces
mas não tem braços.

por vezes assim a noite
de um lado e de outro lado
os ombros férreos apertados.

o prédio no meio dos outros prédios
tem janelas e uma porta clara iluminada
- nas costas o tijolo cego
de costas um outro prédio.

por vezes assim são os lugares do medo
cintilantes na claridade frontal
sombras de cera e chama ténue
no interior de um quarto vasto.

o prédio no meio dos outros prédios
quando chove conduz as águas nas telhas
para o espaço contínuo de um pequeno rio
- é esse o objectivo
que as águas se juntem se tornem maciças
no som no ritmo na procura dos caminhos.

por vezes assim é o pensamento
que acrescenta esta e aquela sequência
e a consequência de um sentido uma linha
feita de asfalto granito ou terra batida.

há uma mão gigante atrás de cada indivíduo
recolhendo a linha como um fio
enrola enrola agarra o novelo
como um muro sem porta
aponta o caminho em frente sem reverso
- não há regresso continua!

o prédio no meio de outros prédios
pode ganhar braços como as árvores
arrancar raízes no orgulho de ter pernas
abrir janelas e andar pelo meio das ruas
dos carros autocarros e bicicletas
até encontrar um parque, muitas árvores
desfolhar cortinas –

por vezes assim são os quadros os poemas a escrita
a revolta de um grito -

José Ferreira 30 Abril 2010