quinta-feira, 24 de junho de 2010

a praia colorida de Matisse


Matisse " A alegria de viver"


portador da deficiência de te ver entrar no mar
de costas únicas e pele lisa
precedentes de uma sombra esguia
e de alguns ciscos de areia
campainhas de chuva, dura, sobre lentes escuras.

os cabelos de início flutuaram de mil luas, brancas, brancas luas
por dentro, por dentro das espumas.

insatisfeito, de mãos húmidas sabendo a sal
vi , vi o rosto que emergia, que emergia.

a deficiência tornou-se a incurável doença
de passear os dedos delineando a forma, sem tocar
a transparência imersa, estendida, azul espessa
a nadar no céu de água, em desenhos flor de lis;
tecidos tão pequenos que escondiam.

há horas que são dias e aguardar foi paciência
infinita, de um destino de não ser vento, durante o dia
nem ser estrela de noite a desviar uma cortina.

a doença aumentou febril no feitiço
de olhos que apertaram o juízo
imóvel e disponível para todos os sentidos
no crescer de um horizonte
de sabor e forma de morango.

o impossível som de um aeroplano publicita
a mensagem que se escreve nos ouvidos;
palavras, palavras, alguns sorrisos.

depressa se despe o dia e confessa sem receio
a assunção do crepúsculo, de ser belo o escuro
o nascimento de uma via imperativa.

nos lábios da despedida abrem-se pétalas carnívoras
dentes límpidos e sonhos , muitos sonhos programados
de pecados concebidos

e lembra-se o quadro, o quadro de Matisse
a praia colorida -

Navio de espelhos


Mário Cesariny "Naniora" 1960


O navio de espelhos
não navega, cavalga

Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele

Os armadores não amam
a sua rota clara

(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga

O seu porão traz nada
nada leva à partida

Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta

E no mastro espelhado
uma espécie de porta

Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto

A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto

Quando um se revolta
há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)

E quando um deles ála
o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo

Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo
até ao fim do mundo