terça-feira, 27 de março de 2012

Dúvida

Era tarde para não nascer agora que chorava
Berço pronto lácteo e doce, colo quente em descoberta
Vida feita de invisível, cruo encontro de acasos
Espera eterna ou morte certa, dois bocados de infinito
A unir a escuridão, fina luz, ténue e fina
Lua branca, um não ao escuro, régua estranha a do futuro
Num jogo com o presente, a brincar com a razão
Só será depois de ser, ao fazer cria ilusão
Do tempo ser uma linha, costurada a precisão
Segundos certos de nada, tão perdidos no passado
Rodam num ciclo em relógio de comboio disfarçado
Onde era o fim da linha , vê-se a nascer enfim
Nova vida, novo grito, novo choro e novo fim.
A vida enrola-se em si, um novelo tão perfeito
Que seria em vão tentar estendê-lo todo a direito.
As perguntas não são vãs, mas são vãs as incertezas
São tão certas as manhãs e os poentes no mar.
São tão certos os sabores que até sabem pensar.
Nascimento ou infinito, maresia ou escuridão
Seja silêncio ou grito, plenitude ou confusão
Estou tão certa da certeza que já só tenho Razão.

Adiamento - um poema de Álvaro de Campos


fotografia por Christine Schneider

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...

Fernando Pessoa/Álvaro de Campos