sexta-feira, 2 de julho de 2010

tempos dela

Desta vez nem olhou para mim
dançava na roda
e o pescoço marcava o transe

havia Índios à volta
em sons de línguas verdes
nus da pele dela

e havia outros

autistas gelados
em danças de caça
sem pele

uma mão estava fria e a outra era inutilmente quente
e rodavam

à volta de quê - consegues ver
e lambia a mão fria

pelo fumo via-lhe os olhos
algas penduradas que arrastavam
o peso de toda a água do mundo

são iguais - dizia pelos dedos
Índios de gelo
e outros de magma que escorre
sempre envergonhado

queria avisá-la devagar
que era a luz de uma só perna
e milhões de braços dados
e o frio de dedos
não mortos mas de medos

sabia de hoje
de algas leves virtuais
e amores a monitores
gelados

e ouvia entre tambores

- nunca houve outros

fenda original

de um chão imenso interno
a um quarto branco sem sombra
escolho um ponto igual

dou um passo

o tempo quer dobrar-se entre nós
e escorre-me pelo corpo em algas macias
o espaço quer expandir devagar
para entrar distraído na minha velocidade

e mesmo que se prenda ali na metade
da metade da metade do que já percorri

chego lá

escolho o passo
como o fotão escolheu a fenda
para te seduzir

mas ele precisou que o tocasses primeiro
e eu não quero colapsar o mundo
à probabilidade de uma fenda

quero um passo lento
e o gozo de o escolher
bem aberto

escolho-o livre assim
para te chegar
mas ele repete
repete todos os outros

até ao passo original

Uma casa para a apostasia




Não tenho uma só casa para a apostasia.
O meu afastamento não permite limites
perfeitos
nem pegadas que indiquem qualquer acontecimento
impreterível
e, no entanto, eu já passei por ali,
já fiz com que o espaço se dilatasse para que eu pudesse
passar por ali
com o meu tempo excessivo e retraído
mas nem uma morada ficou para contar,
nem uma pensão, nem um mote de hotel de estrada ou de esquina
nem a derme crucial de um banco de jardim
todo voltado para a descrição ofegante da paisagem.

Nem a morte me deixou lá dormir
quando soube da forma como eu
desacreditava

e como era necrodinâmica
a minha vida.

incerteza




caem nuvens. caem nuvens.
uma montanha de dúvidas qual manto de amianto
a sublinhar o vento que é forte e levanta folhas
de árvores caducas e longas .
um chapéu de chuva esconde uma ruga mais funda
e o processo fotográfico de querer colocar imagens
num catálogo de sonhos, folhas aguadas de tintas
a secarem lentamente no acentuar de diferenças.

e não será importante haverem tantas?
digo das diferenças. podemos colocar cadeias ou rendas
grinaldas e cânticos de aves matinais, músicas estranhas
ou mesmo prantos, águas escorridas de lençóis, disfarçando
a imperfeição de ter os olhos negros, verdes ou castanhos
e não serem cristais de cloretos na volúpia de sinais
numa ginástica de brilhos a definir que podem ser felizes
mesmo os trajectos de ausências em direcção ao firmamento;
estrelas, estrelas e estrelas, estrelas redondas de íris
determinadas e conclusivas perante os perigos.

não é possível descrever, contar, editar o momento. sente-se
o momento quando se lê e se procura o canto das paredes
a sabedoria do silêncio, o monólogo com um ser inexistente:
será que?
o leve rubor, o suave retinir de uma pálpebra, o sobressalto
o acalanto de batuque africano, essa dança sem corpo, de corpo
a um ritmo alucinante, será que? o momento, o momento
aquele momento asfixiante e quente de girândola
mesmo que a neve, o gelo, o granizo, aquela aragem
contrariando o instante de luz, tempo de paisagens
argentinas, miríficas de risos e cores, mantas andinas
as flautas, a tez indecisa dos actores, a música
e no entanto quando tudo indica e magnetiza
a imperceptível nuvem de incerteza, a penitência de destinos.
destinos construídos nas diferenças como nuvens
azuis e cinzas caindo sobre o momento;
películas de céu, asas soltas, penas brancas -
caindo, caindo
caem nuvens. caem nuvens. a montanha de dúvidas
heterónima e indistinta a ocupar espaços
a desorganizar as sedas do espírito
como se fosse pecado
como se fosse pecado
as mãos , a boca e os lábios -