domingo, 13 de novembro de 2011

faz greve à rua, não apertes os sapatos



Almada Negreiros

"A vocação de Almada foi a de dizer-se, de afirmar-se, de passar a vida a ser-se Almada" Eduardo Lourenço



pressas de partida e pressas de chegada, a regular situação da cidade.
não há o encontro de faces na semana que parte.
os comboios abstraem-se das pessoas e olham os rails, parados, secos, calados.
chuvas caiem –

um homem de olhar estranho desce a rua inclinada.
uma voz fala “ faz greve à rua, fala com a lua, perde-te nos astros “.
os olhos não olham a direito, dão curvas improváveis,
dobram esquinas de mármore e vêem estátuas, lisas, físicas, claras
numa prosa tão correcta que não roça o verso nem desenlaça a alma;
uma questão de luz, túnel e obscuridade, talvez um facto
justificado pelas cores substantivas de um quadro imaginário –

não há a solidez de um corpo junto da voz que fala, auricular.
supõe-se de alguém porque o vento sopra sem palavras.
mas eis que repete: “faz greve, faz greve à rua não apertes os sapatos,
tropeça, cai, não permaneças inclinado”
- uma irrealidade de que Eco falava.
mas será verdade?

a voz repete grave “faz greve, faz greve ao quadrado e aos quadrados,
faz greve à ferrugem nos cronómetros incendiados,
faz greve à ilha, à caverna ou à nau fora d’época,
faz greve simplesmente, abstracto, e cria depois um soluço de paz
encostado no habitual semáforo.
depois corre, corre, até que sopre um vento muito forte
mais quente, e que se acenda , que fumegue, que seja fogueira,

e com esses pés tortos de teatro
procura a simetria próxima, a sede do corpo, a seda e a face –

corre, corre, não pares
nas ruínas e nos ruídos da cidade, corre,
corre sempre
enrola o silêncio na velocidade dos passos –“

o homem não corre e faz lembrar Almada;
ossos largos, faróis redondos, um boné sobre o rosto,
e há uma voz que diz enquanto passam os carros:
“é um homem estranho e inclinado
por vezes tem as mãos perdidas na arte, no fumo dos quadros,
no cair do amarelo. por vezes flutua entre a totalidade e o intermédio,
entre as filosofias de Pessoa e o ultrapassar do vermelho.
por vezes cala-se, por vezes chama, por vezes grita
e por vezes despe-se, insignificante,
na insegurança dos lábios -

José Ferreira 11.11.2011