sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Cianuro




Dempsey, o grande Dempsey Denial, agarrou no último número da revista “Cianuro” e sentou-se com um copo de champanhe numa cadeira que ardia debaixo do caramanchão. A tarde escoava por um orifício secreto, o vento dedilhava nas cartilagens do silêncio uma música pálida, quase inaudível, que o sol ao morrer despenteava no incerto, e Dempsey estava confortável dentro do seu 14755º dia de vida. “Cianuro”, a revista de arte escabrosa e literatura acidental que Dempsey folheava, trazia agora um suplemento dedicado à paisagística sentimental, com ilustrações de um tal Phoekus Phantash (um pouco mórbidas e pouco nítidas) e palavras de Rome Jus Van-Van, pseudónimo literário que Dempsey um dia atribuiu à imagem que sempre fez de si mesmo.
À medida que o álcool, o gás e o milagre dourado do champanhe congestionava o cérebro de Dempsey, naquele final de tarde imperial e dorido, à medida que relia e molhava os olhos nas palavras selvagens que ele – sob a autoridade de Rome Jus Van-Van – assinara diabolicamente ao lado dos desenhos desfigurados de Phoekus Phantash, um sorriso carnívoro foi-lhe nascendo primeiro a partir das comissuras dos lábios, alastrando-se depois a toda a península facial, desenhando pequenos rios de sangue à superfície.
É que Dempsey sabia que, para além do insondável Phoekus Phantash, todos os outros colaboradores da “Cianuro”, Manuel Feist, Carlos Columna, Raquel Realce, Alfred Prufock, Roberta Cajal, Evangelio Arte-Enrique, eram criações suas. Assim como o director, Douglas Datsun Jr., a amante do director, Fabrizzia Flame, o neto mais novo do porteiro da redacção da “Cianuro”, Joyce Emmanuel, até Nídia Witt, a mulher da limpeza a quem todos os dias Dempsey dava os bons dias, também ela era Leonor Nieves na vida real, artista de rua muito íngreme, VIH positivo, musa das ovulações imperfeitas.
E depois de pensar nisto, e já a bordo da grande fadiga do mundo, Dempsey passou pelo sono e sonhou que acenava aos seus leitores com desprezo.

Na saleta de Amy Lowell


Coco Chanel retirada da internet

A voz estende
a gravura japonesa.
O vento repousa. A campainha dorme.
Desfaz-se o oiro
da coluna invisível
do livro onde Keats esqueceu os verbos.
Luz espraiada,
o suspiro ascende.
Demora a curta fantasia
dos cavalos de seda.

A glicínia nasce
do ventre do poema.
Uma cadência morre. Um amor desagua.
Atenua-se a vertigem
do azul crepitante
da crónica onde o príncipe galga as grandes lages.
Sono ardente,
a mão oscila.
Acena a branca viagem
da bússolas da tarde.

em "Tiago Veiga Uma biografia" de Mário Cláudio