2014.01.30 | Emily Dickinson

O homem e a sua circunstância


Saul Leiter


nem toda a circunstância se faz de lugares comuns
de orientações velozes e do íman das cidades
do metálico e do plástico, da realidade quotidiana.
há faces brancas nas manhãs plácidas do presente e do passado
existem pétalas sem nome pelos passeios molhados
as almas podem habitar possibilidades –

chovem sem mágoa gotas lentas.
os carros passam lançando um nevoeiro húmido
e os pés avançam.
os passos seguem outros passos
como se fizessem parte de um exército de rostos elevados
ritmados, passo a passo: em frente, atrás, ao lado  –

se um homem caminha no meio da cidade
mimesis simplifica a poiesis distingue
e transcende para além da certeza de haver flores doces e amargas
na circunstância que se persegue, pelo espírito e pelo acto
entre a coragem de encontrar e a possibilidade da descoberta.
porque os segredos são poços fundos
como paredes submersas de Atlântida ou estrelas de uma nova galáxia –

o verdadeiro pulsar  do humano não pode ser determinado
esconde-se atrás de uma simbiose de luminosidades.
não és tu nem o outro o mestre dos sentidos
apenas peças de uma dramaturgia invulgar
onde as almas são sempre únicas, sem artérias, sem geografias
habitando a circunstância dos espaços:
como quando o azul se distende
e completa o mar –


José Ferreira 30 janeiro 2014


a noite de winter (soneto improvável)


Saul Leiter


a minha cidade está escura na noite de winter.
caem ainda as folhas dos plátanos, secas e castanhas  pelo vento frio.
forram as artérias do jardim, rodeiam as grandes tílias.
não há nenúfares no lago.  as águas estão geladas, vazias –

na noite de winter não surgem sonhos azuis.
a escuridão preenche as esquinas.
a solidão está escrita na luva que aperta a gola
para que a garganta não esfrie –

não é este o teu modo, a tua sina
- sopram vozes caídas do infinito -
porque és assim em melancolia  e sem ritmo?

passos ecoam invisíveis na incerteza do caminho.
nos lampiões pousam os corvos.
onde andam as cotovias?


José Ferreira 30 Janeiro 2014



Emily querida



“A Manhã é de todos —
A Noite — a alguns dada —
Para os poucos do império —
A luz da Madrugada.”
Emily Dickinson


é uma carta, uma carta poética com asas leves , largas e sem espessura;
o teu sorriso é magnífico.
sabes, a temperatura é elevada e não há sombras no meio-dia
a luz invade  e lembro-me
lembro-me sempre -

era Setembro
a altura em que as flores dão lugar aos frutos
a altura em que os bagos de uvas rolam entre os dedos e dão lugar ao brilho
a altura em que o polegar apaga  a cor cinza e  quando o mosto doce circula  -

era Setembro dizia
os teus olhos refletiam a cor do rio, um Douro intenso rodeado de vinhas
um vale onde Abraão não existia, apenas a paisagem, um azul em cima
e os teus pés descalços envolvidos de dedos mais compridos
numa viagem de peles distintas –



era Setembro dizia
corria uma brisa gazela sobre a dilatação dos poros
e as folhas oscilavam sem ruído
de onde vinha o vento Emily?
declamavas poesia numa possibilidade infinita
e os versos eram aves que subiam -

confesso, Emily, mesmo nas margens estreitas do rio
os meus dedos eram gaivotas e os meus olhos distendiam-se
em  horizontes de mares que não terminam –

por isso, por vezes perdia-me, e a tua poesia era exigente e exigia -

mas os teus pés, sim os teus pés, eram peixes húmidos
numa seda desenhada de escamas sem qualquer lâmina
navegavam sem contradições sem águas encrespadas
sem a violência das espumas e era incrível
sentia nos montes o aroma das maresias -

era Setembro dizia
a tua timidez estava para além da luz do primeiro dia;
 a apresentação: dois lírios –

naquela margem entre as almas de éter bem unido
acendeu-se um rubor cereja quando
uma vez mais e uma vez mais, algumas gotas de rio
caíram sobre os pés brancos, na tua pele intacta e polida
e lembro-me, lembro-me exactamente
palavra a palavra
as palavras que dizias –


José Ferreira 30 janeiro 2014



Emily

Nas páginas brancas
 - A paixão
E fora a solidão

Nas páginas brancas
 - Sopra o vento em fúria e a possessão
E fora a solidão

Do outro lado
Depois do mar: um poema
Nas páginas brancas
 - A possibilidade -
E fora a solidão


Elza Gouveia Durão (Pi)
Porto, 30 de Janeiro de 2014


Para OMPA

De vontade pura leva nascença
humildemente se cura criação assim
tentámo-nos em fada dentro e fora
dada infância presente letra a letra

Da liberdade donde tudo parte
imensos ou pequenos versos dei-tos
às vezes, as batalhas como fonte
outras, de harmonias cenários lentos

Aí, os sabores dos mares e das serras
erguidas aldeias e cidades ermas
em passados ou presentes, vividas

São heras do coração sempre em mente
ente querido o partilhado encontro
ligados, chaves-de-ouro que aqui se têm!

Anabela Brasinha


"sapiãos"

Onde Calha

Emily dou-te a minha frase,
A rosa não deixaria de ter espinhos, nem perfume, nem pétalas brancas!
Dou-ta por gratidão, só, a quem sabe guardar de enlevo

Ó aurora mesmo assim leda, mesmo que ali quase continuamente
quedo lesta para te saber escutar, e nunca me fintar em qualquer um

Negalho de alguns, atas, és, te acho, e assim senti
agora dão, te ririas da feeria
tu mulher, tão sábia Emily!
Anabela Brasinha 



III ou Soneto a Ferros

Quero muito ser alegre e feliz.
Mas como, se não pára de chover,
Nas notícias que já nem posso ver
Toda_a estupidez que já ninguém diz

E entre_as tarefas que_eu hoje fiz
Nada encontro que possa merecer
O papel que vou estragando_a escrever
Palavras sem flor, tronco ou raiz.

A insónia que vem na madrugada,
O_impossível naquilo que prometo,
A chuva que cai e_a roupa molhada,

A rima, mais a quadra e o terceto,
Nesta coisa feia e desalinhada,
Tudo me faz mais triste que_o soneto.


Raquel Patriarca
trinta.janeiro.doismilecatorze



Uma Carta Para Emily Dickinson


Porto, 30 de janeiro de 2014

Minha querida Emily,

Sei que me esperavas por estes dias, mas não posso ir como
prometi. Não estou bem, tenho acordado sem alma e sem ânimo, os
médicos não sabem o que tenho e de verdade
que não me podem ajudar porque estou doente nas palavras,

Sinto que já não sei como escrever.

Tenho tempo e papéis e lápis mas não sei como escrever.
A chuva e o inverno já me são insuportáveis. A humidade ensopa os
cadernos, amolece os papéis e faz enrolar os cantos das fichas de cartão
em que vou catalogando as coisas do mundo para as escrever depois. Mas depois
olho para todas aquelas pequenas notas de vida e não as consigo escrever.

Persegue-me um querer que não consegue. 

Tenho alimentado o gato, feito a sopa, tratado das roupas, mantido as coisas nos lugares.
Respiro todas as pequenas ternuras e suporto tudo o resto.
Faço amor, faço as compras, faço as camas,
faço parte do mundo e faço de conta que compreendo as pessoas.
Sorrio compostamente, digo que pois que sim, às vezes encolho os ombros também,
mas evito ter muito que dizer.
Enche-me o silêncio e o enfado. Sobretudo enfado.

O mundo invade-me todos os dias e não consigo
fechar-lhe as portas. Falta-me a planície e o isolamento. Falta-me –
sobretudo – a determinação, e trago-me como numa pausa permanente, tão separada
de tudo. Imagino-te desiludida comigo. Assim sentada e muito quieta, com os olhos
serenos, que te ficaram para sempre na fotografia a preto e branco que guardo nos teus poemas.
Assim sentada e condescendente a ouvir todas as pequenezas de que te falo.
Às vezes quero ser mais como tu.

Tu que escreves com a consistência que eu só posso reconhecer na chuva
que me ensopa os papéis e os cabelos, sem compromissos e sem concessões,
podes - por favor - ensinar-me o ofício de escritor,
Diz-me ao menos se também tiveste vontade de descompor tudo.
De arrancar as cortinas só para as ver rasgadas e caídas no chão
a ganhar pó e pelos de gato. Uma fúria de empurrar para cima de qualquer outra coisa
a falta de sustento que vem e invade tudo. A dúvida e o medo de se poder cair assim
 - desprendidamente - como a cortina a quem se lhe partiu o varão.

E é que tenho mesmo que escrever,
Emily.
Sinto que não sei escrever, mas na verdade não sei fazer mais nada.
Sem escrever não tenho, simplesmente, para onde ir e estou assim,
estupidamente incapaz. E o mal não é do inverno ou da chuva ou
da humidade. O mal sou eu, compreendes.
Todos os dias, entre as muitas coisas de que faço planos, e as
poucas que enganadamente se cumprem, vou mentindo uma,
e outra, e outra vez ainda. Ao mundo e a mim, sobre o desgoverno
que faço do tempo e que não tem remissão. Do tempo e do papel e
dos lápis, que se me confiam sem perguntas e sem reservas, porque nada
sabem da realidade e do mau uso que lhes dou.
Vou contando os dias a tresmalhar-se.

E não sei o que fazer da solidão que me entra em casa e
se acomoda para ficar, como se ela própria tivesse medo de estar sozinha.
Queria visitar-te, Emily, a sério que sim. Falar contigo com vagar e
ouvir-te sem medo e em paz com o que espero de mim,
sentar-me na tua frente que é como se fosse na minha frente.
Um dia de paz, finalmente.


Raquel Patriarca
trinta.janeiro.doismilecatorze

Arco-íris

Deem-me um Arco-íris para caminhar
Para o lado de Lá de mim,
Essa Música que me embala e me deslumbra,
Lugar onde talvez faça sentido a Vida –
Só Aí a opacidade do meu ser
Será a transparência que me busco –
[De onde venho e para onde vou, afinal?
Aqui o mal é viver enredado na vertigem triste.]
Atravessarei a Ponte e a estreita Escada
De cores indeléveis que tecem o Arco-íris?
Quem sabe? Encontrarei Nele a minha essência?
Sei bem a solidão da angústia que habitou Emily –

A Poesia é sempre da escada a balaustrada
Sobre o qual se debruça o meu olhar –
                                                                        2014.02.24
                                                                José Almeida da Silva

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