CUMPRIR LIMITES, NÃO CUMPRINDO AS REGRAS:
O EXCESSO NA POESIA DE MARIA TERESA HORTA
Ana Luísa Amaral
Recensão ao livro de Maria Teresa Horta, Antologia pessoal, 100 poemas, (Lisboa, Gótica, 2003), in Relâmpago, nº 14, Abril, 2004, pp. 131-133
O EXCESSO NA POESIA DE MARIA TERESA HORTA
Ana Luísa Amaral
Recensão ao livro de Maria Teresa Horta, Antologia pessoal, 100 poemas, (Lisboa, Gótica, 2003), in Relâmpago, nº 14, Abril, 2004, pp. 131-133
The Road of Excess leads to the Palace of Wisdom.
William Blake
William Blake
Não pretendo mais do que o limite,
que para além do limite
já se entrega
eu cumpro os meus
limites
não cumprindo as regras
Maria Teresa Horta
“Tacteio à minha / volta / e é só fulgor … // Para a minha sede / nenhuma água chega”. São estas a primeira e última estrofes do poema que figura na contracapa da colectânea de poemas de Maria Teresa Horta, agora dada à estampa pela Gótica. O poema, intitulado justamente “Fulgor”, pode ser pretexto para começar a falar desta poesia como uma poesia de excesso, um aspecto que atravessa todos os livros publicados por Maria Teresa Horta e continua presente nesta selecção, que reúne poemas publicados entre 1960 (Espelho Inicial) e 1999 (Só de Amor) — ressalve-se que, a fechar o livro, se encontram ainda textos inseridos no volume Vozes e Olhares no Feminino, de 2001.
Estamos, então, perante uma antologia pessoal, de cem poemas escolhidos. Sublinho escolhidos, porque a selecção não poderia, a meu ver, ter sido mais feliz. Se se mantém nesta antologia o elemento de excesso, característico, como disse já, da escrita de Maria Teresa Horta, e se continuamos a detectar aqui dois grandes vectores estruturantes, que são o corpo sexual e erotizado e o corpo do texto, erotizado também, o que é certo é que a exclusão de muitos poemas veio transformar este volume num livro novo e diferente, que permite, mais do que revisitar, redescobrir e admirar esta poesia, tão injustamente negligenciada ou mal ajuizada. Seleccionar cem poemas de entre centenas, distribuídos por quinze livros, significa uma enorme capacidade de auto-crítica, mas significa também um gesto de abdicação e contenção, que, aparentemente, colide com a dimensão excessiva de que falei acima. Só aparentemente, todavia, já que esta contenção acaba por tornar ainda mais evidente a presença do excesso, sendo excesso entendido aqui não só como o que se afasta da norma (nesse sentido, o excesso será a diferença), mas ainda como aquilo que a ultrapassa em demasia. É esse demasiado, ou ilimitado, esse lugar de ruptura-para-lá-da-ruptura, que é difícil isolar e definir. Mas, porque o limite se encontra além da norma, num espaço onde a questão da infracção deixa de contar, transgressão, subversão e limite não são elementos alternativos, mas momentos tangentes. Por isso se pode dizer, no poema de que me servi como epígrafe, e que é um dos três únicos poemas do livro que não tem título, que é possível “cumprir … limites, / não cumprindo as regras” (p. 111).
Encontramo-nos, assim, perante uma poesia (e uma poética) servida por dois processos de ruptura com a norma: a transgressão e a subversão. Se a transgressão não destrói o sistema, visto criar um sistema paralelo, a subversão, por seu lado, porque parte de dentro do próprio sistema, efectua sobre ele um efeito de corrosão, que o abala. Os dois processos estão presentes nesta poesia. E ambos resultam numa grande novidade.
Penso que a subversão na poesia de Maria Teresa Horta reside num inteligente aproveitamento da tradição poética ocidental, para, a partir dela, se criar uma versão outra (uma sub-versão): é assim que, a partir da éducation sentimentale de Fréderic, se inventa uma nova Educação Sentimental (1975), onde a mulher pode agora dizer “do [seu] corpo / o uso dos [s]eus dias”, ou da “alegria / do corpo sem disfarce” (p. 95), ou despudoradamente falar da aprendizagem “[d]o vagar da arte” do amor e do erotismo, onde cabem “dedos”, “mãos”, “braços”, e também “suco”, “pénis”, “seios”, “a seda da pele / das virilhas” (pp. 96-7); é assim também que o medieval “minha senhor”, forma de tratamento dado pelo homem à mulher no amor cortês, será re-elaborado, através da reivindicação de um espaço de mulher autónomo e livre, e transformado em “minha senhora de mim” (título para poema e para um dos mais célebres livros de Maria Teresa Horta, publicado em 1971 e retirado pela censura), onde é até permitido ao sujeito feminino “desaver-se” consigo própria (p. 67).
Por outro lado, ou em simultâneo, assiste-se a um processo de transgressão que é notório desde os primeiros livros, aqui epitomizados no “Poema de Insubordinação” (p. 8), evoluindo ao longo dos outros livros. Poderíamos, nesse sentido, isolar inúmeros textos desta antologia, em que são desafiadas as convenções da poesia lírica amorosa, ao instituir-se o sujeito feminino como enunciador e encenador do desejo e elemento de domínio da relação, ou ao proceder-se à re-distribuição, mais do que à inversão, de papéis sexuais tradicionalmente instituídos. São disto exemplos o poema “Segredo” (p. 72), do livro Minha Senhora de Mim (1972): “Não contes do meu / vestido / que tiro pela cabeça // Nem que corro os / cortinados / para uma sombra mais espessa (…) Não contes do meu / novelo / nem da roca de fiar // nem o que faço / com eles / a fim de te ouvir gritar”); ou o poema “Docemente” (p. 89), do livro Educação Sentimental (1975): “Docemente / disponho dos teus braços // dos peixes que navegam / docemente”); ou o poema, intitulado precisamente “Do Excesso” (pp. 121-2), do livro Destino (1997), em que, a dado momento, se pode ler: “Tu escusas o escusado / e só no excesso / me encontrarás a beijar-te o corpo louco // Sou eu que ponho aquilo / que tu vestes / e disponho daquilo que tu escondes” (p. 122); ou, finalmente, o poema “Foz” (p. 138), do livro Só de Amor (1999), em que o sujeito poético, claramente identificado como feminino, se auto-define como “espada”.
Estamos, pois, perante um conjunto de poemas criteriosamente seleccionados e arrumados, o que torna muito mais evidente e fácil detectar estes processos, bem como neles verificar a preocupação constante com o corpo e o corpo do texto. Por isso, ao “dizer do corpo / o corpo da poesia // Os ombros / os seios / o ventre” é “pensar” e “escrever / do corpo / o corpo da poesia” (pp. 125-6), acompanhado pelos “silêncios da fala”, o “silêncio que posto / em cima do silêncio”, como um corpo sobre outro corpo, “usurpa do silêncio o seu magro labor” (p. 162), o sujeito de enunciação reconhece-se como “a voz / onde invent[a] o nada” (p. 138). Nessa invenção (ou reinvenção), é possível à mulher poeta reivindicar o estatuto de “bruxa da palavra” (p. 104), ocupando-se, num gesto novo, subversivo da relevância das musas, de uma maternidade para os poetas — “Quem são as mães / dos poetas? As fadas das serras altas? / As bruxas da floresta?” (p. 123) —, ao mesmo tempo que definindo-os (e definindo-se) como “alquimistas do futuro” (p. 124).
É ainda interessante verificar as diferentes ocorrências de negativas nos poemas que aqui se apresentam, pelo sentido que contêm de afirmativa autonomia: “Não sou escrava / de lamento … // não quero anéis / de aceite / para enfeitar os meus olhos” (p. 69); “Não ergas / meu cavalo / as crinas da memória” (p. 82); “A bota não faz / a espora … // Desterro não faz domínio” (p. 60). “«No» is the wildest Word we consign to Language”, escrevia Emily Dickinson. Na poesia de Maria Teresa Horta exercita-se também um gesto semelhante de força e energia, e tantas vezes violência, porque ser-se “senhora do [s]eu silêncio / com tantos quartos fechados” (p. 68) equivale a instaurar uma espécie de desordem ordenada, em que se pode ser “raivosamente instável” (p. 119).
Maria Teresa Horta elegeu, para encerrar esta antologia (que aproveita dos livros Verão Coincidente (1962), Candelabro (1964), Minha Senhora de Mim (1971), Os Anjos (1983) e Destino (1997), os poemas que antes os estruturavam e lhes davam título), o poema “Os silêncios da fala”, já aqui referido, esse poema que fala do silêncio que “usurpa do silêncio o seu magro labor” — o da poesia. O poema que o antecede intitula-se “Português” (pp. 160-1) e é dos melhores exemplos da fusão entre corpo e corpo textual — ambos erotizados e transgressores ambos. Nesse poema, de 2001, retoma-se a imagética do desejo, retomam-se as redes de oposições e contrastes, tal como se retoma a subversão de espaços tradicionalmente femininos, a que pertencem “a roca e o bordado”, para a seguir se diluírem as dimensões literal e simbólica de corpo. “Se a língua ganha / a dimensão da escrita / E a escrita ganha / a dimensão do mundo” (p. 160) — assim começa o poema. E, da hipótese proposta, que se detém no corpo da palavra e nas suas infinitas possibilidades, conclui-se que “[d]escer é preciso até ao fundo / na busca das raízes da saliva / que na boca vão misturar tudo” (id.). Este processo de fusão entre corpo e corpo textual, entre língua e linguagem, culmina nos versos “O tempo a confundir qualquer abraço / entre o visto e o escrito” (p. 161). E assim se confundem e se fundem o palpável e tangível corpo com o impalpável e intangível texto. Ambos capazes de exercitar a liberdade de “subir a pulso / o mundo” (id.).
“Subir a pulso o mundo” — julgo que não haverá melhor expressão para caracterizar esta escolha rigorosa e feliz, a marcar, em cem poemas, quarenta anos de uma poesia nova.
Estamos, então, perante uma antologia pessoal, de cem poemas escolhidos. Sublinho escolhidos, porque a selecção não poderia, a meu ver, ter sido mais feliz. Se se mantém nesta antologia o elemento de excesso, característico, como disse já, da escrita de Maria Teresa Horta, e se continuamos a detectar aqui dois grandes vectores estruturantes, que são o corpo sexual e erotizado e o corpo do texto, erotizado também, o que é certo é que a exclusão de muitos poemas veio transformar este volume num livro novo e diferente, que permite, mais do que revisitar, redescobrir e admirar esta poesia, tão injustamente negligenciada ou mal ajuizada. Seleccionar cem poemas de entre centenas, distribuídos por quinze livros, significa uma enorme capacidade de auto-crítica, mas significa também um gesto de abdicação e contenção, que, aparentemente, colide com a dimensão excessiva de que falei acima. Só aparentemente, todavia, já que esta contenção acaba por tornar ainda mais evidente a presença do excesso, sendo excesso entendido aqui não só como o que se afasta da norma (nesse sentido, o excesso será a diferença), mas ainda como aquilo que a ultrapassa em demasia. É esse demasiado, ou ilimitado, esse lugar de ruptura-para-lá-da-ruptura, que é difícil isolar e definir. Mas, porque o limite se encontra além da norma, num espaço onde a questão da infracção deixa de contar, transgressão, subversão e limite não são elementos alternativos, mas momentos tangentes. Por isso se pode dizer, no poema de que me servi como epígrafe, e que é um dos três únicos poemas do livro que não tem título, que é possível “cumprir … limites, / não cumprindo as regras” (p. 111).
Encontramo-nos, assim, perante uma poesia (e uma poética) servida por dois processos de ruptura com a norma: a transgressão e a subversão. Se a transgressão não destrói o sistema, visto criar um sistema paralelo, a subversão, por seu lado, porque parte de dentro do próprio sistema, efectua sobre ele um efeito de corrosão, que o abala. Os dois processos estão presentes nesta poesia. E ambos resultam numa grande novidade.
Penso que a subversão na poesia de Maria Teresa Horta reside num inteligente aproveitamento da tradição poética ocidental, para, a partir dela, se criar uma versão outra (uma sub-versão): é assim que, a partir da éducation sentimentale de Fréderic, se inventa uma nova Educação Sentimental (1975), onde a mulher pode agora dizer “do [seu] corpo / o uso dos [s]eus dias”, ou da “alegria / do corpo sem disfarce” (p. 95), ou despudoradamente falar da aprendizagem “[d]o vagar da arte” do amor e do erotismo, onde cabem “dedos”, “mãos”, “braços”, e também “suco”, “pénis”, “seios”, “a seda da pele / das virilhas” (pp. 96-7); é assim também que o medieval “minha senhor”, forma de tratamento dado pelo homem à mulher no amor cortês, será re-elaborado, através da reivindicação de um espaço de mulher autónomo e livre, e transformado em “minha senhora de mim” (título para poema e para um dos mais célebres livros de Maria Teresa Horta, publicado em 1971 e retirado pela censura), onde é até permitido ao sujeito feminino “desaver-se” consigo própria (p. 67).
Por outro lado, ou em simultâneo, assiste-se a um processo de transgressão que é notório desde os primeiros livros, aqui epitomizados no “Poema de Insubordinação” (p. 8), evoluindo ao longo dos outros livros. Poderíamos, nesse sentido, isolar inúmeros textos desta antologia, em que são desafiadas as convenções da poesia lírica amorosa, ao instituir-se o sujeito feminino como enunciador e encenador do desejo e elemento de domínio da relação, ou ao proceder-se à re-distribuição, mais do que à inversão, de papéis sexuais tradicionalmente instituídos. São disto exemplos o poema “Segredo” (p. 72), do livro Minha Senhora de Mim (1972): “Não contes do meu / vestido / que tiro pela cabeça // Nem que corro os / cortinados / para uma sombra mais espessa (…) Não contes do meu / novelo / nem da roca de fiar // nem o que faço / com eles / a fim de te ouvir gritar”); ou o poema “Docemente” (p. 89), do livro Educação Sentimental (1975): “Docemente / disponho dos teus braços // dos peixes que navegam / docemente”); ou o poema, intitulado precisamente “Do Excesso” (pp. 121-2), do livro Destino (1997), em que, a dado momento, se pode ler: “Tu escusas o escusado / e só no excesso / me encontrarás a beijar-te o corpo louco // Sou eu que ponho aquilo / que tu vestes / e disponho daquilo que tu escondes” (p. 122); ou, finalmente, o poema “Foz” (p. 138), do livro Só de Amor (1999), em que o sujeito poético, claramente identificado como feminino, se auto-define como “espada”.
Estamos, pois, perante um conjunto de poemas criteriosamente seleccionados e arrumados, o que torna muito mais evidente e fácil detectar estes processos, bem como neles verificar a preocupação constante com o corpo e o corpo do texto. Por isso, ao “dizer do corpo / o corpo da poesia // Os ombros / os seios / o ventre” é “pensar” e “escrever / do corpo / o corpo da poesia” (pp. 125-6), acompanhado pelos “silêncios da fala”, o “silêncio que posto / em cima do silêncio”, como um corpo sobre outro corpo, “usurpa do silêncio o seu magro labor” (p. 162), o sujeito de enunciação reconhece-se como “a voz / onde invent[a] o nada” (p. 138). Nessa invenção (ou reinvenção), é possível à mulher poeta reivindicar o estatuto de “bruxa da palavra” (p. 104), ocupando-se, num gesto novo, subversivo da relevância das musas, de uma maternidade para os poetas — “Quem são as mães / dos poetas? As fadas das serras altas? / As bruxas da floresta?” (p. 123) —, ao mesmo tempo que definindo-os (e definindo-se) como “alquimistas do futuro” (p. 124).
É ainda interessante verificar as diferentes ocorrências de negativas nos poemas que aqui se apresentam, pelo sentido que contêm de afirmativa autonomia: “Não sou escrava / de lamento … // não quero anéis / de aceite / para enfeitar os meus olhos” (p. 69); “Não ergas / meu cavalo / as crinas da memória” (p. 82); “A bota não faz / a espora … // Desterro não faz domínio” (p. 60). “«No» is the wildest Word we consign to Language”, escrevia Emily Dickinson. Na poesia de Maria Teresa Horta exercita-se também um gesto semelhante de força e energia, e tantas vezes violência, porque ser-se “senhora do [s]eu silêncio / com tantos quartos fechados” (p. 68) equivale a instaurar uma espécie de desordem ordenada, em que se pode ser “raivosamente instável” (p. 119).
Maria Teresa Horta elegeu, para encerrar esta antologia (que aproveita dos livros Verão Coincidente (1962), Candelabro (1964), Minha Senhora de Mim (1971), Os Anjos (1983) e Destino (1997), os poemas que antes os estruturavam e lhes davam título), o poema “Os silêncios da fala”, já aqui referido, esse poema que fala do silêncio que “usurpa do silêncio o seu magro labor” — o da poesia. O poema que o antecede intitula-se “Português” (pp. 160-1) e é dos melhores exemplos da fusão entre corpo e corpo textual — ambos erotizados e transgressores ambos. Nesse poema, de 2001, retoma-se a imagética do desejo, retomam-se as redes de oposições e contrastes, tal como se retoma a subversão de espaços tradicionalmente femininos, a que pertencem “a roca e o bordado”, para a seguir se diluírem as dimensões literal e simbólica de corpo. “Se a língua ganha / a dimensão da escrita / E a escrita ganha / a dimensão do mundo” (p. 160) — assim começa o poema. E, da hipótese proposta, que se detém no corpo da palavra e nas suas infinitas possibilidades, conclui-se que “[d]escer é preciso até ao fundo / na busca das raízes da saliva / que na boca vão misturar tudo” (id.). Este processo de fusão entre corpo e corpo textual, entre língua e linguagem, culmina nos versos “O tempo a confundir qualquer abraço / entre o visto e o escrito” (p. 161). E assim se confundem e se fundem o palpável e tangível corpo com o impalpável e intangível texto. Ambos capazes de exercitar a liberdade de “subir a pulso / o mundo” (id.).
“Subir a pulso o mundo” — julgo que não haverá melhor expressão para caracterizar esta escolha rigorosa e feliz, a marcar, em cem poemas, quarenta anos de uma poesia nova.