terça-feira, 31 de julho de 2012

a noite que se aproxima




que os astros se iluminem e iluminem esta noite
da forma mais simples, a luz branca
uma luz no cálice azul
um cálice sem tempo, um cálice de sempre
de pés na terra e de cristais feitos de estrelas –

 josé ferreira 31 julho 2012

segunda-feira, 30 de julho de 2012


trago-o na vibração inquieta da matéria sem vontade
finjo não ouvir o trabalhar 
de operários de amor
o badalar crescente 
navio de espelhos que pulsa
em ombros lançado 

devo ignorar a luz que abandona os sinos ao entardecer 
imperturbáveis, e a mim não,
vem assistir a este pulsar
vaidosa ao espelho 
entre sinapse e quasar

devo ignorar noites de cidades gravadas nos pulsos 
ser navio que cavalga
e ter milhares de portos para descarregar o mundo
cantar mais alto que a matéria sem vontade
soprar devagar onde escureça
e deixar que a luz oscile em cada olhar cruzado
sem o querer descruzar
devo ser feliz à desgarrada 
operário de um só pulsar
e os sinos nunca denunciar

domingo, 29 de julho de 2012

Ah, abram-me outra realidade - um poema de Álvaro de Campos


                                         William Blake


Ah, abram-me outra realidade!
Quero ter, como Blake, a contiguidade dos anjos
E ter visões por almoço.
Quero encontrar as fadas na rua!
Quero desimaginar-me deste mundo feito com garras,
Desta civilização feita com pregos.
Quero viver, como uma bandeira à brisa,
Símbolo de qualquer coisa no alto de uma coisa qualquer!

Depois encerrem-me onde queiram.
Meu coração verdadeiro continuará velando
Pano brasonado a esfinges,
No alto do mastro das visões
Aos quatro ventos do Mistério.
O Norte — o que todos querem
O Sul — o que todos desejam
O Este — de onde tudo vem
O Oeste — aonde tudo finda
—Os quatro ventos do místico ar da civilização
—Os quatro modos de não ter razão, e de entender o mundo

Álvaro de Campos In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Teresa Rita Lopes, 2002

sábado, 28 de julho de 2012

Existe

                                    


    Não serão os mesmos seixos que a água deixa ver, nem os mesmos fentos que amparam a água a correr devagar, como toda a que passou antes sob a ponte.
    Mas ainda são as mesmas pedras, talhadas e carregadas para se sobrepor à armação de madeira que as sustentam. As pedras, elas no esqueleto de madeira que fez o avô carpinteiro do meu avô que foi lavrador, também não serão eternas.
    O Meu avô compunha também as rodas dos carros de bois, menos vezes quando fui para a primária da aldeia, mas já muito antes de eu ir para a escola. Também vendia gado de puxar carros de bois na feira. O caminho era curto, meia hora a pé com companhia. Ele nunca vendeu os bois pelo preço justo, coisas... hoje vejo bem melhor isso.
    Por vezes falam-me da ingenuidade do campo, falam-me as pessoas da cidade. Ou como agora se perdeu... E eu, eu acho graça, e imagino como a feira deveria ser um jogo estranho para o Fanfa, o meu avô. Era apenas um homem, um homem que não jogava.
    Diz-se ainda hoje que sob a ponte muita água há-de passar. Esta, neste preciso momento, está a passar.
    Já agradeci a quem me ouviu. E se o meu avô estivesse vivo, teria também dito, deve ser proibido desrespeitar.
    Na aldeia, à noite gosto de ouvir o som da água, e é perfeito quando o céu está limpo, e deixa ver o estrelar, como a água que de dia deixa ver os seixos. E a ponte, não se deixa ouvir, nem ver, é silêncio. De todos os silêncios, o silêncio perfeito

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Bem

«Aqueles de vós que correm atrás do poder
despótico (...) eu exorto a mudarem de direcção e a cedo fugir
do que é considerado “felicidade” [eudaimonisma] por homens de ânsias
insaciáveis e mentes vazias (…)»

Platão

quarta-feira, 25 de julho de 2012

luz




                                                  "Há duas maneiras de espalhar a luz: ser a vela 
                                                                            ou o espelho que a reflecte"      
                                                                                                                        Edith Warton
que a epígrafe ilumine a razão e a loucura
como frutos de uma mesma essência
e de raízes
como a árvore milenar que perdura
uma árvore que transporta as mil e uma histórias
de dias e de noites
de rotações físicas em frente da iluminura das estrelas
e da lua
e dos poentes
e das auroras divinas
num sonho infinito, na soldadura das almas
no sangue que ferve e se agita
no paraíso que se atinge e sublima
e atinge, magnífico
e é lábio único e corpo e tudo
e pode ser amor
porque o amor não se define –

josé ferreira 25 julho 2012



segunda-feira, 23 de julho de 2012

Cruzam os dedos - um poema de Egito Gonçalves






Cruzam os dedos 
o dia e a noite, inseparáveis. 
Traçam 
um círculo: a linha da vida 
que nos inscreve. Olham 
como eu sussurro ao teu ouvido 
palavras de amor, macia 
sumaúma com que encho 
a almofada onde 
repousas a cabeça. Digo: 
“Quanto mais te amo, mais 
te amo.” A tua cabeça 
comprime as palavras, sob 
o peso elas cantam. Afinal 
o amor tem um rosto perene, 
uma espessura, paredes 
de uma casa litoral, voz 
que nos caminhos do corpo 
se insinua 
descendo pela chuva, os dias 
que a vida possa ter 
sob um telhado azul, braços 
para embalar, para dormir. 
Os lábios movem-se nos lábios. 
As aves recolheram 
a semente das lágrimas. Inseparáveis, 
a noite e o dia cruzam 
os dedos. Olham. Traçam 
o círculo, desenham 
a linha de vida do amor. Vamos 
percorrê-la. Seguir-lhe o rumo, 
o subtil rumor. 
Construir o percurso 
até ao osso do tempo. 


Egito Gonçalves In A FERIDA AMÁVEL , Campo das Letras, 2000


domingo, 22 de julho de 2012

a luz do lado esquerdo




a ardência do lado esquerdo envolve  o humano
a mulher bela de trança, um homem  de cabelo cortado
e há lugares que de tanto imaginados se tornam cheios
como uma nascente que transborda numa poça, e avança
e desce a rocha, e alarga o leito, e abre as veias
para a quilha dos barcos, para os seus remos ligeiros
 para escutar os pássaros, para rodear as margens estreitas
entre escadas de pinheiros, castanheiros, salgueiros e plátanos 
reflectidos, duplicados, triplicados, em dois planos –

vejo, vejo, através da luz do lado esquerdo
e arde tanto –

josé ferreira 22 Julho 2012


sábado, 21 de julho de 2012

sexta-feira, 20 de julho de 2012

em Paris a manhã é branca




em Paris a manhã é branca na madrugada de um dia
depois abre o sol –
da janela do quarto dependuras os braços e procuras gatos nos telhados.
os telhados são cinzentos, e falas nas saudades das telhas;
as telhas laranja, de alma portuguesa, telhas que lembram aldeias –

em Paris a manhã é branca na madrugada dos sentidos
depois abre o sol –
de olhos nos teus pés descalços, pousados no soalho
reconstituo as curvas do corpo através da sombra;
anos e anos… quantos?... uma matemática longa –

os quartos de hotéis em todas as cidades nunca poderão ser uma tenda
nunca poderão engolir o coração pela boca, várias vezes 
nunca poderão ouvir os grilos nem os pirilampos
nunca poderão voar como as borboletas
nunca poderão escutar a chuva sequencial, em batimentos
nunca poderão assistir, na transparência da lua, ao juntar das gotas –

os quartos de hotéis são de muita gente, de muitos dias e algumas semanas
mas a tenda tem uma alma única, autêntica, raízes
prende-se à terra –

na madrugada branca
Paris tem a assinatura dos pintores pelos lugares da evidência
e a possibilidade de unir os dedos pelo brilho do Sena .
é preciso sair à rua, encontrar o refúgio das sombras
nas escadas de Neptuno.
é preciso lembrar a tenda.

anos e anos…quantos ? … uma matemática longa –

 josé ferreira 20 julho 2012

quinta-feira, 19 de julho de 2012

leveza e ser


                                                  Angus Basil Brown

a tua pele fora da minha pele é uma armadura suave
um contorno de plumas de pássaros imperiais
que me faz subir, acima, acima, acima –

a insustentável leveza existe.
calo-me sem o silêncio no grito interior da descoberta
onde barcos navegam em excessos cardíacos
o contágio, por todas as partes do corpo;
os braços, o rosto, o lugar dos olhos, pérolas que brilham –

como se neste preciso momento, frente a frente
não houvesse distância nem sombras
apenas ombros  -

 josé ferreira 18 Julho 2012

terça-feira, 17 de julho de 2012

fala-me dos arcos do céu



fala-me dos arcos de céu
onde infinitos pequenos astros
se rebolam sobre a pureza
do teu rosto. fala-me dos teus olhos,
da paisagem que inventam no luar de azul
onde se adivinham os dias e se pressente
o ligeiro vibrar do novo amor em semente.

escutarei, e das tuas palavras vou tirar
outras que não são para dizer, que trazem
nos lábios o mais íntimo segredo disso que é real,
disso que ignora as paredes do olhar e em tudo
desenha o tão doce horizonte que somos em nós.

mudo ficarei suspenso da tua voz sem saber
ao certo se é verdade ou mentira, se se pode
de facto criar um rosto que nos mostre por completo,
como a pele mostra a mão, a água o beijo,
sem saber se este sangue e esperança
será suficiente para te encontrar
no rebolar dos infinitos pequenos astros.

 Vasco Gato in «Um Mover de Mão», pág.25 Lisboa: Assírio & Alvim, 2000

sábado, 14 de julho de 2012

Kiss


                                  Gustav Klimt

Nunca escrevi  sobre aquele beijo que mudou o mundo
Não que a rotação fosse interrompida
Ou o globo girasse de forma inadvertida, contrariamente ou invertido
Para espanto do Sol e das constelações quietas do universo.
Refiro-me à cor preciosa e à forma de segurar o rosto
Refiro-me a  uma vida longa para além do humano
E para quem o artista criou o nome : Kiss

josé ferreira 14 julho 2012

sexta-feira, 13 de julho de 2012

queria muito falar-te da evidência



queria muito falar-te da evidência
de se viver pela luz dos dias até à imensidão da noite
porque se de um lado se encontra a finitude das horas acordadas
de um outro nascem sequências complexas,  inexplicadas
e sob velaturas, descansa o infinito, o segredo e o desconhecido –

bem sei, e é repetido todos os dias
na teoria do símbolo químico, tudo se explica. um exemplo:
o rodar dos olhos dentro das pálpebras como a rememoração de realidades
uma conversa inacabada ou a nova roupagem de um mero acaso de cidade  –

mas se assim for não o digas

deixa-me  proteger a sombra dos sonhos
como o verde alto das árvores na tarde mais quente
deixa-me proteger a sombra dos sonhos
como as vinhas estendidas em arco para que se suspendam os bagos;
esse  uso de casas antigas pelos caminhos de Camilo, pelas envolvências do Minho –

se assim for não o digas

engana-me com todos os espelhos
 fecha-me os silogismos de todas as ciências
para que desperte
para que adormeça –

queria muito falar-te da evidência:
o olhar vermelho  –

josé ferreira 13 julho 2012

Escrevia à mão a cidade - um poema de Filipa Leal


                                 Jaime Isidoro


Habitava da cidade
os lugares mais pequenos.

Limpava-lhe o pó,
pintava-lhe os cabelos,
escondia-lhe as rugas
(chegava mesmo a deitar-se
ou a deitar areia sobre as ruas
abertas).

Às vezes chorava-lhe no centro
a ausência,
ou matava-lhe os homens
que corrompiam os homens.
Por fim,
esquecia-lhe as feridas.

Escrevia à mão a cidade
e a cidade escrevia-se
sobretudo
no cinzento
no esquecimento.

Eram tão simples as palavras
da cidade,
mas complexos os amigos
que dela habitavam
os lugares mais pequenos.



Filipa Leal

Talvez os Lírios Compreendam
Cadernos do Campo Alegre, 2004  lido aqui

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Uma laranja para Alberto Caeiro - um poema de Natália Correia




Venho simplesmente dizer
que uma laranja é uma laranja
e comove saber que não é ave

se o fosse não seriam ambas
uma só coisa volátil e doce
de que a ave é o impulso de partir
e a laranja o instinto de ficar.

Não sei de nada mais eterno
do que haver sempre uma só coisa
e ela ser muitas e diferentes
e cada coisa ternamente ocupar
só o espaço que pode rodeada
pelo espaço que a pode rodear.

Sei que depois de laranja
a laranja poderá ser até
mesmo laranja se necessária
mas cada vez que o for
sê-lo-á rigorosamente
como se de laranja fosse
a exacta fome inadiável.

De ser laranja gomo a gomo
o íntimo pomo como se enternece
e não cabe em si de amor
embriagada de saber
que a sua morte nos será doce.

 
 in «O Vinho e a Lira»O Diário de Cynthia
Poesia Completa

terça-feira, 10 de julho de 2012

desenho




tenho tentado todos os desenhos, risco após risco
após o lugar do pensamento.
a proximidade é possível, reflicto , risco após risco
e risco
e completo a forma, um adereço, a conhecida cor do cabelo
a trança, a luminosidade errante pelos campos e pela lira
que lança músicas e arredonda o risco, risco após risco
e risco
um desenho
que apenas se aproxima –

josé ferreira 10 julho 2012

segunda-feira, 9 de julho de 2012

"Il n'a pas à se plaindre celui qui attend un sentiment plus ardent et plus généreux.
Il n'a pas à se plaindre celui qui attend le désir d'un peu plus de bonheur, d'un peu plus de beauté, d'un peu plus de justice."

Maurice Maeterlinck, La sagesse et la destinée.

domingo, 8 de julho de 2012

o vento de passagem nos cabelos




o vento invade os cabelos longos das mulheres
e coloca riscos finos na frente dos olhos
levanta as mãos e faz descer as pálpebras
para que subam de novo na maior abertura do rosto;
o oval luminoso e não a silhueta incompleta.
todas as sombras  se desiludem
iluminas-te –

fico por um minuto com a alma presa
na imagem precisa, na clarividência, na lisura
do teu movimento –

o vento é passageiro de um vento nómada
de um vento imenso que nos leva sempre
ao lugar do intangível nas noites viajantes
junto das areias
junto das luas, junto das águas mais profundas
até ao sonho emaranhado de um caminho
o interior da concha, o lugar lúcido –

josé ferreira 8 julho 2012

sábado, 7 de julho de 2012

nirvana




abro-me  como as corolas
com o perfume imediato das manhãs
sempre na direcção da luz.
surge primeiro o sol com um pensamento nas mãos
nas palmas abertas, nos dedos despertos
nos olhos lampião na cor do ébano.
as estrelas cintilantes dão lugar ao esquecimento da noite
recuperam a memória do sonho, a sua lucidez
e anoto a existência de cristais transparentes em julho
orvalhos decrescentes até à absorção das gotas
até á limpidez das folhas, até ao imenso poder do silêncio
que se instala  neste acordar na natureza, no profundo campo
e separa o espaço,  desde a superfície da terra, pelos troncos enrugados
até ao  verde das árvores –

essa é também  a condição humana
nascer, crescer, permanecer, e mudar de roupa conforme as rotações
as estações, escutar a voz dos pássaros e a paz sem som
renascer, traçar linhas e rumos em direcção ao azul
a direito ou obliquamente, a noventa graus, caminhando nos dois sentidos
a norte e a sul, a este e a oeste, na clareza do ar e no manto das raízes –

somos tão complexos como a primeira célula, como a nebulosa
como a atmosfera que esconde moléculas, somos e não somos
como a inversão da direcção dos ventos, como um desenho semipintado
um ser e ainda não ser, em movimento, na dinâmica dos tecidos, orgânicos
de alimentos e sinergias, faíscas
um ser em construção, de incompletudes, em formação, de amálgama
no almofariz da química humana, nós e os outros –

mas somos nós, somos únicos
tu,  com os teus olhos âncora, com o cimo das estrelas e os dedos
as polpas de seda, a deslizarem como  barcos na imensidão das costas
 rodeando os obstáculos, das vértebras até ao cerebelo
como se fossem rochas salientes entre as margens de um rio –

eu,  como uma criança, pedindo-te  que sejas a mulher, a essência
que ponhas a mão na minha cabeça
e entregando-te  a concha do corpo, o lume descomposto do rosto
num sorriso luminoso, explosivo, deixando fluir a cor dos afectos
em cada gesto
enquanto te seguro o rosto, enquanto me apoio no teu ombro
e enquanto nos tornamos lisos, esmagando toda a densidade do ar
todas as montanhas, sem precipícios, unidos, como um nirvana -

josé ferreira 7 julho 2012



Leda e o Cisne

Súbito golpe: as grandes asas a bater
Sobre a virgem que oscila, a coxa acariciada
Por negros pés, a nuca, um bico a vem reter;
O peito inane sobre o peito, ei-la apresada.

Dedos incertos de terror, como empurrar
Das coxas bambas o emplumado resplendor?
Pode o corpo, sob esse impulso de brancor,
O coração estranho não sentir pulsar?

Um tremor nos quadris engendra incontinenti
A muralha destruída, o teto, a torre a arder
E Agamêmnon, o morto.

Capturada assim,
E pelo bruto sangue do ar sujeita, enfim
Ela assumiu-lhe a ciência junto com o poder,
Antes que a abandonasse o bico indiferente?
 
William Butler Yeats

(trad. de Paulo Vizioli)
 

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Quando se Vive a Substância Intacta -um poema de António Ramos Rosa


                                Almada NegreirosVive-se quando se vive a substância intacta 
em estar a ser sua ardente   harmonia 
que se expande em clara atmosfera 
leve e sem delírio ou talvez delirando 
no vértice da frescura onde a imagem treme 
um pouco na visão intensa e fluida 
E tudo o que se vê é a ondeação 
da transparência até aos confins do planeta 
E há um momento em que o pensamento repousa 
numa sílaba de ouro É a hora leve 
do verão a sua correnteza 
azul Há um paladar nas veias 
e uma lisura de estar nas espáduas do dia 
Que respiração tão alta da brisa fluvial! 
Afluem energias de uma violência suave 
Minúcias musicais sobre um fundo de brancura 
A certeza de estar na fluidez animal 

António Ramos Rosa, in"Poemas Inéditos"lido aqu
i

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Se tanto me dói que as coisas passem - um poema de Sophia


                            Wily Roni

Se tanto me dói que as coisas passem É porque cada instante em mim foi vivo Na busca de um bem definitivo Em que as coisas de Amor se eternizassem Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 3 de julho de 2012

escrevo-te



escrevo-te de novo com a ponta dos dedos
como se fosse uma dança, como se fosse um sussurro
um segredo urgente, uma música  distendida e exclusiva
 jazz ou blues de um filme antigo, uma fotografia.
 as fotografias reflectem uma história
um pormenor, a iluminação do alfinete;
lembro-me –

lembro-me do teu laço com um nó azul
um chapéu largo de sombra por cima de uma trança
um bikini de malha que não se usa mais
as sabrinas no saco das riscas
os pés cobertos de algas nas espumas brancas
as marcas das gaivotas a tornarem-se humanas
as asas dos barcos a acenarem distantes
e a  mostrarem horizontes. horizontes.
lembro-me –

lembro-me da tua primeira decisão
uma mão de cada lado de uma barba adolescente
uma coragem de olhos com a boca em frente
o primeiro incêndio, sem fogo, e como arde –

Uma vez…
era Setembro e partiam os carros dos bois com cestos entrançados
cachos de uvas mouriscas, moscatel, e simples, de bagos pequenos.
corremos como se fossemos crianças,  com sandálias tortas e jogos na cabeça
partimos muito depressa, o vestido voava, os calções eram rápidos.
naquela época os torrões da terra eram secos, vários tamanhos
uma capa branca e depois castanhos. corremos muito
corremos como se fossemos crianças.
lembro-me.
era Setembro.
seguraste-me a cabeça
as mãos como setas misturaram cabelos
e depois corremos. corremos muito, como se fossemos crianças
e demorámos cinco minutos
entre a rocha das merendas e o muro das pedras soltas.
era Setembro. lembro-me –

de uma vez…
era junho. a cidade era muito antiga. corria a temperatura do solstício
a queimadura do Verão. saboreámos os gelados de limão.
havia uma fonte de desejo em cada esquina. não se chamava Trevi.
muita gente. era junho.
lembro-me.
lembro-me de um cinema, uma camisa branca, a superfície de renda.  
a minha mão era pequena . passou por cima do ombro
desceu como uma cortina, lenta, a esconder uma janela
 como se fosse um barco, movendo-se na direcção do vento.
a minha mão era pequena
com o interior redondo, em concha, no hemisfério sul do tempo
e o coração batia muito de repente.
os olhos olhavam em frente. lembro-me. no cinema.
a mão era pequena, a renda. lembro-me.

escrevo-te com os olhos muito acesos.  com a ponta dos dedos
como se fosse uma dança, um sussurro, um segredo urgente
como se não nos doesse nunca a alma, como se não nos doesse nunca o corpo
e com o sangue a bater, a bater muito, como um mercúrio quente
a bater muito e em todas as paredes –

josé ferreira 2 Julho 2012


segunda-feira, 2 de julho de 2012

low cost



Deve ser verdade que a natureza enche, o vácuo, o zero, o nada, o vazio?!


É que às vezes pensa
Como também precisaria de adormecer

No final desse dia lembrou ter ele dito
Vou por uns dias
Imaginou que no caminho da ponte iria
Ver aquela pouca neve na serra
As poucas nuvens
E também as cores de fim de tarde
(só que ele foi por outro caminho)

Gostaria tanto de descrever por palavras
Ou de outra maneira que fosse
O que via 


Anabela Couto Brasinha
(2011)