terça-feira, 30 de novembro de 2010

Um dia de sol


Van Gogh "ceifeiro no trigal quando o sol nasce" 1889

Eu amo as coisas que as crianças amam,
Mas em compreensão funda, acrescida,
Que eleva a minha alma, de anelante,
Sobre aqueles onde inda dorme a vida

Tudo o que é simples e é brilhante,
Despercebido à mais aguda mente,
Com infantil e natural prazer
Faz-me chorar, orgulhosamente.

Eu amo o sol com o seu brilho intenso,
O ar, como se pudesse abraçar
Com minha alma sua vastidão,
Embriagado de tanto o olhar.

E amo os céus com tal alegria
Que me faz de minha alma admirar,
Uma alegria que nada detém,
Uma emoção que não sei controlar.

Aqui estendido deixem-me ficar
Diante do sol, da luz absorvida,
E em glória deixem-me morrer
Bebendo fundo da taça da vida;

Absorvido no sol e espalhado
Por sobre o infinito firmamento
Como gotas de orvalho, dissolvido,
Perdido num louco arrebatamento;

Misturado em fusão com toda a vida,
Perdido em consciência, impessoal,
Fico parte da força e da tensão,
Pertença duma pátria universal;

E, de modo estranho e indefinido,
Perdidos no Todo, um só vivente,
Essa prisão a que eu chamo a alma
E esse limite a que chamo mente.

Alexander Search 1908

In Poesia , Assírio & Alvim , edição e tradução de Luisa Freire, 1999

Fernando Pessoa por Sophia



Em sinal de sorte ou de desgraça
A tua sombra cruza o ângulo da praça (Trémula incerta impossessiva alheia
E como escrita de lápis leve e baça)
E sob o voo das gaivotas passa
Atropelada por tudo quanto passa

Em sinal de sorte ou de desgraça


Sophia do Mello Breyner Andresen In O Nome das Coisas

Minha imaginação é um arco do triunfo


De autor desconhecido "lugar arco-íris"

75 anos sem Fernando Pessoa

Minha imaginação é um Arco de Triunfo.
Por baixo passa toda a Vida.
Passa a vida comercial de hoje, automóveis, camions,
Passa a vida tradicional nos trajes de alguns regimentos,
Passam todas as classes sociais, passam todas as formas de vida,
E no momento em que passam na sombra do Arco do Triunfo
Qualquer coisa de triunfal cai sobre eles,
E eles são, um momento, pequenos e grandes.
São momentaneamente um triunfo que eu os faço ser.

O Arco de Triunfo da minha Imaginação
Assenta de um lado sobre Deus e do outro
Sobre o quotidiano, sobre o mesquinho (segundo se julga)
Sobre a faina de todas as horas, as sensações de todos os momentos.
E, as rápidas intenções que morrem antes do gesto.

Eu-próprio, à parte e fora da minha imaginação.
E contudo parte dela,
Sou a figura triunfal que olha do alto do arco.
Que sai do arco e lhe pertence,
E fita quem passa por baixo elevada e suspensa.
Monstruosa e bela.

Mas às grandes horas da minha sensação,
Quando em vez de rectilínea, ela é circular
E gira vertiginosamente sobre si-própria,
O Arco desaparece, funde-se com a gente que passa,
E eu sinto que sou o Arco, e o espaço que ele abrange,
E toda a gente que passa,
E todo o passado da gente que passa,
E todo o futuro da gente que passa,
E toda a gente que passará
E toda a gente que já passou.
Sinto isto, e ao senti-lo sou cada vez mais
A figura esculpida a sair do alto do arco
Que fita para baixo
O universo que passa.
Mas eu próprio sou o Universo,
Eu próprio sou sujeito e objecto,
Eu próprio sou Arco e Rua,
Eu próprio cinjo e deixo passar, abranjo e liberto,
Fito de alto, e de baixo fito-me fitando,
Passo por baixo, fico em cima, quedo-me dos lados,
Totalizo e transcendo,
Realizo Deus numa arquitectura triunfal
De arco de Triunfo posto sobre o universo,
De arco de triunfo construído
Sobre todas as sensações de todos que sentem
E sobre todas as sensações de todas as sensações...

Poesia do ímpeto e do giro. Da vertigem e da explosão,
Poesia dinâmica, sensacionista, silvando
Pela minha imaginação fora em torrentes de fogo,
Em grandes rios de chama, em grandes vulcões de lume.

Álvaro de Campos In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002

a propósito da má interpretação de um canto suave


Julio Romero Torres "Amor sagrado Amor profano" 1908


por vezes misturam-se as palavras
e o que devia ser uma penugem de ave
um canto delicado, desafina e tropeça
transforma-se em raio, trovão e tempestade

e a culpa não inscrita nas palavras
torna-se culpa de verdade
uma barragem surda que segura as águas -

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A poupée valsante de Poldini


Miró


a realidade nos primeiros acordes do piano
e a melodia única que junta o violino;
cordas à mostra e cordas escondidas
teclas brancas e são menos as negras, e que diferença
que diferença no uníssono do agudo, o sharp afiado do som
a envoltura de mãos, inclinações, o jogo fixo e móvel
as mudanças de tom -

a realidade de um dueto tantas vezes na desordem
porque há a sombra e o vaticínio
de atraiçoar as horas, inverter o tempo, o medo
de um presente não retomar as vagas
diluir o sal, separado no processo complicado;
mar e rio, rio e mar, mar e rio, rio e mar -

uma” Poupée valsante de Poldini “no deslizar do arco
o violino, o piano, o acentuar das teclas -

amanhece a realidade na chávena branca de porcelana
por dentro, um fumo que evola, um sonho, actores em cena
uma visita, acordada em múltiplas imagens
a todas as curvas, tão redondas e suaves
a mente, o corpo e as palavras -

o dueto na rádio termina e despem-se as notícias, mas
no fixo vapor de uma janela estende-se a melodia
os sustenidos, os diminutos, os aumentativos
a gota descai, definindo a claridade de duas margens
ao mesmo tempo, sem se tocarem e sem ausência
na permanência de uma nuvem e um vidro transparente

enquanto lá fora o frio -

domingo, 28 de novembro de 2010

Foz do Tejo, um país


Pollock "Blue" 1943

O rio não dialoga senão pela alma
de quem o olha e embebeu a sua alma
de olhares ribeirinhos no passado
ou à flor do pensamento no futuro.

É um país que fala dentro da fronte,
olhando as naus, navios, barcos pesqueiros
e o trilho das famintas aves pintoras
de riscos negros, que perseguem o odor
das redes cheias, as outrossim poéticas
familiares gaivotas. É uma costa inteira
de imagens de gaivotas dentro dos olhos.
São bocas a pensar razões da vida,
gargantas já caladas pela nascença e morte,
quando entre si se vêem ou juntas olham
o mar dos seus próprios dias. São cabeças
velhas de labutar, entre dentes cerrados,
as palavras mudas de um ofício no mar,
antigas de silêncio, como se no esófago
guardassem há muito a sabedoria de ir
enfrentar o mar, transpor o mar, estar.

Tal como um rio o mar só quer falar
pela dor e alegria de alma com que o chama,
há séculos na orla, um povo mudo,
com as palavras presas, guturais sem fôlego,
dentro de si, tão firmes no palato, articuladas
na língua interior. E o mar é quieto ou bravo,
e a alma tensa de uma paixão secreta,
escondida atrás da boca, e sempre aberta,
tal como as pálpebras diante desta água.

Só a alma sabe falar com o mar,
depois de chamar a si o Rio, no imo
de cada um, recordações, de todos
os que cumprem na linha da costa o seu destino.
O de crianças, berços nascidos à beira-mar,
aleitadas por água marinha bebida por rebanhos,
alimentadas por frutos regados pela bruma.
Mesmo quando petroleiros, se olharmos o mar,
passam sem som na glote, para nós mesmos dizemos
que o tempo já findou das caravelas outrora
e dentro do nosso sangue passa o tempo de agora.

Também as vacinas, fenícias áfonas no poema
que as canta, sabem as formas, pelo olhar,
de serem mulheres com peixes à cabeça.
E os pregões que eu calo, revendo-as, eram outra
língua do mar, os nomes com que nos chamam
para o seu modo de levar entre as casas o mar.
Mas as dores não as ecoa o mar, nem mesmo
as de poetas, só as pancadas das palavras
no encéfalo parecem ser voz do mar.

É uma nação única de memórias do mar,
que não responde senão em nós. Glórias, misérias,
que guardámos por detrás do olhar lírico
e da língua, a silabar dentro da boca.
Nunca chamámos o mar nem ele nos chama
mas está-nos no palato como estigma.

FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

sábado, 27 de novembro de 2010

Theatrum Anatomicum




Feliz nunca é bem o termo.
Nada nunca é bem o termo, é certo,
mas feliz, menos ainda.

E é por isso que eu tenho a certeza
que o mais pequeno país do mundo
é não ser feliz
- e querer ser feliz, ainda,

é a grande moda deste Inverno,
assim como as flores que nascem
um pouco loucas na boca do pugilista,
fruto das suas gengivas sensíveis
e da face menos visível do escudo
onde está gravado o brasão
da sua falta de reservas

porque mesmo que as nossas raízes
pesem o dobro dos advérbios

é preciso pintar o mundo com clorofórmio verde
e assistir, sem hesitação, da tribuna
à autópsia de um desequilíbrio.

recusaste todas as pétalas


Alexandre Solar "Axende en curvas mi flama hasta el sol" 1922

recusaste todas as pétalas
todas as telas pintadas no bico das aves.
mas devo dizer-te, que apesar do uso habitual do silêncio
hoje não há força que segure os lábios. não há lei alguma.
acredito em todos os deuses e deusas com a pele à mostra
que nos habitam a alma
que nos colocam do outro lado do espelho
em profundo espanto pela barba mal cortada e uma pinga de sangue
uma gargalhada, pelos cabelos demasiado curtos, demasiado longos.
há aqueles que nos magoam, mas não são indiferentes
importam-se, porque o tempo voa -

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

a morte do homem

o corpo foi encontrado pouco depois do nascer do sol. mal coberto pela folhagem, costas no chão, braços estendidos ao longo do tronco, mãos voltadas para cima em abandono. não havia no rosto sinais de sofrimento e os olhos estavam fechados. o exame preliminar apontava para um suicídio por desistência mas alguém deu conta que faltava um sapato. o mesmo alguém que, passados minutos, fez rodar o cadáver e encontrou, junto à nuca da vítima, o microscópico orifício por onde lhe haviam retirado a humanidade.

.
r.
quinze.outubro.doismiledez
.

o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias


Di Chirico " A luva vermelha" 1958

o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,
como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.
eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar,
que eu amava quando imaginava que amava. era a tua
a tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto.
era a tua pele. antes de te conhecer, existias nas árvores
e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.
muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.

José Luís Peixoto

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

o poeta é uma construção aglomerada


Alejandro Solar "Almas de Egipto" 1923


um a um e em cada casa, o tijolo faz parte
de uma construção aglomerada: trabalho, cimento e ferro.
o poeta não esquece a casa, o pó material
as chuvas rotineiras, as linhas tortas da realidade.
o poeta não é nenhum astronauta na abóbada umbilical.

os poetas são “obscuros” e são “claros”
porque não acreditam em tudo e muitas das vezes
não acreditam em nada
esvaziam a campânula até à extremidade
um vazio quântico, até ao big-bang.
colocam os joelhos como cotovelos dos olhos
as pernas como bengalas e sobem estradas, encostas pesadas
de sombras vagas, oblíquas , indomáveis.

os poetas precisam atentar, não se trata de procurar ilhas
inferir de certezas, habitar em Marte.
na lógica dos poetas, as cidades podem ser campos
e os campos ter prédios altos. estranhos personagens.
conversam também com os lagos, as árvores e os pássaros
e são famosas as análises com as pedras interessadas.

mas, os poetas, recusam o ecrã da dupla realidade:
um perante o outro, outro perante a alma.
desta forma, cortam-se em pedaços
tentam da maneira mais áspera, a transcendência;
conhecimento e conhecer-se, na árdua tarefa
de ser apenas legível, a pequena percentagem.

o poeta é aglomerado, como arma usa a metáfora.
a metáfora é um olhar com fome -

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A casa e o mundo


Portal da casa de Osíris 1250 a.c. (Museu Britânico)

Aquilo que às vezes parece
um sinal no rosto
é a casa do mundo
é um armário poderoso
com tecidos sanguíneos guardados
e a sua tribo de portas sensíveis.

Cheira a teias eróticas. Arca delirante
arca sobre o cheiro a mar de amar.

Mar fresco. Muros romanos. Toda a música.
O corredor lembra uma corda suspensa entre
os Pirinéus, as janelas entre faces gregas.
Janelas que cheiram ao ar de fora
à núpcia do ar com a casa ardente.

Luzindo cheguei à porta.
Interrompo os objetos de família, atiro-lhes
a porta.
Acendo os interruptores, acendo a interrupção,
as novas paisagens têm cabeça, a luz
é uma pintura clara, mais claramente lembro:
uma porta, um armário, aquela casa.

Um espelho verde de face oval
é que parece uma lata de conservas dilatada
com um tubarão a revirar-se no estômago
no fígado, nos rins, nos tecidos sanguíneos.

É a casa do mundo:
desaparece em seguida.


Luiza Neto Jorge ""O seu a seu tempo" Assírio & Alvim 2001

quando o heterónimo fala ergue-se a grande muralha


Gwen John 1909

quando o heterónimo fala ergue-se a grande muralha.
em Londres o relógio ensurdecedor
enlouquece o tempo das palavras.
tontas caem como pedaços de tábuas
restos de um naufrágio, flutuando pelas margens.
do cimo da Tower Bridge, com muito cuidado
reúnem-se de uma outra forma, as palavras
mais lavadas, mais seguras, melhor orientadas
pelos raios do sol, por Hiparco e o astrolábio

e de novo unidas nas cordas dos braços
renascem as metáforas e a viagem da jangada -

terça-feira, 23 de novembro de 2010

os meus pés eram bonitos



fotografia retirada da internet

os meus pés eram bonitos
apeteceu-me saltar-lhe
para os braços, mas
em vez disso, observei-a
não sem admiração
desconhecia que havia tantas
limas para a mesma ocasião
no fim, recusei pagar-lhe pois
o que ela havia dito
não tinha preço
falando, tirou-me uns calos que
há séculos me atormentavam


(aliás, as palavras são de graça
quanto mais beleza
a ninguém pertencem
a ninguém cabe vendê-las)

Bénédicte Houart "Aluimentos" Ed. Cotovia

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

um poema escrito no céu


Paul Klee




não sossega a luz de cor rubra. escurece.
surge a névoa. uma toalha sobre a mesa
quando a noite, escondida, é das estrelas;
lugar azul de mãos abertas .
anjos de lua abrem linhas nítidas
em vidros de gelatina, ombros divinos
lábios sobre as brumas
leis subidas de poesia -

perdem-se os medos por esses dedos siderais
reflexos de astros, espelhos de veludo
almas de mercúrio
flectindo em ondas célebres de chama
os ventos sibilantes, ínvios, ínvios
ínvios e marginais -

domingo, 21 de novembro de 2010

Arquipélago dos Falsários




A tentação banha os falsários. São três da manhã, uma hora suficientemente desonesta, mas às portas de tudo aquilo que nos é propício. Há sempre tempo, muito mais tempo às três da manhã (do que às duas, à uma, à meia-noite, etc.) num lugar onde a insignificância é posta à prova pela profissão intransigente e ofegante da vertigem: um quarto, por exemplo, barca inesgotável e multímoda, pira de detractores e omissos, sempre a primeira edição de um exemplar da História Universal da cobiça, com todas as suas páginas amareladas pelo vício, janelas e símbolos abertos para a cidade mortal.

Três horas antes precisamente, num bar, a vertigem apresentou-se ao piano como vendedora de destinos postiços, com serpentes como efeitos indomáveis nos cabelos molhados da chuva que já caía há dias e a indisciplina como um sal imaturo e munido de expectativas e castiçais; a origem aparecia-lhes em sonhos, a origem e a sua triste e louca dentição que iluminava a ofensa com o foco na oferta de uma noite diferente, divertida, numa grande cidade, onde a única coisa que fazemos bem (e às vezes nem isso) é cair e, por vezes, até por isso, equipar a ausência com um sistema de navegação oscular.

Suponhamos que se trata de um arquipélago (duas ilhas),
o arquipélago dos falsários, banhado pela tentação
(um excelente hermafrodita),
que capital servirá a república insular dos falsários?
onde ficará a assembeia provisória dos indecisos?
Perguntas pertinentes e a última, mesmo, voraz. Ligo o computador e visito a página da embaixada do Amor no Arquipélago dos Falsários, concorro a um anúncio para tradutor da embaixada e fico imediatamente nos quadros da empresa. Sorte ou Benefício?
Acham que eu falo e escrevo e domino muito bem,
quer o idioma de Amor, quer o de Falsários.
Pediram-me apenas que fizesse uma radiografia ao meu destino
e análises ao sangue da intuição.

Eu respondi-lhes que um beijo é sempre bilingue.
Não há anjos 100 % íngremes,
pássaros com uma só asa,
valores ciclópicos
como um poema
ou uma erecção.

sábado, 20 de novembro de 2010

Canção do charme


Ricanor Piñole "Alegoria das artes" 1929

Querida vem junto de mim
Esta noite quero cantar
Uma canção para ti

Uma canção sem lágrimas
Uma canção ligeira
Uma canção de charme

O charme das manhãs
Envolvidas em bruma
Em que valsam coelhos

O charme dos pântanos
Onde alegres crianças louras
Pescam crocodilos

O charme dos prados
Que se ceifam no Verão
Para podermos rebolar-nos

O charme das colheres
Que rapam os pratos
E a sopa de olhos claros

O charme do ovo cozido
Que permitiu a Colombo
O truque mais luzido

O charme das virtudes
Que dão ao pecado
O gosto do proibido

Podia ter-te cantado
Uma canção de carvalho
De ulmeiro ou de choupo

Uma canção de plátano
Uma canção de teca
De rimas mais duráveis

Mas sem ruído nem alarme
Preferi experimentar
Esta canção de charme

Charme do velho notário
Que no estúdio austero
Denuncia o falsário

Ou o charme da chuva
Escorrendo gotas de ouro
Sobre o cobre do leito

Charme do teu coração
Que vejo junto ao meu
Quando penso no bem-estar

Ou o charme dos sóis
Que giram sempre em volta
De horizontes vermelhos

E o charme dos dias
Apagados da nossa vida
Pela goma das noites

Boris Vian, in "Canções e Poemas"

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

A um jovem poeta



Procura a rosa.
Onde ela estiver
estás tu fora
de ti. Procura-a em prosa, pode ser

que em prosa ela floresça
ainda, sob tanta
metáfora; pode ser, e que quando
nela te vires te reconheças

como diante de uma infância
inicial não embaciada
de nenhuma palavra
e nenhuma lembrança.

Talvez possas então
escrever sem porquê,
evidência de novo da Razão
e passagem para o que não se vê.

Manuel António Pina, in "Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança"

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A cabeça em ambulância


Miguel Bagur "Eva"

Há feridas cíclicas há violentos voos
dentro de câmaras de ar curvas
feridas que se pensam de noite
e rebentam pela manhã

ou que de noite se abrem
e pela amanhã são pensadas
com todos os pensamentos
que os órgãos são hábeis
em inventar como pensos

ligaduras capacetes
sacramentos
com que se prende a cabeça
quando ela se nos afasta

quando ela nos pressente
em síncope ou desnudamento
ou num erro mais espaçoso
ou numa letra mais muda
ou na sala de tortura
na sala escura,de infância



Luiza Neto Jorge "Poesia" Assírio & Alvim

Pensarás no homem dos teus sonhos

Continuo a pensar que não sei se é mau ou bom conhecermo-nos tão pouco. A verdade é que não sabemos nada um do outro. Por um lado é agradável porque assim não se rompe o mistério e continuamos a ser aqueles dois desconhecidos que se encontraram em Vila Praia de Âncora, no verão em que aprendemos que nada é mais poético do que o segredo de um olhar cúmplice e silencioso; por outro lado não podemos ignorar o que os dois de antemão sabemos. Se nos tivéssemos conhecido melhor talvez eu não fosse aquela menina tímida e displicentemente ingénua, nem tu o cavalheiro perfeito e encantador que eu vi pela primeira vez numa praia atlântica. Quem sabe se não será melhor continuar tudo assim, na distância, ainda que em dias melancólicos pareça que me sinto a calcar o mesmo areal límpido e fresco, como se a praia da pequena vila corresse pelo mundo fora e estendesse as pedrinhas mais brilhantes (aquelas que procuravas com as mãos quando da tua boca não saiam palavras), até a porta de tua casa.

Não sei se haverá um dia de todos os que teremos no qual nos possamos encontrar novamente. Também aqui é melhor as coisas ficarem como estão. Gosto de saber que este é o maior sonho da minha vida, ver o teu rosto, abraçar-te, saber de ti. Gosto de imaginar que este sonho condiz comigo por ser simples e grande, por se bastar a si mesmo e ter como sonho um caminho a percorrer.

Não te podia dizer nunca que és o homem da minha vida. Sou avessa a esse tipo de conclusões, como se quando um coração despertasse o fechassem logo, para sempre, numa caixa de sapatos. Mas tenho a lembrança dos contos de fadas que outrora me sossegavam, da menina que fui, dos passeios de pés descalços, dos presentes que abri e guardei, do que era o mar até um dia e noutro dia passar a ser outra coisa. Tenho a memória. E nela o medo de ter guardado na caixa de sapatos sem nunca abrir, o que trouxeste no dia que descobri que no fundo do mar não vivem só peixes e plâncton. E se da caixa de sapatos já nada teu pode sair, sou eu que tenho que entrar e fechar-me nela para resgatar os passos na praia, as ondas do mar, as pedras salgadas que distraidamente escolhias como uma criança solene. O teu amigo dizia que era um género de cerimónia de chá e que tu estavas convencido que arrancavas ervas invisíveis coladas às pedras. Lembras-te? E ríamos todos quando os rapazes encenavam a espera do auge da maré alta, momento no qual fervia o reflexo do sol no oceano, hora fidedigna para preparar o chá e contemplar o entardecer acompanhado de vagas promessas.

Hoje, um sentimento estranho advém dentro da caixa, e eu, descalça, penso nos teus pés a massajar a areia nua da praia de Âncora, como se soubesses que algo de incompreensível e natural em mim estivesse enterrado no campo das areias finas. E o teu antigo silêncio a recolher pequeníssimas pedras fizesse parte de um projecto de uma magnífica sepultura para o amor, que ainda hoje prossegues a edificar em minha honra, na altura do dia que o sol vai alto e desconhece as sombras. Por isso, mesmo depois de arrumar habilmente a caixa de sapatos, concedo a um comportamento não habitual em mim - confirmo levemente com a nuca quando ouço a cigana que me diz que és o homem dos meus sonhos mesmo conhecendo-te tão pouco. Então entendo o poeta que falou de almas insepultas. Entendo a força com que o mar recolhe em cada alvorada o monumento que me leva a pensar em ti como se de um mandamento íntimo se tratasse.


[A. Roma in "cartas de um jovem amoroso"]

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

sento-me


Bettmann 1920


esta noite, um pouco absorto, sento-me.
no canto menos direito da tua cama. aquele
onde assoma um pé estreito de número pequeno.
sento-me na dobra mais presa. lá mais no fundo.
observo os óculos de aro preto como lupas
que recolhem as letras, ali, tão infinitas
no mar anónimo de prosas e poemas, os livros;
a grande rima de sentidos, uma dádiva de espíritos
almas que por ali voam, escritas.
sento-me. vestido de silêncios. sento-me.
e as folhas, soltas, sublinhadas, reflectidas
soltam-se, e abrem asas de horizonte
na leitura dos meus medos, como focos
profundos, estudiosos, macios
como remos nas sedas do Olimpo
ou mais rudes, nas areias, nos rios escuros
que por vezes se iluminam, tristes.
sento-me. sento-me e sentes
cada um dos meus dedos
um pedaço de vento
invisível, transparente -

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Retrato do poeta quando jovem


Manuel Moral 1977


Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.

Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.

Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.

Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.


(In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição)

no lençol de areias helena sobrevoa


Mario Sironi 1933

no lençol de areias Helena sobrevoa
em asas leves atravessadas de azul
como névoa fluida e breve.

no plano fixo das gaivotas, hesita
reflexiva, no entretanto de uma rocha;
uma vez alta, outra encoberta
de passagem, como uma cabeça sem forma
um chapéu amarrotado, a ponta de um icebergue
e as lapas e os limos e as ameijoas
de olhares abertos.

rude rocha, um pedaço de praia, um destroço
das altas ameias de uma Tróia destruída
onde o fumo e fogo dos exércitos em revolta
e o ruído beligerante, simbolicamente -

e o mar de muitas ondas
em canto de desassossego, murmureja
consequências de luas brancas
enquanto Helena -

domingo, 14 de novembro de 2010

Difícil poema de amor


Henry Rousseau 1897

Separo-me de ti nos solstícios de verão, diante da mesa
do juiz supremo dos amantes. Para que os juízes
me possam julgar, conhecerão primeiro o amor desonesto infinito feito de marés ambulantes
de espinhos nas pálpebras onde as ruas são os pontos únicos
do furor erótico e onde todos os pontos únicos do amor
são ruas estreitíssimas velocíssimas que se percorrem como um fio de prumo sem oscilação.

Ontem antes de ontem antes de amanhã antes de hoje antes deste
número-tempo deste número-espaço uma boca feita de lábios alheios beijou.
Precipício aberto: ele nada revela que tu já não saibas.
Porque este contágio de precipícios foste tu que mo comunicaste
maléfico
como um pássaro sem bico.

Num silêncio breve vestiu-se a cidade. Muito bom-dia querido moribundo. Sozinho declaraste a terceira grande paz mundial quando abrindo os olhos me deste de comer cronometricamente às mil e tantas horas da manhã de hoje.

Deito-me cedo contigo o meu sono é leve para a liberdade acordas-
me só de pensares nela. As casas e os bichos apoiam-se em ti. Não fujas não
te mexas: vou fixar-te para sempre nessa posição.

Que há? Abrem-se fendas no ar que respiro vejo-lhe o fundo. Tens os
olhos vasados. Qual de nós os dois "quero-Te" gritou?

Bebe-me espaçadamente encostada aos muros. Se és poeta que fazes tu?
Comes crianças jogas ases sentado és uma estátua de pé a cauda de um cometa.

Mães entretanto vão parindo. Os filhos morrerão ainda? Entregas-te a
cálculos. Amas-me demais.
Confesso: não sei se sou amada por ti.

Virás
quando houver uma fala indestrutível devolvida à boca dos mais vivos. Então
virás
vivo também. Sempre esperei ver-te ressuscitado. Desiludiste-me.

E iremos com o plural de nós nos leitos menores onde o riso, onde o
leito do rio é um filho entre os dois. Que farei de teus braços de meus cabelos
benignos que faremos?

Nasci-te da minha pele com algumas fêmeas te deitei por vezes.
Conheces-me. Não me tens amor

Grave esta corda cortada agudo seixo me ataste aos olhos para me
afundar.

Só por grande angústia me condenas à morte se de mim te veio a cidade
e os minúsculos objectos que já amaste ou que irás amar um dia espero.
Ah a cratera o abismo eléctrico!

Por isso o teu novo amor será comigo mais perigoso que este imaculado
com mais visco de amor cópula mortal.

Calo-me.
Reparei de repente que não estavas aqui. Pus-me a falar a falar. Coisas
de mulher desabitada. Sei que um dia desviarei sem ti os passeios rectos
esvaziarei os gordos manequins falantes. A razão é uma chapa de ferro
ao rubro: se acredito na tua morte começo o suicídio.

Enquanto penetrantemente te espero a luz coalhou. Os pássaros
coalharam enquanto te espero. O leite enquanto te espero coalhou. Haverá
outro verbo?
Submersa, muito distante de qualquer inferno de um paraíso qualquer existo
eu. Existirão tais palavras?

É a altura de escrever sobre a espera. A espera tem unhas de fome, bico
calado, pernas para que as quer. Senta-se de frente e de lado em qualquer
assento. Descai com o sono a cabeça de animal exótico enquanto os olhos se
fixam sobre a ponta do meu pé e principiam um movimento de rotação em
volta de mim em volta de mim de ti.

Nunca te conheci - assim explico o teu desaparecimento. Ou antes:
separei-me de ti no solstício de um verão ultrapassado. As mulheres viajavam
pela cidade completamente nuas de corpo e espírito. Os homens mordiam-
-se com cio. Imperturbável pertenceste-me. Assim nos separámos.

Não calhasse morrer um de nós primeiro que o outro porque ambos ao
mesmo tempo será impossível enquanto não houver relógios que meçam
este tempo e as horas fielmente se adiantarem e atrasarem.

Alguma vez pretendi dizer-te o que quer que fosse? Falava por paixão
por tibieza por desgosto por claridade por frio por cansaço

nunca por pretender dizer o que quer que fosse.

Não me desculpo. Se já me cai o cabelo se já não sinto os ombros é
porque o amor é difícil ou a minha cabeça uma pedra escura que carrego
sobre o corpo a horas e desoras ostentando-a como objecto público sagrado
purulento. O odor que as pedras têm quando corpos. O apocalipse de tudo
quando amamos. O nosso sangue em pó tornado entornado.

O teu amor espreita o meu corpo de longe. De longe por gestos
lhe respondo. Tenho raízes nos vulcões ternuras íntimas medos reclu-
-sos beijos nos dentes.

A pobreza surge dentro de nós embora cautelosos deitados de manhã e
de tarde ou simplesmente de noite despertos. Ambos meu amigo estamos
sentados neste momento perfeitamente incautos já. Contemplamos um país
e sentamo-nos e vestimo-nos e comemos e admiramos os monumentos e
morremos.

Inventei a nossa morte em toda a impossível extensão das palavras.
Aterrorizei-me segundos a fio enquanto em corpo nu ouvindo-me ador-
-mecias devagar.

Com a precaução de quem tem flores fechadas no peito passeei de noite
pela casa. Um fantasma forçou uma porta atrás de mim. Gemendo como um
animal estrangulado acordei-te.

Enterro o meu terror como um alfange na terra. Porque é preciso ter
medo bastante para correr bastante toda a casa celebrar bastantes missas negras
atravessar bastante todas as ruas com demónios privados nas esquinas.

Só o amor tem uma voz e um gesto mesmo no rosto da ideia que me
impus da morte.
És tu tão único como a noite é um astro.

Sobre a poeira que te cobre o peito deixo o meu cartão de visita o meu
nome profissão morada telefone.

Disse-te: Eis-me.
E decepei-te a cabeça de um só golpe.

Não queria matar-te. Choro. Eis-me! Eis-me!



Luiza Neto Jorge "Poesia" Assírio & Alvim, Lisboa, 2ª edição, 2001

sábado, 13 de novembro de 2010

A grande inteligência é sobreviver


Angel Charris 1998

A grande Inteligência é sobreviver.
As tartarugas portanto não são teimosas nem lentas, dominam;
SIM, a ciência.
Toda a tecnologia é quase inútil e estúpida,
porque a artesanal tartaruga,
a espontânea TARTARUGA,
permanece sobre a terra mais anos que o homem.
Portanto,
como a grande inteligência é sobreviver,
a tartaruga é Filósofa e Laboratório,
e o Homem que já foi Rei da criação
não passa, afinal, de um crustáceo FALSO,
um lavagante pedante;
um animal de cabeça dura. Ponto.

Gonçalo M. Tavares, in "Investigações. Novalis"

Foste Impreciso

Reparaste por me aproximar, precisei
do desvanecer de teu receio, que fosse
sereno e doce onde
não conhecias quase ninguém.
Não sabia que dei um passo, até me dares
a garantia de não atracar ao largo.
Aceitei não haver horizonte, e depois
como não recear seres um ilusionista, mesmo
ao segurares minha mão.
Se estivesse eu longe, que não estou, e
me dissesses o que esperar, para não apenas
lembrar como pousam os teus olhos sincronizados
com sorriso tão aberto.
Assim não sei se descanso.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Esta gente


Miguel Rivara Bagur

Esta gente cujo rosto
Por vezes luminoso
Por vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome

É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Pisada e calcada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e pisada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo.

Sophia do Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

não sei como falar-te nos dias intermédios


Alfred Sisquella "Ao levantar-se" 1942


não sei como falar-te nos dias intermédios.
sobre um leito de nuvens, o sol, amarelo, deitado.
sobre a rua a luz branca e o movimento
a cidade cinzenta, e no entanto a ameaça
de um fogo incidente, que não se vê
que não sucede, que não se mexe
permanece no silêncio, como um espírito
que se sente e não diz quando.

não sei como falar-te na voz dos pássaros
aqueles trinados de folha em folha, de ramo em ramo
como naquela tarde mais segura, vinda de dentro
qual marioneta sem saberes de pensamento
seguindo uma mão de sol, um braço sem relento
um rosto onde os cantos dos lábios
bem sabes, como a lua, um berço crescente
balouçando o mar ao som de uma ária ;
uma harpa, um violoncelo, um piano -

não sei como de novo falar-te, prometer
um rio de ouro em grito lancinante, sem medo
um gomo húmido e tangente, 50 000 estrelas
uma nuvem sem tempo, sem pressa, sem ausência -

tudo depende desse lugar que sempre mostra
sem possibilidade de ordem, a fantasia e a pedra
a filosofia e a fome,o icebergue e o fogo
o Id sem ego -


não sei como falar-te, não sei como dizer-te
apenas sei que nos dias intermédios, me lembro
e não sei se me conheço -

Desde a orla do mar


Antínoo Atenas Templo de Delphos


Desde a orla do mar
Onde tudo começou intacto no primeiro dia de mim
Desde a orla do mar
Onde vi na areia as pegadas triangulares das gaivotas
Enquanto o céu cego de luz bebia o ângulo do seu voo
Onde amei com êxtase a cor o peso e a forma necessária das conchas
Onde vi desabar ininterruptamente a arquitectura das ondas
E nadei de olhos abertos na transparência das águas
Para reconhecer a anémona a rocha o búzio a medusa
Para fundar no sal e na pedra o eixo recto
Da construção possível

Desde a sombra do bosque
Onde se ergueu o espanto e o não-nome da primeira noite
E onde aceitei em meu ser o eco e a dança da consciência múltipla

Desde a sombra do bosque desde a orla do mar

Caminhei para Delphos
Porque acreditei que o mundo era sagrado
E tinha um centro
Que duas águias definem no bronze de um voo imóvel e pesado
Porém quando cheguei o palácio jazia disperso e destruído
As águias tinham-se ocultado no lugar da sombra mais antiga
A língua torceu-se na boca de Sibila
A água que primeiro eu escutei já não se ouvia

Só Antínoos mostrou o seu corpo assombrado
Seu nocturno meio-dia

Sophia do Mello Breyner Andresen

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Já não lembrava ter encontrado este poema num blog, nem mesmo ter deixado o improvisado comentário. E agora, também por aqui fica. Deixo também um abraço para cada um dos residentes.


apenas a areia

e as rochas

não fazem parte

do grande conclave do mundo


Ana Peluso


Comentário:

Grande? Os grandes
O conclave do mundo? Mundano
que sei eu
faz-me pensar poder dizer apenas
apenas areia? A areia
e as rochas? É eterna a areia
Tudo se transforma
na areia a memória da rocha
enquanto não é rocha, outra
lentidão certa
tudo o que faz parte
a água que não apenas contorna
sensata, natural a defesa
a terra que a aceita
a água que ignora conclaves
e invenções
A água baila sempre
até onde bate e quando se vai no ar
não ignora o frio nem o sol
nem o mais pequeno grão de areia
também aí está
e faz parte da descoberta

Anabela Couto Brasinha

o quadro abstracto


Gerhard Richter Abstracto 1995


Diogo esperava na companhia do folheado de impressões, ideias de futuros projectos de pinturas capazes de lançar confusão na mente mais aberta; traços negros em quadrículas de tinta da china, quase sem objectivos. Abraços, encontrões, ricochetes, cruzadismo sem palavras, charada de acasos. Diogo gostava de classificar a sua forma de abordar a arte como um agricultor na rega; deixar a água entrar, chegar ao fim da leira, fechar, e abrir a nova entrada à água/inspiração. Sempre atento, sempre alerta na descoberta de um efeito novo.
Em casa, os blocos pareciam acomodar-se nos sítios mais invulgares, acenando aos visitantes: -Olá! Eu sou o bloco nº1, não desista, procure, numa prateleira perto de si, na frincha do sofá, em cima do frigorífico, junto ao comando da televisão, pode encontrar os meus irmãos, nº2,nº3, ….,etc.! Funcionava como distracção para os amigos mais próximos, habituados à rotina, durante o café, no intervalo de um filme. Não sentiam a necessidade de solicitar autorização, invadiam a intimidade do artista, arejando as folhas de gramagem acima da média, movimentando o bloco em baralho de cartas, procurando a animação no ondulado das linhas. Algumas eram preenchidas com espaços a cor, aguarelas que acrescentava. A valorização dos amigos não o seduzia, classificava-os como filhos da casa, peças da sua própria engrenagem, críticos de máximos, em bajulação ou feroz oposição.
Utilizava técnicas mistas, por vezes desconcertantes no seu objectivo de pintura abstracta, valorizando a pureza do olhar.
Certo dia a pedido do irmão foi buscar a sobrinha ao infantário. Chegou carregado com seis telas de 40x60 cm, embaladas em papel castanho. Sob o olhar divertido dos educadores, improvisou uma exposição entre gritos e saltos, palmas, risos dos pequenos circunstantes. A cada um deu pincéis nº 2,4 e 6, e ali perante a animação geral, improvisou o concurso, a votação, o quadro eleito pelo jardim escola “Girassol”.
Convidou nessa noite os seus amigos para um café e amena cavaqueira. Sem aviso, num jeito de vamos dar início ao espectáculo, anunciou votação de um a cinco com os dedos no ar e por fim alinhou os quadros por pontos. Conclusão alarmante ou nem por isso, entre algumas divagações filosóficas de arqueólogo de pinturas rupestres, confirmou o total desacordo com a análise e selecção dos seus convivas. Naturalmente no rame rame alargado das profissões tradicionais, não estavam preparados para a análise pura das crianças, que decalcam mãos cobertas de gouache, que se deliciam atrás de libelinhas sem sacos de rede, que saltam de pés para o lado e franzem narizes arrebitados, que esticam os olhos e deitam línguas de fora sem medo do ridículo.
- A minha escolha!- dizia Diogo, orgulhoso do resultado - é a delas!
Aquelas pequenas aventuras passavam mas eram respeitadas pelo artista que ainda guardava o quadro de nome “O Girassol”, em exposição permanente, acima do fogão de sala com título a letras manuscritas na parede, onde sempre que podia colocava uma caixa forrada de colagens, oferta da sobrinha, em missão de jarra, com um girassol. Acrescentava que o quadro em acrílico de tons azul suave, ligava muito bem com o girassol.
Quem não conhecia a história, gostava, e queria muitas vezes comprar o quadro, a suposta jarra, o girassol, oferecendo para o efeito quantias avultadas. No diluir do tempo, a resposta, em movimento pendular do rosto de Diogo para o quadro, para o comprador,de forma repetida,para o quadro, para o comprador, surgia com um sorriso e um seguro:
- Não seria capaz! Este quadro representa muito para mim! Teria que pintar de novo a parede! Está no lugar certo!

Vislumbre


Miguel Rivera Bagur 1989

A horas flébeis, outonais -
Por magoados fins de dia -
A minha Alma é água fria
Em ânforas d'Ouro... entre cristais...

Mário de Sá-Carneiro, in 'Indícios de Oiro'

terça-feira, 9 de novembro de 2010

entretanto o vento

durante qualquer coisa
que possa ser tomada como
medida de tempo –
uma vida, uma soluço, tanto faz –
abandonei-me das dúvidas e acreditei

acreditei nos milagres, nas mentiras, na possibilidade
de todos os impossíveis e de todos os infinitos.
acreditei por vontade de esperança.
para fugir ao cinismo e ao tédio. acreditei por desespero

agora sofro as dores de estarem moribundas
as expectativas. sangra-me a vontade
e, em breve, uma lividez inerte limpará os vestígios
de quaisquer boas vontades pensadas ou cometidas

serei incólume.
entregue a nada. crente em nada. pela rendição
aos absurdos, parte integrante de algo indiferente. em
repouso e à espera, sem tecto e sem relento, que
entretanto, o vento
raquel patriarca
nove.novembro.doismiledez

batimentos


Manuel Moral 1918

seguidos
os batimentos, os ponteiros
de um relógio cardíaco;
romance de névoa .

o corpo à mostra no cimo do mundo.
uma música significante, magnífica.

um sabor de morango
e a claridade da lua, branca -

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

cartas de um jovem amoroso

Pensei que o nosso breve amor tinha terminado. A sua última recordação seria uma distante chamada telefónica pelo Natal. Acreditei que tinha acontecido algo de muito bom na tua vida, que não necessitasses mais do que nos uniu; ou que, talvez vivesses algo de mau e estavas tão triste que não tinhas vontade de escrever. Não sei. Dei voltas sem fim e coloquei muitas hipóteses mas não cheguei a nenhuma conclusão satisfatória. Melhor, cheguei a uma, e essa talvez já a soubesse antes: que passasse o que passasse, mesmo que o tempo ditasse a sua lei, iria sempre recordar-te como o rapaz do sorriso mágico. O rapaz que só de olhar para mim fazia sentir-me bem, porque olhava de uma terra inteiramente desconhecida, mas que ainda assim era segura, como uma casa que atrai e acolhe com lírios os viajantes cansados.
Apesar que reconheço que mantive sempre a esperança de que um dia, uma carta tua, chegasse de novo às minhas mãos. E dentro das mãos, dentro de mim, nas marcas das palavras, pudesse olhar desenhado o palpitar nas covas do teu rosto, sonhando que precisasses da minha mediação para que o teu sorriso mágico nunca acabasse.

O maestro sacode a batuta



O maestro sacode a batuta,
A lânguida e triste a música rompe ...

Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
Atirando-lhe com, uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo ...

Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)

Atiro-a de encontra à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal... E a música atira com bolas
À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos ...

Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...

E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...

Fernando Pessoa "Cancioneiro"

sábado, 6 de novembro de 2010

sintoma


Chagall " Adão e Eva "

a explicação célere do universo não revelará estrelas.
por isso bela a filosofia e a sua procedência de segredos.

há uma fábula feita de palavras que encanta
quando os pássaros falam e as nuvens trémulas de cinzas
se sentam a dar conselhos, objectivos de portas brancas
sem sombras pálidas nem lugares indomáveis.
duas a duas as linhas de um tracejado;
traço intervalo traço e na distância traço intervalo traço
olhos fechados e almas cobertas de folhas.
quase se sente o horizonte habitando o deserto
transformado num mar largo
onde inquieto balouça
um barco e uma imagem;
à ré, à proa , batendo de um lado, inclinando no próximo
nódoas negras de tábuas, tropeços nas cordas soltas
à direita, à esquerda, querendo saber qual a realidade
de mãos abertas e nós desfiados dos dedos.


gémeos batimentos leves nos vidros da ilusão .
o tempo ganha um lugar silente e o tempo pára.
pode ser uma hora ou um segundo
a pequena picada de vespa e a vermelhidão
o agudo sintoma expansivo
uma gota engolida como um comprimido que adormece
miligramas de seratonina como morangos de Viena
dando voltas pelos labirintos como um passeio de bicicletas
sem paredes , sem espelhos gastos de diferenças
que esticam os olhos e engordam as formas.
transforma-se em grande a pequena gota
tão real, que leva à sua volta toda a chuva miudinha
a um belíssimo lugar de desejo, guardião de sono
ao tocar indelével o desconhecido -

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

peco
sempre que solto o meu pensamento
e te encontro
no espaço liquido de bolha de sabao
levada no vento a toa
em purpurinas de brilho
peco
sempre que imagino o teu gosto
e te beijo
sorvendo o sal e o doce que de ti se desprende
labios de carne rosada
tintos de sabor
peco
sempre que as minhas maos
desenham o teu rosto
contorno redondo e quente do amor
tatuado a ferro e fogo
no mais fundo de mim
e peco
neste lugar sem pecado
nuvem suspensa e leve
de algodao doce como tu
peco
mas nao tanto

Clara Oliveira

Poetria

surge assim
sem se fazer notar
discreta
em pezinhos de la
que as noites ja vao frias
instala-se
dominando
algures a meio do tempo
mais coisa menos coisa
e logo apos o zenite
descida primeiro leve
descida depois abrupta
espera-te no contorno da esquina
e vao-se enroscando
as heras pernas fora
num peso monstro
prendem-te raizes de sequoia
e a tela de pintor experimental
enche-se de manchas escuras
ao acaso e ao sabor do artista
e sulcos indeleveis
cada tempo mais profundos e vincados
em altura de terra lavrada a suor
o papel, esse, encarquilha-se
pergaminho amarrotado
desbotado e sem cor
o esqueleto, esse, encarquilha-se
num amontoado mikado
e o chao cada vez mais perto
perde-se altura
tudo se vai virando
com olhos rasos no fundo
atraiçoa-te a concha que ja nao obedece
atraiçoa-te quem comanda que ja nao reconhece
atraiçoa-te
tu a ti

Clara Oliveira

a faúlha acesa


Almor Loucao "retirado do site olhares"


a faúlha acesa? lembro-me. ainda frio.
um dia sozinho numa grande sala. a lareira.
muito tempo atrás de um mês antigo.
as labaredas altas tocavam o mármore.
uma imagem de rorschard, de fuligem.
o quarto poder da mente conduzia.
tremidas e quentes. madeira de pinheiro.

a faúlha acesa em salto aéreo, sem rede
directa ao tapete de franja descaída.
lembro-me do olhar distraído, plano, ausente
três cavaleiros de arraiolos, duas lanças.

a faúlha abriu a última faísca.
primeiro um ponto, depois um círculo
de bonanza, que expandia: hei Joe!
e os cascos, tambores de orquestra
e partículas que subiam e descendiam.
lembro-me
os joelhos de um instante, sucessivos
pose de angústia, o livro em desespero
a página ferida, um diálogo partido
e o fumo ascendente de um nó de lã.

George Orwel 1984.
lembro-me perfeitamente.

não esqueço a faúlha acesa
nem a réstea de luz de um postigo
is watching you - is watching you -
is watching you -

A bicicleta


fotografia retirada da internet

Lá vai a bicicleta do poeta em direcção
ao símbolo, por um dia de verão
exemplar. De pulmões às costas e bico
no ar, o poeta pernalta dá à pata
nos pedais. Uma grande memória, os sinais
dos dias sobrenaturais e a história
secreta da bicicleta. O símbolo é simples.
Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais –
lá vai o poeta em direcção aos seus
sinais. Dá à pata
como os outros animais.

O sol é branco, as flores legítimas, o amor
confuso. A vida é para sempre tenebrosa.
entre as rimas e o suor, aparece e
desaparece uma rosa. No dia de verão,
violenta, a fantasia esquece. Entre
o nascimento e a morte, o movimento da rosa
floresce sabiamente. E a bicicleta ultrapassa
o milagre. O poeta aperta o volante e derrapa
no instante da graça.

De pulmões às costas, a vida é para sempre
tenebrosa. A pata do poeta
mal ousa agora pedalar. No meio do ar
distrai-se a flor perdida. A vida é curta.
Puta de vida subdesenvolvida.
O bico do poeta corre os pontos cardeais.
O sol é branco, o campo plano, a morte
certa. Não há sombra de sinais.
E o poeta dá à pata como os outros animais.

Se a noite cai agora sobre a rosa passada,
e o dia de verão se recolhe
ao seu nada, e a única direcção é a própria noite
achada? De pulmões às costas, a vida
é tenebrosa. Morte é transfiguração,
pela imagem de uma rosa. E o poeta pernalta
de rosa interior dá à pata nos pedais
da confusão do amor.
Pela noite secreta dos caminhos iguais,
o poeta dá à pata como os outros animais.

Se o sul é para trás e o norte é para o lado,
é para sempre a morte.
Agarrado ao volante e pulmões às costas
como um pneu furado,
o poeta pedala o coração transfigurado.
Na memória mais antiga a direcção da morte
é a mesma do amor. E o poeta,
afinal mais mortal do que os outros animais,
dá à pata nos pedais para um verão interior.

Herberto Helder

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

porque negas?


Salvador Dali


procurar a consistência na paisagem informe e negra
não traz equilíbrio no vértice da pirâmide.

porque negas o instante, a substância
o lugar ocupado do rio que desce consciente
pela encosta que a nascente desconhece?
porque negas a adição de transcendência
a cor branca, a cor verde, a cor laranja
uma a uma, e todas em uma
como genética de nova nuvem, via láctea, nebulosa?
porque negas o sonho e o tempo
a taça néctar de uma próxima época
inscrita no raio luminoso, no oceano de luz
sem a discrepância real, sem onírico?
porque negas a imprudência do trovão
como prédio alto ou deserto de silêncio
e não só e apenas como lugar indeciso
no compromisso?
porque negas a impressão digital
no limiar do inseparável
na pele porosa da distância?
porque negas?
porque negas o reencontro de uma seda intecida?
porque negas o fio frágil ?
porque negas a alma?
porque negas o sentimento?
porque negas?

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Estado Crítico em Ípsilon - Poema - Sylvia Beirute
























ESTADO CRÍTICO EM ÍPSILON


o y. que diferença
faz o y no meu genoma. o meu
genoma outro: que não explica
a natureza intransmutável do acto de
dominar quer o hausto do silêncio-significante,
quer um todavia em toda a via, em
autogénese e absorção de objectos
para um futuro cómodo
com menos poemas e tecnologia.
o y. que diferença faz o contorno da
falta do y no meu genoma.
nada saberia dizer.
excepto que é o teu impulso contrário
aquele que interpreta a fresta
da minha violência em paz,
que as circunstâncias que rodeiam a linguagem
são impeditivas de um outro formato.

Sylvia Beirute

inédito

.

Noção

Violeta onde se dedilha, consciência
E onde está tempo, em anestesia
ou no sono sem sonhos?
Tempo, espaço, movimento, energia
que haveria antes, que seja eterno?

Só uma coisa começou, única criação
a vida, connosco precisa-se
qualquer coisa mais
Pensar faz existir? Ou será sentir?
Qual o comunicado que interessa?
Diz-se, tomam conta à vez, será?
No último momento
o que lembra a consciência?

Há milhares de canções
milhares de filmes
milhares de livros
milhares de poemas
e não é o registo
não é isso...

E hoje?
Por enquanto recomponho-me
e festejo

a invisibilidade de deus


Fotografia via deviantart


dizem que em sua boca se realiza a flor

outros afirmam:

a sua invisibilidade é aparente

mas nunca toquei deus nesta escama de peixe

onde podemos compreender todos os oceanos

nunca tive a visão de sua bondosa mão



o certo

é que por vezes morremos magros até ao osso

sem amparo e sem deus

apenas um rosto muito belo surge etéreo

na vasta insónia que nos isolou do mundo

e sorri

dizendo que nos amou algumas vezes

mas não é o rosto de deus

nem o teu nem aquele outro

que durante anos permaneceu ausente

e o tempo revelou não ser o meu



Al-Berto "O Medo"

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Uma pequenina luz


manuscrito de Jorge de Sena


Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una picolla... em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indeflectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha

Jorge de Sena "Fidelidade" 1958

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Estudo para um retrato da electrocussão




Liga-se o tempo à tomada
e logo se projecta luz
sobre todos os acontecimentos.

Ninguém quer reprovar a Cronometria
Descritiva, fazer exame a Eternidade II,
ou ir à oral de Ciências da Condição
e ser expulso da única escola de ser
por motivos poucos nítidos,
entre a insurreição, ainda que terna,
e a inconsequência terminal.

Ninguém quer aparecer nos jornais
famoso por ter falecido da forma mais vulgar
de que há memória e registo,
ainda que saiba previamente dos pactos de união
entre a sua morte e a posteridade relativa
da sua morte feita notícia
e seja partidário do sofisticado sistema político
praticado por aqueles para quem a inexistência
passou a ser um modo de vida,
tentando inclusive ascender a lugares de topo
na empresa plena da dissolução.

Ninguém mesmo em vão denuncia
o prejuízo deste corpo profético,
e o seu porte atlético alterado
por gerações e gerações
de telómeros obscuros
e histórias de amor
e deficiências profundas
expostos como estamos às máscaras
de oxigénio
e ao cinema apócrifo
da sedação.

Afinal, é sempre a mesma gota que cai
uma a uma iniludível do céu,
e que cai sobre a tomada do tempo
e que veste de rosas uma electrocussão.