domingo, 19 de abril de 2009

The poetess (1940)

MIGRAÇÔES

As transformações por que a alma passa
são análogas às daquela árvore que tenho no quintal. Já a vi despida,
ébria, numa ânsia de líquidos
e nuvens. Depois, vi-a
resplandecente de folhas, pesada,
impondo-me o respeito dos seus frutos - como
se eles não estivessem ali para que eu os colhesse antes que
apodreçam, caídos no chão, ou os pássaros os comam! E
pergunto-me: que relação existe entre
essa árvore nua de Inverno, e a árvore sob o verde manto
do verão? Serão os mesmos ramos os que se estendem na sua despida
fragilidade, como se nada os prendesse no ar, e os que ostentam
a jóia de flores e rebentos, com o seu ar primaveril?

Ao cortá-los, para que não tapem o sol às plantas que têm de
nascer à sua volta, penso nesta comparação
entre a árvore e a alma; e em como, nas coisas da natureza, não se liga
a sentimentos, deitando fora o que é inútil para que o novo possa ter
o seu lugar. Mas uma alma não se
deixa podar, como a árvore. O seu crescimento faz-se sobre si mesma; não crescem
sobre outras flores e frutos, juntando-se nessa mistura que
obriga o homem a decidir, a ter de esquecer partes da sua vida,
mesmo que saiba que a alma guarda tudo, e que um dia tudo voltará
ao de cima.

Nuno Júdice "Cartografia de emoções"