quarta-feira, 31 de agosto de 2011

fugir, fugir ainda


Edward Hopper

e depois a multidão
as vozes altas e a dificuldade de olhar o céu,
desviar os olhos, impossível, olhar em frente,
muitos, os pés afundam -

fugir, fugir ainda
para um campo de macieiras, o pomar crescido,
os frutos; golden, bravo, starking, gala, fuji;
as diversas qualidades -

e depois a multidão
a festa, as mesas, os fatos, os vestidos de cetim,
véus, lenços largos, os aromas, a maquilhagem,
o pormenor dos lábios, vermelhos ou suaves,
as pálpebras decoradas de brilhantes -

fugir, fugir ainda
para a sombra dos pinheiros,
as menos dolorosas agulhas, rodopiando,
sem picos nem mossas de palavras vãs e sem graça -

as memórias dos outros cansam quando temos a alma pesada;
a ausência e a falha sísmica, uma antena partida nas ondas da rádio,
ruído, ruído, ruído; faltas-me -
cansado, do colarinho branco, apertado, sem concha
sem pérola -

fugir, fugir ainda
para a margem fluida, o correr do rio;
voando nas águas lisas
em direcção ao não limite, o caminho inseguro,
a foz distante -

e depois a multidão
como serpente e flauta, pêndulo,
relógio e tempo, música de domingo, fogo de artificio
relâmpagos humanizados, canas caídas, gritos, tão bonito, dizem -

fugir, fugir ainda
mesmo que a selva ou a floresta, os lobos,
um exército de Hunos, todos os perigos -
faltas-me
princesa de infinitos;
risco, desordem, possibilidade, segredo,
essência, semente -

e os teus dedos num quadro de infância
apagando a nuvem branca
os erros de giz -

josé ferreira 31 de Agosto 2011

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Aniversário - um poema de Ana Luísa Amaral


Salvador Dali

Sentei-me com um copo em restos de
champanhe a olhar o nada.
Entre crianças e adultos sérios
tive trinta em casa.

Será comovedor os quatro anos
e a festa colorida,
as velas mal sopradas entre um rissol
no chão e os parabéns:
quatro anos de vida.

Serão comovedores os sumos de
laranja concentrados (proporções
por defeito) e os gostos tão
diversos, o bolo de ananás,
os pés inchados.

Será soberbamente comovente
toda a gente cantando,
o mau comportamento dos adultos
conversas-gelatinas e os anos
só pretexto.

ANA LUÍSA AMARAL

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Segredo


Paul Delvaux


Esta noite morri muitas vezes, à espera
de um sonho que viesse de repente
e às escuras dançasse com a minha alma
enquanto fosses tu a conduzir
o seu ritmo assombrado nas trevas do corpo,
toda a espiral das horas que se erguessem
no poço dos sentidos. Quem és tu,
promessa imaginária que me ensina
a decifrar as intenções do vento,
a música da chuva nas janelas
sob o frio de fevereiro? O amor
ofereceu-me o teu rosto absoluto,
projetou os teus olhos no meu céu
e segreda-me agora uma palavra:
o teu nome - essa última fala da última
estrela quase a morrer
pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
e o meu sangue à procura do teu coração

Fernando Pinto do Amaral

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

a chegada dos pescadores


Salvador Dali

o levantar tão descalço dos pés
na janela sobre as águas do mediterrâneo;
um mar de terras, de continentes, de algumas ilhas -

a madeira embebida liberta olhos de tinta
e guarda a memória das redes nos braços maduros
no olhar escuro das camisas largas, nas calças de gola alta
junto à cabeça dos pés, perto dos dedos de sal -

Júlia observa calma essas fadigas longas, esses rostos gastos
essas mãos grossas e morenas que se agarram ao cais.
Júlia observa calma o prateado dos peixes distraídos
inalando à distância um odor de escamas
característico e reflectido pelos raios de sol-

enquanto no fogão, o vapor de uma sopa grande
e na mesa tosca, as malgas de esmalte quebrado
os copos de vinho e os nacos de uma broa
aos bocados -

o António Maria e o Julinho estão de volta
está na hora da fome, a hora do descanso
a hora igual de todos os dias da semana
salvo o domingo
quando vestem um fato de riscas coçado
sapatos largos como barcos
e chapéus de abas negras até à entrada da igreja
antes da água benta -

a Júlia tem marcas nos cotovelos de tantas horas paradas
e tremem-lhe sempre os seios enquanto não chegam a casa -

ao domingo veste um vestido de chita e pinta os lábios
e quando chega a noite António toca-lhe devagarinho
e ao longe as estrelas -

José Ferreira 26 Agosto 2011

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

um poema de Ana Hatherly


Salvador Dali 1925

Penso em ti
tranquilamente
como deitarmo-nos no chão
debaixo de uma grande árvore e olharmos
a sua copa em leque
a sua ramagem ondulando lenta
como o ventre de um animal adormecido
Até que os nossos olhos se esvaziam
e a luz da lua
entra e percorre tudo
sem reflectir coisa alguma

Ana Hatherly , Poesia em Lisboa 1997, ed. Casa Fernando Pessoa

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

as palavras de ira


Henri Matisse

a intensidade do mercúrio é muito do que sinto
e quando me magoas com palavras de silvas
fecho os ouvidos, e mantenho os lábios abertos
no consentimento de que, palavras de ira leva-as o vento -

habituei-me ao pensamento na face de cima das asas.
a terra é um pó escuro, demasiado, desequilibra
cega, torna-nos pouco. fecho os ouvidos, não ouço -

afecto é o que sinto, e os braços crescem
e apertam muito -

no domingo fui ao horto da avenida
e perdi-me - e é curioso que as plantas não falam
mas ensinam, inclinam as folhas e abrem as pétalas;
o seu modo de dizer que existem.
e lembro-me bem das hortênsias
que conforme o predominante ácido
perdem o tom rosa e adquirem o azul
mas a culpa é da seiva, indevida ou invadida
conforme a cor que se queira -

a culpa é sempre estranha, de um excesso de sol
ou porque a lua literalmente branca e um pouco fria -

das palavras que magoam, não escutei nenhuma,fecho os ouvidos,
nem uma tem a força da cicuta, bomba de obus ou mina;
no amor como na guerra só a verdade interessa e brilha -

afecto é o que sinto, e os braços crescem
e apertam muito -

José Ferreira 24 Agosto 2011



terça-feira, 23 de agosto de 2011

às vezes tudo é tão simples





estrela cintilante, guardo-te dentro de mim.
és a flor de lótus, a meditação intensa,
a brisa no castelo dos medos, enquanto
o polegar e o indicador sobre os joelhos
e os olhos, em fogo, acesos -

por vezes perdes-me na floresta; o cesto,
a fruta, os bolos de amêndoa -
por vezes não encontro o caminho;
os braços caídos, as dúvidas, os silêncios sem sentido -
por vezes o nevoeiro, o fumo, os dias como chumbo -

os filmes, os livros, as fotografias, são fragmentos,
discursos que surgem por acaso
mas depois fazem parte, falam, criam uma âncora nas linhas -
os braços, a cabeça, entram dentro da cena
agarram os ombros da estrela, apropriam-se da nuca
e selam os lábios no veludo da testa;
em transferência, transigentes, puros, agradecidos -

(nem todos os poemas têm que ter flechas
ser masculinos, duros em demasia, no desafio de muitos labirintos)

ás vezes tudo é tão simples -

e continuamos como tolos, sem bússola,
nos pólos ou no centro do mundo,
permitindo os toros da floresta, os lobos, o frio -

estrela cintilante, afasta o cabelo com cuidado
e abre o sorriso, sê naïf, os braços grandes de navio
o carvão nos mecanismos, o oceano
e o desejo sem ser ilha -

José Ferreira 21 Agosto 2011





segunda-feira, 22 de agosto de 2011

um poema de António Ramos Rosa


Henri Matisse 1917

Este poema para ti é decerto uma surpresa ou talvez a melodia

que vem de tão longe e de tão perto

porque vem de ti do delicado tumulto das tuas vibrações

que são como espirais instantâneas que parecem ir dispersar-se

mas mantêm a delicadeza límpida das suas linhas.

Elas são a relação que se inebria na vertigem dos limites

e te oferecem o mundo como o campo da tua identidade aberta.



Tu és um corpo de meandros em que um sangue solar flui

e como danças dentro de ti as tuas linhas são evidências

imprevisíveis e nunca te deixas fechar mais do que um segundo

porque logo te abres como um leque de cores vibrantes que reúne

e dispersa porque é a relação do universo com a harmonia dinâmica

da variedade elementar que é a matéria da unidade universal.



Se tu te transcendes em cada movimento

é porque tu ascendes constantemente como se a tua coluna fosse

o vento vertical como um enxame de pássaros vertiginosos.

Se tu és quem és é porque a luz no teu corpo voa e vibra

e o teu olhar respira a transparência de um jardim

e a tua boca pronuncia as palavras que são chamas de vento

e são chamas do mar

mas também têm o peso das pedras intactas.



António Ramos Rosa

domingo, 21 de agosto de 2011

a insubstituível




pediu um cigarro e encerrou uma ausência.
o fumo acre impulsionado pelo reaprender da língua tocou o céu da boca.
amargo. amargo. não podia cegar de novo. o refúgio da nicotina;
o redondo do filtro na volta dos dedos, o ajeitar consequente no tampo da mesa,
o movimento entre os cantos dos lábios conduzido pela ardência dos dentes.

lembrou Humphrey in Casablanca e Gainsborough junto de Brigitte,
preferia o último, a canção proibida, tão antiga;
um slow numa cave escondida, a memória inflamada dos sentidos -

o cigarro parou incompleto, não atingiu o fim.
o fumo espaçava, subia,
perdia-se, incompreensível.
os olhos tornaram-se fixos
e o cigarro não tinha qualquer importância,
afundou-se num caixote de lixo -

o chapéu, o guarda-chuva, a gabardine.
a gare nublada, um silvo agudo, a locomotiva.
as malas silenciosas no banco escuro.
um rosto na parede branca
insubstituível-


a noite adquiriu contornos de veludo.
sentar-se-iam no café Majestic
falariam de novo sobre os poemas e alguns livros
sobre os gatos siameses, tão ariscos
os pretos, de olhos verdes,
os brancos, de olhos azuis, os preferidos -


um aroma de incenso percorria o quarto
quando pousaram as malas.

o reassumir da lua era possível -



José Ferreira 20 agosto 2011




sábado, 20 de agosto de 2011

Coisas de luz antigas - um poema de Ana Luísa Amaral




Aquele namorado que tinha
um nome bom: há quanto tempo foi?
A vida resvalante como gelo
e aquele namorado de nome bom
e férias, ficou perdido em luz,
mais de vinte anos

Deu-me uma vez a mão
um beijo resvalante à hora de deitar
e na pensão. Mas tinha um nome bom.
falava de cinema e calçava de azul
e um bigode curtinho,
que escorregou aceso como gelo
no centro da pensão

Rasguei as cartas dele
há quinze anos, em dia de gavetas
e de luz, e nem fotografia me ficou
de desarrumação. Mas tinha um nome bom,
falava de cinema e calçava de azul
e resvalou-me quente como gelo
à hora de deitar:

um namorado sem falar
de amor

(que a timidez maior
e o quarto dos meus pais
nessa pensão;
no mesmo corredor)

Ana Luísa Amaral Poesia Reunida 1990-2005 Quasi, 2005

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

a barcarola ou à procura de um poema



procurei em todos os 366 poemas aquele que melhor
definisse hoje o amor, palavra difícil.
o amor em si representa uma forma insegura uma dualidade incerta
as duas faces da moeda -
lembro-me do soneto quarenta e quatro de Neruda:
A palavra é uma asa de silêncio,
E o fogo tem a sua metade de frio
. compreendes.

o dia decorreu límpido, molhei os pés no mar.
coloquei um pouco de água nos lábios.
secaram ínfimos sinais de sal por sobre a pele
e recordei Cesário:
Eu que sou feio, sólido, leal,
A ti que és bela, frágil, assustada,…

quantas vezes te disse: não tenhas medo.

de calções verdes demorei-me junto às rochas
enquanto nos cabelos curtos por trás dos ouvidos
uma barcarola entoava a melodia, amolecia a alma
mas de uma forma boa, como um embalo
e os versos de Vinicius:

Amo-te tanto, meu amor… não cante
O humano coração com mais verdade
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade


a diversidade, o condimento, as brasas acesas.

no fim do dia o minimercado e o voltar a casa
a salada de alface, algumas notícias, a crise
um atentado para os lados do Egipto.
não fixo nada de bonito, frases feitas, falta de poesia.

será que há algum poema perfeito sobre o amor?
aquele que possa colocar numa bandeja
em papel beige perfumado e em letras de caligrafia
de cantos queimados, forma ingénua e decorativa?
um poema ideal, completo e que te ilumine o rosto?

são duas da madrugada. porfio na procura
mas há sempre algo a mais e algo a menos
nas palavras dos outros, procuro também as minhas.
ocorre-me de novo Pablo e o mesmo soneto:

…amo-te para começar a amar-te
Para recomeçar o infinito…


versos que tudo definem
o permanente recomeço, a surpresa,
o início que pode ser pequeno mas a que sempre se deve
acrescentar outro tanto, e mais ainda, tornando-o grande
cintilante, brilho e mais brilho …
concluo que o amor é uma palavra exigente
multifilamento como uma cor única e branca
escrita no arco-íris, construída de tantas -

encontro de novo Vinicius:

Amo-te tanto, meu amor…
E de te amar assim muito e amíude
É que um dia em teu corpo de repente
Hei-de morrer de amar mais do que pude.


a hipérbole, o Amor Total
uma ponte simbólica e magnífica -

desculpa-me. não encontrei ainda o mais completo. mas vislumbro caminhos -
e como num poema A súplica a Eros:

A minha vida está suspensa.
O tempo arde.
A noite é imensa.
Conto os minutos pelo espelho.



José Ferreira 19 Agosto 2011

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

não mudes nada



escrevo-te sobre o que escrevo.
não te assustes com a cor das letras.
há muitos anos só usava o azul e aderi inconscientemente
às calças de ganga, às riscas largas junto à praia.

as ondas dos segredos nas baías escondidas da Foz
aproximaram as mãos -

tudo mudou. o tempo fixa só aromas, a cor despida das algas
e já não falamos do que era bom;
um carioca de limão, nada de álcool e o gás na água
a rodela e o mar, na frente o horizonte descaindo
escondendo lentamente o dia -

e como era triste o fim do crepúsculo
o afastamento do pulso, o cessar do batimento cardíaco
e os lábios sem palavras, juntos -

escrevo-te sobre o que escrevo
hoje na tarde que se elimina.
uma cerveja fresca sobre a mesa, uma água vulgar nem sequer fria
e na frente a morada do sal e o sol quente
que alimenta a cor morena.

uma brisa sopra e invade as aberturas do chapéu de Florença.
abunda uma maquilhagem como disfarce
e há a necessidade de pintar as unhas com um traço branco
nunca de vermelho.
tantos anos e no entanto sou o mesmo
agora na melancolia do silêncio -

escrevo-te sobre o que escrevo
na esplanada, mesmo por cima da areia. as tábuas rangem
como um riso que se escapa, que passa e volta.
rostos e passos atrás das costas.
e o desejo de numa fracção extraordinária do imparável tempo
ser uma rocha rodeada de água, ar, sol e vento. não demora.
apenas um momento. a necessidade de ser sólido
sem a cor transcendente da emoção, do sentimento.

escrevo-te sobre o que escrevo
em Agosto. é verão, dizem. alguém um dia.
nada tem a ver com a natureza. uma maneira de dizer.
e em frente, mesmo em frente, junto à água, uma família.
a mãe de cabelo vermelho, comprido, ondulante.
a criança ao colo, dois anos, nos braços redondos
carrega a ingenuidade e um ligeiro choro de inocência.

atrás alguma turista na língua de Shakespeare. as tábuas rangem.
ao lado, a rapariga adolescente esquece os pais, não olha o mar
envia mensagens, as pupilas acendem, as palavras ardem
as mãos viajam rápidas, por sobre as teclas.
não há música -

no bordo do copo, laivos de espuma, seca seca.
o vidro limpo e transparente é uma miragem.
a luz é forte. o sol aquece as pernas. as lentes dos óculos escurecem.
alguém passa. a língua de Céline. sinto saudades de Paris;
as escadas junto ao rio, as pontes que levam à ilha.

escrevo-te sobre o que escrevo
sem o peso da culpa nas letras. a praia esvazia-se.
indiferentes, as ondas labutam a rotina e disputam a areia;
um pouco mais atrás, um pouco mais à frente, sucessivas
assim como as linhas desta carta, indetermináveis como o destino
apenas com a ordem de partida, e depois param ou avançam
aparecem escritas -

uma marca na página 54, alguém fecha o livro, de prosa
não de poesia
e dois pardais pequenos saltitam entre as aberturas das mesas.
procuram a possível migalha. nunca escreveram um poema -

escrevo-te sobre o que escrevo e sobre algumas coisas antigas.
o imutável. não mudes nada. Ne changes rien! e mesmo que quisesses era impossível. digo-te!
escreve se te apetece, ou não escrevas, mas sobrevive.
faz como o poeta, guardador de recantos e esquinas
que dentro do corpo falam e se afirmam
impondo a força das linhas, o correr das águas
em regatos, em rios
e por vezes em sossego, quase adormecido
em lagos límpidos -

e depois há os morangos e as veredas e os caminhos
e o céu, quase me esquecia
sabes, o céu à noite
é um banquete de estrelas -


José Ferreira 18 Agosto 2011

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Ao volante de um Chevrolet pela estrada de Sintra


José Malhoa "Praia das maçãs" (Sintra) 1918

Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?

Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida…

Maleável aos meus movimentos subconscientes no volante,
Galga sob mim comigo, o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo!
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto que me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!

À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira da estrada.
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado,
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?
Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?

Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
Acelero…
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo
sem vê-lo,
À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida.

Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim…

Álvaro de Campos 11 - 5 - 1928

In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002

terça-feira, 16 de agosto de 2011

sobre a dúvida às duas da madrugada


Renée Magritte 1961

as duas da madrugada corriam céleres. era sábado.
a mente absorta permanecia absolutamente imaculada.
cataratas lançavam multidões de brancos.
as curvas das margens reflectiam musgos
e recebiam águas -

as palavras sibilinas circularam como pedras
pedras grossas
pedras grossas de lágrimas.

ponderou esquecer os dedos
que seguravam com ternura as letras.
esquecer a textura branca das folhas incompletas
que revestia amiúde de tulipas gladíolos e versos.
ponderou fechar cortinas e janelas
apagar a lua e as estrelas. não pensou nos outros.
porque a dor lhe quebrava a testa e iludia os sonhos
como se fossem teias de aranha, frágeis, leves
facilmente ultrapassáveis pelo vento vasto e agreste
enviado na fúria dos ares
no sopro do equívoco
inclinando ramos destruindo raízes;
os lírios da intimidade.

a inverdade pesa como um bloco de cimento aramado
a gaiola do peito segura a pele rasgada
segura os olhos dentro de um muro escuro
na memória dos recantos
esse voo seguro de palavras como águias.

a inverdade mata, realmente cria a espada
e contrariando o magnânimo poeta*
no fio da lâmina corta o fogo
cria o foco da desistência
grita, é falso! -

essas palavras sibilinas eram magoadas e húmidas
mas eram fruto do que importa, células de densidade
espinhos sobre o ninho que se torna frio
como as aves que rumam ao sul
mas voltam -

as palavras sibilinas eram a subjectividade de passos
sobre a dualidade incompreensível que atrapalha
as duas faces da moeda pálida
as dúvidas sobre um mar de palha.

as palavras sibilinas eram fruto da inexistência de pele e chão
um regaço de rosas
um milagre de mãos -

disse: - porque não páras? porque não olhas de olhos abertos?
porque não escutas o azul reflectido
como uma seda impossível de ser ambígua?
observa a verdade nas faces rubras dos espelhos naturais
segue a voz dos violinos das concertinas
Tiersen e Paganini -

sabia que tudo não passava de uma afirmação cíclica
mas injusta e dessa forma sibilina
mas não havia perigo
mesmo que a escala de Richter atinjisse os pólos elevados
a canção segura seguiria como um som longínquo de búzios
que chega e que se afasta que chega e que se afasta
sem desistir sem desistir nunca
da luz do sossego
nos ruídos do mar -


José Ferreira 16 Agosto 2011

*Herberto Helder e o título do seu livro "A faca não corta o fogo"

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

o poema 236


Scarlet Johansson

CONVIDA-ME SÓ PARA JANTAR

E não queiras depois fazer amor.
Convida-me só para jantar
num restaurante sossegado
numa mesa de canto
e fala devagar
e fala devagar
eu quero comer uma sopa quente
não quero comer mariscos
os mariscos atravancam-me o prato
e estou cansada para os afastar
fala assim devagar
devagar
não é preciso dizeres que sou bonita
mas não me fales de economia e de política
fala assim devagar
devagar
deita-me o vinho devagar
quando o meu copo estiver vazio.
Estou convalescente
sou convalescente
não é preciso que o percebas
mas por favor não faças força em mim.
Fala, estás-me a dar de jantar
estás-me a pôr recostada à almofada
estás-me a fazer sorrir ao longe
fala assim devagar
devagar
devagar


Ana Goês in 366 poemas que falam de amor , Quetzal Editores, 2004

sábado, 13 de agosto de 2011

A morte o amor a vida - um poema de Paul Éluard


Man Ray

Julguei que podia quebrar a profundeza a imensidade
Com o meu desgosto nu sem contacto sem eco
Estendi-me na minha prisão de portas virgens
Como um morto razoável que soube morrer
Um morto cercado apenas pelo seu nada
Estendi-me sobre as vagas absurdas
Do veneno absorvido por amor da cinza
A solidão pareceu-me mais viva que o sangue


Queria desunir a vida
Queria partilhar a morte com a morte
Entregar meu coração ao vazio e o vazio à vida
Apagar tudo que nada houvesse nem o vidro nem o orvalho
Nada nem à frente nem atrás nada inteiro
Havia eliminado o gelo das mãos postas
Havia eliminado a invernal ossatura
Do voto de viver que se anula


Tu vieste o fogo então reanimou-se
A sombra cedeu o frio de baixo iluminou-se de estrelas
E a terra cobriu-se
Da tua carne clara e eu senti-me leve
Vieste a solidão fora vencida
Eu tinha um guia na terra
Sabia conduzir-me sabia-me desmedido
Avançava ganhava espaço e tempo


Caminhava para ti dirigia-me incessantemente para a luz
A vida tinha um corpo a esperança desfraldava as suas velas
O sono transbordava de sonhos e a noite
Prometia à aurora olhares confiantes
Os raios dos teus braços entreabriam o nevoeiro
A tua boca estava húmida dos primeiros orvalhos
O repouso deslumbrado substituía a fadiga
E eu adorava o amor como nos meus primeiros tempos



Os campos estão lavrados as fábricas irradiam
E o trigo faz o seu ninho numa vaga enorme
A seara e a vindima têm inúmeras testemunhas
Nada é simples nem singular
O mar espelha-se nos olhos do céu ou da noite
A floresta dá segurança às árvores
E as paredes das casas têm uma pele comum
E as estradas cruzam-se sempre


Os homens nasceram para se entenderem
Para se compreenderem para se amarem
Têm filhos que se tornarão pais dos homens
Têm filhos sem eira nem beira
Que hão-de reinventar o fogo
Que hão-de reinventar os homens
E a natureza e a sua pátria
A de todos os homens
A de todos os tempos.

Paul Eluard,"Algumas das Palavras",(trad. António Ramos Rosa e Luísa Neto Jorge) Dom Quixote 1977

Desculpa-me a ternura - um poema de Ana Luísa Amaral


Cindy Sherman


Enternece-me pensar que estás aí,
não força de trabalho desigual
nem vida à pressa,
mas minha amiga.

Talvez as palavras que te digo
me transpareçam classe,
talvez nem te devesse dizer nada.
Porque és a mão que ampara o meu silêncio,
a minha filha, o meu cansaço
— à custa do teu cansaço, da tua filha,
do teu silêncio.

Não há homens-a-dias neste mundo,
mas tantas como tu,
a segurar nas mãos e no sorriso
algumas como eu.

Entraste há pouco a perguntar
se eu tinha febre
— a louça por lavar nas tuas mãos,
aspirando o cansaço dos meus ombros,
nos teus ombros o cansaço de mim
e o cansaço de ti.


Desculpa os meus silêncios,
o falar-me contigo como com mais ninguém,
desculpa o tom sem pressa
— e o meu dinheiro que não chega a nada,
comprando o teu trabalho
(o teu sorriso)

ANA LUÍSA AMARAL, Às Vezes o Paraíso, (2ª edição), Quetzal Editores, Lisboa, 1998: 72, 73

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

(é uma dedicatória) - um poema de Herberto Helder


Salvador Dali


Se alargas os braços desencadeia-se uma estrela de mão
a mão transparente, e atrás,
nas embocaduras da noite,
o mundo completo treme como uma árvore
luzindo
com a respiração. E ofereces,
das unhas à garganta
talhada, a deslumbrante queimadura do sono.
- Em teu próprio torvelhinho se afundam
as coisas. Porque és um vergão raiando entre
esses braços
que irrompem da minha morte se durmo, da loucura
se a veia
violenta que me atravessa a cabeça se torna
ígnea como
um rio abrupto num mapa. Quando as salas
negras fotogáfricas
imprimem a sensível trama das estações
com as paisagens por cima. E
jorras
desde as costas dos espelhos, seu coração
arrancado pelos dedos todos de que se escreve
o movimento inteiro.
Nunca digas o meu nome se esse nome
não for o do medo. Ou se rapidamente o lume se não repartir
nas formas
lavradas como chamas à tua volta. Os animais
que essa labareda ilumina
na boca. Desde a obscuridade
de tudo que tudo
é inocente. Nunca se pode ver a noite toda de súbito.
E da fronte aos quadris em tuas linhas, és
cega, fechada.
A minha força é a desordem. Reluzes
na têm pera enxuta - queima-te.
O ouro desloca a tua cara. Um nervo
atravessa as frementes, delicadas massas
das imagens:
como uma ferida límpida desde a nascença pela carne
fora. És alta em mim por essa
cicatriz que se abre ao dormir e quando
se acorda fica aberta.

Herberto Helder Photomaton & Vox Assírio & Alvim 2006

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

jazz na chegada da cidade


fotografia retirada da internet

jazz no aeroporto. três elementos.
as rodas de silêncio pousaram lentas
no preenchimento de um espaço vazio; malas e homens
malas e mulheres nas medidas certas da cabine;
low-cost dizem. concerteza há lugar na dimensão reduzida
a t-shirts, pólos, calções de banho,
curtos ou de perna comprida, mais modernos
billabong, deeply ou quick silver
ou então copas de seios onde as seivas dos meninos
triumph, women's secret, intimissi
e as camisas de renda, os tecidos da índia, os bikinis
e alguma toilette de intimidade feminina.

após uma hora, na esquina Formosa
um tocador de olhos de névoa
abre a voz da concertina.
uma melodia aberta,popular e divertida.
o tocador não vê a intensidade das pernas, a qualidade dos decotes
a luminosidade dos sorrisos, a inclinação do meio dia.
o tocador tem todas as imagens no poder dos sentidos
sente dois que passam mas não apercebe os gémeos
não vê o piquet dos tecidos, a imobilidade dos crocodilos
nem mesmo os óculos escuros
de uma filha dos fiordes, a cor dos olhos que se adivinha
azul, sim, azul, outra cor é impossível, pelo ruivo das sardas
pela cor branca das axilas.
o tocador solta a música sentado na cadeirinha
e acompanha o ritmo com o ponteiro da cabeça,
marca o tempo de forma idêntica como alguém que dança
que eleva os braços, que estreita a dançarina
antevê-se no levantar dos lábios
enquanto as notas rodeiam as ancas de quem passa.

mais abaixo, na livraria, pousa-se o fascínio das memórias
na ansiedade dos poemas, o desenho das letras, a cor das tintas
na mão que escreve e liberta
o osso maciço do corpo, a fantasia acesa, as asas de borboleta.

ocorreram milhares de vinte quatro horas, a imensidão dos minutos,
passaram anos
e um dia definiste de forma precisa, o tamanho das pálpebras, as rugas
e os seus sulcos mais profundos, para além do visível, do habitual sorriso.

sob a luz de um foco de cinema surgiu óbvia a actualidade escura
o filme antigo, a poeira das feridas
para além das veias largas, guerreiras, destemidas
onde as enfermeiras colocam as agulhas, elogiando a facilidade vermelha
do grupo sanguíneo, o seu comportamento amplo e compatível
rubro e rápido, um mar vivo -

sabes, como um cego sonho, preciso da música e da liberdade dos sentidos
da premonição do risco, o arame, a falta de equilíbrio
a tontura da queda sem a submissão de linhas
a hipnose, o pêndulo
a inexistência de gravidade nos dedos dos dias
a inconsciência aos gritos

e bagos de uva rolando pelas ruas
em madrugadas sucessivas -

José Ferreira 11 Agosto 2011





quarta-feira, 10 de agosto de 2011

um poema de Cesariny - exercício espiritual


Mário Cesariny (colagem)

É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem

É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora

Mário Cesariny Manual de Prestidigitação 1956

terça-feira, 9 de agosto de 2011

cinquenta e três versos


Edouard Boubat

nenhum
nem um dos cinquenta e três versos enrolados em letras curvas.
jazem como bolas de papel, amarrotados na clareza, na intenção
no óbvio, na vulgaridade de não serem admissíveis como únicos;
fracos e símiles como o compromisso antigo riscado nas uniões de reis
imperadores e rainhas, austríacas -

resta a música -

nenhum
nem um dos cinquenta e três versos poderia significar o edifício
a sólida cidade organizada que risco na côdea das árvores.
nem um merece a luz, porque lasso, sem chama, horizontal, rouco
sem espanto -

resta o azul de uma aguarela
a parede branca sem mácula, antes assim -

nenhum
nem um dos cinquenta e três versos representa a pétala, a sépala
a flor uníssona de caule vertical
o cálice de mosto
a carícia na pedra
que a transforme em água clara, minuciosa, sem pressa
que a transforme em líquido de prata
como às vezes, os lagos, os rios pouco inclinados -

nenhum
nem um que estabeleça a ilusão e um braço de certeza -

cinquenta e três
e os olhos adormeceram, rasos, cansados sobre a mesa;
o papel em algazarra de grossos lábios discute a impossibilidade
de reorganizar as letras -

é tarde, muito tarde para o poema -

em tempos, sem a ousadia de um físico correr da tinta
escreveste o verso mais poderoso sobre todos os meus trajectos
sobre as mil águas de chuva e os duzentos caminhos tortos
simples e magnífico
como sempre o é o inato e a sabedoria

era Setembro, olhaste-me nos olhos;
a pele morena
as pálpebras de Agosto -

nenhum
nem um dos cinquenta e três versos te merece, te representa;
rolam sobre a mesa na imensidão da aragem rubra
que invade a dor dos cabelos
os ouvidos calados, a nuca descomposta sobre os dedos -

resta uma escada de liana e uma nuvem a mastigar cinzentos
a tornar-se branca
depois de um dilúvio de excessos perante a fogueira
que ameaça a ruptura no desconforto do sedimento
sem fazer parte
inútil e separado da rocha magenta
que encorpa a mente
e entorna o coração na cor vermelha
escorrente, nas mãos abertas de harpa
oca de invernos
escrevendo as células
inventando a pureza muda das fotografias
retirando uma a uma toda a roupagem efémera;
a nudez esclarecida -

a lua, a janela e os sentidos -


José Ferreira 9 Agosto 2011

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

um poema de Emily - A Noite - a alguns dada


Paul Delvaux "O amanhecer" 1943

Morning is due to all
To some - the Night
To an imperial few
The Auroral light

Emily Dickinson

A Manhã é de todos -
A Noite - a alguns dada -
Para os poucos do império -
A luz da Madrugada.

Trad. de Ana Luísa Amaral em "Cem Poemas" Relógio d'Água 2010

domingo, 7 de agosto de 2011

Vozes - um poema de Ana Luísa Amaral


Aguarela de António Cruz


Eterno é este instante, o dia claro,
as cores das casas desenhadas em aguada rasa,
castanhos e vermelhos quase em declive,
as janelas limpíssimas, de vidros muito honestos.
Este instante que foi e já não é, mal pousei a caneta
no papel: eterno

Sonhei contigo, acordei a pensar
que ainda eras, como é esta janela,
como o corpo obedece a este vento quente, e é ágil,
mas tudo: tão confuso como são os sonhos

Agora, neste instante, recordo a sensação
de estares, o toque.
Não distingo os contornos do meu sonho, não sei
se era uma casa, ou um pedaço de ar.
A memória limpíssima é de ti
e cobriu tudo, e trouxe azul e sol a esta praça
onde me sento, organizada a esquadro,
como as casas

E agora, o teu andar
acabou de passar mesmo ao meu lado, igual,
e agora multiplica-se nas mesas e cadeiras
que cobrem rua e praça,
e eu vejo-te no vidro à minha frente,
mais real que este instante, e se Bruegel te visse,
pintava-te, exactíssima e aqui.
E serias: mais perto de um eterno

(Eu, que nada mais sei, só o fulgor do breve,
eu dava-te palavras –)

Ana Luísa Amaral


Vários poemas de Ana Luísa Amaral foram também publicados numa revista no Brasil
consultar o link http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-57/poesia/vozes

sábado, 6 de agosto de 2011

sempre que me dizem o teu nome


Isabelle Adjiani por Heléne Renault

sempre que me dizem o teu nome desço o ramo do pinheiro
como agulha flutuante, atingindo o solo sem estrondo
vestido de verde, recuando no tempo
o tempo de um peso leve sobre as costas
a tenda e um sorriso aberto
de amêndoa
sempre que me dizem o teu nome

sempre que me dizem o teu nome bato com os pés no chão
levanto a poeira e sonho ser cavalo branco, de crinas ao vento
procurando a guarida dos bosques, o ruído dos ribeiros
sem sela, de pêlo nu, segurando a força das tuas pernas
escutando a sombra dos teus cabelos, ombros, costelas
olhos grandes, pestanas ávidas, lábios molhados;
e os dedos longos rodeando o topo da cabeça
a estrela, o arfar constante, o insossego da cratera
o permanente desafio;
um acto coragem, o superlativo favorito, a revolução
sempre que me dizem o teu nome

sempre que dizem o teu nome soam cordas de harpa
risos de violino e uma dança nas mãos de Maisky
a clássica filosofia de um concerto nas ondas absortas de uma orquestra
unindo as bocas das notas, únicas, breves, alinhadas nos sinais da pauta
e perecendo no uníssono que se prolonga no pico das palmas
nos corpos erguidos de molas; e as cordas que se afastam
deixando a permanência de um silvo dentro dos ouvidos
os olhos luminosos, gritos de gaivotas sobre os remos
como um barco que se afasta e salga as ondas nas batidas do mar
sempre que me dizem o teu nome

e sempre que me dizem o teu nome há um arco-íris
um girassol iluminado, três mil jasmins e cinquenta nardos
um quarto solitário feito em pedaços, uma lua esquecida
uma concertina invisível rodopiando árias
a permeabilidade do metal, tornando-se frágil, quebrável
e um silêncio, uma hipnose, um transe tão agudo
que ninguém se apercebe que pode cair um relâmpago
um prédio, um pânico ou acidente, um crime, um incêndio
que, se me vissem por dentro

o teu rosto descansa no meu ombro

no éter dos poemas
sempre que me dizem o teu nome


José Ferreira 6 de Agosto 2011

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Cianuro




Dempsey, o grande Dempsey Denial, agarrou no último número da revista “Cianuro” e sentou-se com um copo de champanhe numa cadeira que ardia debaixo do caramanchão. A tarde escoava por um orifício secreto, o vento dedilhava nas cartilagens do silêncio uma música pálida, quase inaudível, que o sol ao morrer despenteava no incerto, e Dempsey estava confortável dentro do seu 14755º dia de vida. “Cianuro”, a revista de arte escabrosa e literatura acidental que Dempsey folheava, trazia agora um suplemento dedicado à paisagística sentimental, com ilustrações de um tal Phoekus Phantash (um pouco mórbidas e pouco nítidas) e palavras de Rome Jus Van-Van, pseudónimo literário que Dempsey um dia atribuiu à imagem que sempre fez de si mesmo.
À medida que o álcool, o gás e o milagre dourado do champanhe congestionava o cérebro de Dempsey, naquele final de tarde imperial e dorido, à medida que relia e molhava os olhos nas palavras selvagens que ele – sob a autoridade de Rome Jus Van-Van – assinara diabolicamente ao lado dos desenhos desfigurados de Phoekus Phantash, um sorriso carnívoro foi-lhe nascendo primeiro a partir das comissuras dos lábios, alastrando-se depois a toda a península facial, desenhando pequenos rios de sangue à superfície.
É que Dempsey sabia que, para além do insondável Phoekus Phantash, todos os outros colaboradores da “Cianuro”, Manuel Feist, Carlos Columna, Raquel Realce, Alfred Prufock, Roberta Cajal, Evangelio Arte-Enrique, eram criações suas. Assim como o director, Douglas Datsun Jr., a amante do director, Fabrizzia Flame, o neto mais novo do porteiro da redacção da “Cianuro”, Joyce Emmanuel, até Nídia Witt, a mulher da limpeza a quem todos os dias Dempsey dava os bons dias, também ela era Leonor Nieves na vida real, artista de rua muito íngreme, VIH positivo, musa das ovulações imperfeitas.
E depois de pensar nisto, e já a bordo da grande fadiga do mundo, Dempsey passou pelo sono e sonhou que acenava aos seus leitores com desprezo.

Na saleta de Amy Lowell


Coco Chanel retirada da internet

A voz estende
a gravura japonesa.
O vento repousa. A campainha dorme.
Desfaz-se o oiro
da coluna invisível
do livro onde Keats esqueceu os verbos.
Luz espraiada,
o suspiro ascende.
Demora a curta fantasia
dos cavalos de seda.

A glicínia nasce
do ventre do poema.
Uma cadência morre. Um amor desagua.
Atenua-se a vertigem
do azul crepitante
da crónica onde o príncipe galga as grandes lages.
Sono ardente,
a mão oscila.
Acena a branca viagem
da bússolas da tarde.

em "Tiago Veiga Uma biografia" de Mário Cláudio

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

MULHER E MAR ( PARCERIA )

Oiço o bater das ondas do teu mar,
e vejo-te lá longe ténue pairando
sobre as imponentes vagas do teu mar...

Sei que é fugaz alucinação,
mas que me mata a sede e fome
de te ver e de te ter!

Mulher despida mas envolta em teu mar,
que tu iludes e tanto enfeitiças,
que decidida e brutal o enfureces
pra que eu nunca te possa em paz chegar.

Mulher imensa, mulher majestosa,
prenha de esperanças
e fazedora de vidas,
não castigues o teu mar
que por Ti é doce e tão pacato!

Mulher desavinda, mulher de fervor,
sossega o teu mar
dá-lhe todo o teu encanto,
pra que eu por fim te aconchegue
sereno, cheio de amôr e recato!


( António Luíz, 19-07-2011)
Lido na Biblioteca Municipal de Espinho,
em Reunião da ONDA Poética de 20-07-2011)

MULHER, DEITA AS LÁGRIMAS AO TEU MAR

Mulher e Mar ( interdependência )
....................................

Mulher, deita as lágrimas ao teu mar,
que revoltoso anseia amôr e calma,
Mulher, verte angústias em teu mar,
que furibundo ruge e quer tua alma.

Mulher, solta pesadelos em teu mar,
que o mar é imenso, assim o dominas,
mulher, naufraga teus sorrisos em teu mar,
que nele te refletes e nele te fascinas.

Mulher, acaricia as ondas do teu mar,
que ele se entrega, te venera por inteiro,
Mulher, toca a espuma limpa do teu mar,
qu' ele te dá dela a essência do bom cheiro.

Mulher, banha-te plena em teu mar,
que dele bem conheces a intimidade,
Mulher, comunga teus ideais com teu mar,
pois ele te prolonga e te dá solenidade!


( António Luíz, aos 19-07-2011)
Lido em 20 de Julho em Reunião da Onda Poética
de Espinho, Biblioteca Municipal de José Marmelo e Silva)

Uma prática para desconserto


A Sylvia Beirute publicou o seu livro de poemas, ver aqui

Poésies de Schiller - Le triomphe de l'amour


Schiller feat. Colbie Caillat - YOU por World_Channel
o video que encontrei quando pesquisava por poesias de Schiller

(...)

C’est par l’amour que les Dieux sont heureux ; c’est par l’amour que les hommes ressemblent aux Dieux : l’amour rend le ciel plus beau et fait de la terre un séjour céleste.
À travers l’éternelle nature, les traces de l’amour sont semées de fleurs, et partout flottent ses ailes d’or. Si l’œil d’Aphrodite ne m’apparaissait pas dans les rayons de la lune, si l’amour ne me souriait pas dans les rayons du soleil, dans l’océan des astres, les astres, le soleil et la lune n’animeraient point mon âme. C’est l’amour, l’amour seul qui se reflète dans la nature comme dans un miroir.

Le ruisseau argentin parle d’amour ; c’est l’amour qui lui enseigne à couler plus doucement : l’âme entend la voix de l’amour dans les soupirs mélodieux du rossignol. L’amour ! l’amour se fait entendre dans toutes les voix de la nature.
Sagesse aux regards clairvoyants, retire-toi, cède à l’amour. Tu n’as jamais fléchi le genou devant les conquérants ni les princes, fléchis-le devant l’amour !
Qui s’éleva d’un pas hardi par le chemin des astres jusqu’au séjour des Dieux ? qui ouvrit le sanctuaire et nous montra l’Élysée à travers les crevasses du tombeau ? N’est-ce pas l’amour qui nous enseigne que nous pouvons être immortels ? Les esprits chercheraient-ils sans lui le maître universel ? C’est l’amour, l’amour seul qui conduit les esprits vers le père de la nature.
C’est par l’amour que les Dieux sont heureux ; c’est par l’amour que les hommes ressemblent aux Dieux : l’amour rend le ciel plus beau et fait de la terre un séjour céleste.

Schiller Poésies traduzidas por M.X.Marmier, Paris, 1969

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

No conseguir despertar la inconsciencia — seguir el río


Miguel Rivera Bagur

Estou imensamente agradecido à Maria Alonso Seisdedos do blog http://opoemaquehojepartilhariacomvoces.blogspot.com/2011/08/nao-conseguir-acordar-inconsciencia.html que traduziu este poema meu aqui



la poca luz anterior de un final de tarde
donde habían rodado rostros vagos de ciudad
trayectos de pasos sucesivos al lado de las carreteras
en las aceras, en las paradas, sin misterio
cronometrados.

el quiosco —el paquete de tabaco, el periódico
el café ocasional —las voces dispersas en argollas
la comida china —alas de pájaro y dificultades
el banco —velos de números y sonrisas de contabilidad
la reunión flemática —garzas altas y nudos de corbatas
el trabajo —hojas A4 y conversaciones cerradas
el supermercado —yogures, chocolate y congelados.


la poca luz interior de un final de tarde en el hall,
en la entrada. la correspondencia espera.
nada de sobres cuadrados, postales,
letras sin ordenadores, caligrafías de pluma
oros raros, ¿hace cuánto tiempo que no escribes una carta?


sin vacilar ha olvidado la ropa en cualquier lado
en el soporte de la bañera, en la esfera del toallero
en la silla más pequeña, en el respaldo del sofá
donde agua, una gota de agua se desliza y pierde densidad.


sin más que la parte de abajo, se ha acostado rendido
de ojos rasgados y húmedos como Rubens, un día
en Madrid, en el museo del Prado, un lienzo al óleo
un cuadro, donde las pieles claras, los peinados
ya no se acuerda bien, es igual, ya no sabe.


se ha acostado pronto sin cumplir horarios
muy cerca de aquel otro cuerpo acostado;
un campo de cereal en el Alentejo lejos
donde el baile libre de aves en el cielo
donde los nidos de cigüeña, las espigas
agudas y risueñas.


no ha conseguido despertar la inconsciencia.
con los ojos abiertos como un mochuelo, pero sentado,
ha pensado en los jardines escondidos del Palacio.


la mano como un navío ha bajado desde la rodilla
al ángulo del ilíaco, ha pasado el diafragma
hasta el oriente opuesto y diagonal de un hombro.
ha repetido el gesto como quien completa una oración
las manos, las costillas flotantes, pasando
al opuesto hombro, diafragma, corazón.
los brazos que se cruzan y los sonidos de la radio
a la hora de las notícias. es igual. es igual.


oscura la luz del cuarto y las dos almohadas
dunas blancas de algodón, anatómicas en bancal.
los labios entreabiertos, entrada sibilante
de una isla sin continentes, un lugar de silencios;
¿por qué no has escrito?
el alma sin alas, en arco, en caída.


nada más y ahora la música cardíaca —
como la piedra grande expandiendo los círculos,
la música – un vals largo e lejano
en las orillas nocturnas del Danúbio.


de madrugada el astro ha enviado los raios, miríadas,
y los párpados ya aturdidos han arrimado los remos
y han seguido el río —

terça-feira, 2 de agosto de 2011

escutar as cordas do céu horas seguidas


fotografia de bosque retirada daqui

ineficaz o silêncio quando sopra o vento leste
que apluma a mente e solta as palavras
leves e libertas, dos fios fortes da marionete-mundo
até à apoplexia de um imensidão de ar
inesgotável, presente, invisível e transparente;
sinto-me, vivo, respiro.

escutar as cordas do céu horas seguidas -

procuramos menos do que devíamos
as asas luminosas para além das nuvens
enjaulados nas paredes do quarto
insistindo cegos no transporte de portas fechadas em frente aos óculos
escurecendo a insustentável leveza de uma semente crescida nos braços
até à folha verde que assume o risco de ser primeira
de não querer ser única, inútil e sozinha
o ser advento de uma sombra protectora por sobre a terra ainda húmida.

as casas e os quartos herméticos, conservados, desinfectados, não libertam os lagos
a prata dos espelhos flutuantes
são cinzentos como cinzas de chamas extintas
impondo a condição de não benefício de tonterias;
a arte, o poema, a surpresa, a lua branca disponível
a imagem pela corda de poliamida; nylon forte, seda fina -

existe um anzol de cimento no fundo dos pés atrasando o passo
no bom mundo falso, mundo epidérmico, sem magma
incêntrico como um íman, um sorriso no retrato
os dentes brancos e os pulmões abismados de carbono
intoxicados, incondizentes com o folclore da festa
os ouros em pó nos espantos de uma agonia, previsível -

os buracos abertos das bombas lembram rotinas
as fomes lancinantes da Etiópia e do Sudão, rotinas
os discursos políticos e as notícias, rotinas
a radioactividade de culturas monolíticas, rotinas
a cor dos táxis e autocarros, rotinas
as chávenas de café, gastas no esmalte dos bordos, rotinas
os lábios lassos, os olhares e os braços caídos, rotinas
os nascimentos, baptizados, aniversários e funerais, rotinas
a cor das batinas erguendo hóstias e penalizando ousadias, rotinas
os anjos nus de trombetas e em alegorias, rotinas
as buzinas agudas e dissonantes, rotinas
os bicos tristes dos pássaros em piadeiras aflitivas, rotinas
a inclinação cega e amarela dos girassóis, rotinas
uma bata azul, a pele preta, um pano molhado sobre vidros, rotinas
uma gravata às riscas, florentina e um lenço sem uso, rotinas
as palavras mortas dos clássicos e as descompostas modernas filosofias, rotinas
as praias nuas, os ventos de verão e o frio branco da espuma, rotinas

as rotinas são esquecimentos da alma, nascentes de breu, névoas infelizes
e os bosques estão vazios -


José Ferreira 2 Agosto 2011

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Il - Pleut - Caligrama de Guillaume Apolinaire





Il pleut des voix de femmes comme si elles étaient mortes même dans le souvenir

C'est vous aussi qu'il pleut merveilleuses rencontres de ma vie ô gouttelettes

Et ces nuages cabrés se prennent à hennir tout un univers de villes auriculaires

Écoute s'il pleut tandis que le regret et le dédain pleurent une ancienne musique

Ecoute tomber les liens qui te retiennent en haut et en bas