quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Atrasada mental


16 e 48 - já não apanho o comboio
45 segundos, 46 passos de passada larga ou um desatar a correr depois do café na subida
e chegava

18 e 33 - o comboio descarrilou
45 segundos, 46 passos de passada larga ou um desatar a correr depois do café na subida
e partia


Fui até ao café antes da subida beber um chá
Pedi verde
Serviu preto
E eu fiquei a pensar num título para um poema

a três tempos

1.
o tempo não existe. é um engano. uma mentira. uma necessidade
compulsiva de controlar o incontrolável. uma convenção
que se pretende universal mas não absoluta.
a sua pseudo existência acompanha a intemporalidade do espírito
humano.
o tempo, serve para eu saber quem sou, de onde venho e o que quero
ser no futuro próximo e longínquo. serve para encadear
tudo o que existe no plano físico, de uma forma metafisicamente
difícil de compreender.


o Alberto disse-me uma ocasião que o tempo -
como coisa quantificável e científica - serve
para que os acontecimentos não aconteçam todos de uma só vez.
eu nunca duvidei do que me diz o Alberto mas às vezes,
de longe a longe, quer-me parecer que o tempo -
como conceito abstracto e iniludível da vida -
serve para atrapalhar cada um dos pequenos segmentos
quânticos em que é possível espartilhar a existência.
a minha ou qualquer outra.
epidemicamente.


2.
e eu, pequena criatura, menos que as areias do pó que pousa
ao de leve nas nuvens do pensamento de Cronos,
danço desassossegado com um enigma que ele inventou.
sei-me incapaz de lhe fugir,
ignorar as regras ou pisar as fronteiras;
e sei-me sempre sem ele,
sem equilíbrio e sem controlo,
a correr atrás da minha própria rotina –
atrasada e descompassadamente -
desesperado de a apanhar, tão alheia de mim que agora é.


tamanha auto consciência seria de louvar, não fora a enormidade
de tudo o que não sei e a inutilidade do pouco que vou intuindo.
pergunto-me se com Alberto terá sido assim.
claro, no campo da problematização teórica e científica, ninguém
foi mais longe. estou até convencido que se houve alguém perto
de dar um estalo na testa altiva e emproada de Cronos,
esse alguém foi o Alberto. digo no correr normal dos dias.
no dobrar das peúgas e no ser-se cidadão
e no tentar não envergonhar os pais. pergunto-me se
ao Alberto também faltava tempo.
quero dizer: se lhe faltava, como a mim.


o facto é que não tenho tempo.
tenho-o
porque o sinto em mim a embolorecer os ossos
e a alegria. a dobrar rugas nas expectativas.
a esboroar espaços vazios onde vem morar o vento
dos outonos que vão passando.


tenho-o
porque o reconheço quando estamos só os dois. sem mais ninguém.
então, descubro que me falta iniciativa. que entretanto
me desabitou toda a família da vontade como um inquilino descontente
que se mudasse para onde o sol seja mais quente e as pessoas
sorriam mais pela manhã. e deixo-o fugir outra e outra vez,
existo, simplesmente, e ele fica, durante um bocado a fazer-me
festas na cabeça e a encanecer-me os cabelos.
figurativamente.


depois desaparece subsumido entre o aprumo das
lombadas e a linearidade dos festos e dos mil e muitos
gestos que se gastam todos os dias.
em coisa nenhuma.
desgovernadamente.


3.
estou velho, Alberto. o que não compreendi ou aprendi
ainda, já não é meu para aprender ou atingir. se outrora
me foi cara a ideia de cada acontecimento
acontecer na sua vez, estou agora tão desimportado
que já nem perco tempo a pensar em tal coisa.


estou cansado, Alberto. talvez encontre ainda
vontade para não querer escoar
o tempo que me resta a reflectir contigo – que já não existes
cronologicamente - sobre as incongruências dele – que afinal
é eterno. tu baralhas-me. e o que me baralha é infalível
que acabe por me irritar, e eu estou velho demais para me irritar
com a competência e presença de espírito que me merece a memória
que tenho de mim próprio.


suponho que também a memória - como o tempo - 
me vá mentindo aos poucos todos os dias.
que aquilo que me lembro de ter vivido, tão real
como eu estar aqui, tenha afinal uma existência
tão irreal como aquela que um dia atribuí
ao próprio tempo.


talvez nada do que me lembro tenha de facto acontecido. talvez
tudo não passe de amontoados de imagens descoloridas
que eu próprio inventei, juntando - sem atenção às quantidades –
os meus incumprimentos e o passar tempo.


tanto faz, Alberto. porque o que o tempo me deixou
é tudo o que me resta.
agora, uma realidade relativa.
absolutamente.
raquel patriarca
vinteeoito.outubro.doismiledez

nós aqui

.
entre nós, tanto tempo.
vidas oferecidas num verso
de papel velho e um abraço.
entre nós, tanto tempo. nenhum espaço.

raquel patriarca
vinteeoito.outubro.doismiledez
.

o fumo embarca em espiral e sobe pelo quarto


( fotografia retirada da internet autor desconhecido)


o fumo embarca em espiral e sobe pelo quarto
incondicional e vago no distúrbio de um silêncio.
um relógio marca o tempo
no pêndulo suspenso de uma casa suíça
e a ausência de cuco. som nenhum –

o fumo choca no paradigma e esvai-se como uma estação aliviada
depois de uma partida, aguardando
o preenchimento de um banco onde algum, alguma
pouse uma mochila, abra um sumo e reduza uma sande
a um ponto final, um dedo esticado no resto da maionese.

o fumo sobe e desaparece. cai a cinza.
e uma outra vez arrefece enquanto sobe e ganha notoriedade.
depois desaparece
até que o filtro, o pouco cigarro, consumido , esmagado .

permanece uma grande dor de cabeça
e um remédio de pastilha que coloca um véu branco
um dossel semi-opaco como cortina de um teatro

do outro lado

sobressaem algumas manchas de morango
uma casca de banana, um aroma de canela
e passos breves, pontuados de intervalos
que reflectem a sombra -

os trechos das peças de Shakespeare são longos
exigem a energia da água, rios indomáveis
o dramático, a exigência de uma cena, um quadro –

pelas paredes do quarto
os lábios subitamente secos, o silêncio
as cinzas e um estalido de fósforo sobre a lixa
um relâmpago que dispara, a chama
que de novo acende –

o relógio parado, o cuco doente –