domingo, 9 de maio de 2010

a realidade de um enigma


Joana Vasconcelos "top model" 2005


publica-se a mágoa

aços e lâminas pelos ares - acidentes
liminares nas cores de esparta e atenas - litigantes
feridas não mortais - sólidas
estranhas no modo estranho.

o preconceito na existência de paradigma
a realidade como um enigma
na fuga caída dos sentidos

uma voz esquiva no horizonte
uma luz de dínamos - íntima
luz de muralhas – um caminho
no cimo de uma falésia - o equilíbrio

publica-se a mágoa e o pressentimento
de querer tudo ser nada
e nada querer não ser diferente

como seria o fim do vento frio ?
reduzir a inexistência do medo
no estado incompleto da euforia ?

há momentos próximos e distantes
a luz variada dos semáforos e a conclusão
de que os diamantes vivem para sempre
e na máxima dureza se esconde o brilho -

Metal pesado




Outro poeta espanhol da segunda metade do século XX, que me faz acreditar que há vida para além da vida de todos os dias, ainda que a crítica o situe na chamada Poesía de la Experiencia, geração de poetas onde o quotidiano é rei e as vivências pessoais são tratadas com a mesma deferência de uma ilusão perdida.


Igual que sucedía, siendo niños,
con las mágicas gotas de mercurio,
que se multiplicaban imposibles
en una perturbada geometría,
al romperse el termómetro, y daban a la fiebre
una pátina más de irrealidad,
el clima incomprensible de los relojes blandos.
Algo de ese fenómeno concierne a nuestra alma.
En un sentido estricto, cada cual
es obra de un sinfín de multiplicaciones,
de errores de la especie, de conquistas
contra la oscuridad. Un individuo
es en su anonimato una obra de arte,
un atávico mapa del tesoro
tatuado en la piel de las genealogías
y que lleva hasta él mismo a sangre y fuego.
No hay nada que no hayamos recibido
ni nada que no demos en herencia
Existe una razón para sentir orgullo
en mitad de esta fiebre que no acaba.
Somos custodios de un metal pesado,
lujosas gotas de mercurio amante.

De "Metales Pesados" 2001

Sobre o Transplante da Humanidade




Aos poucos, as técnicas de transplante
irão ocupar uma área maior
do que sensatamente lhes corresponde.

Depressa, a identidade ganhará músculos
gigantes na estratégia
que a partir de agora servirá para a definir
para sempre pior.

Os tempos mudam as vontades
e as vontades mudam o dobro.
O mercado, sempre sedento
por novos rostos e corpos belos
e redutores, fará de tudo para comprar
a melhor equipa de cirurgiões, psiquiatras,
patentes, máquinas e computadores,
salas de espera com piscina e anestésicos
com sabor a autonomia relativa, circo negro
e peppermint.

Aos poucos, haverá clientes do mundo inteiro à espera
que lhe transplantem o corpo todo, milímetro a milímetro,
depois um pouco mais.

O mercado exagerará nos preços e no mistério
ao início, mas rapidamente dará sinais de pornografia,
com aliás sempre acontece,
quando um produto é procurado melhor
com uma pistola na mão do que com duas a voar.

Os olhos azuis, por exemplo,
sairão de moda com a brevidade
de um herbívoro adormecido,
a menos de três metros de um leão
extensível a todas as heterodoxias
com que a sua fome é educada
desde pequena.

As acções vão disparar
à medida que as necessidades
de transplante atinjam o despropósito
e as linhas travessas com que se cose a compulsão
suportem o último comboio com destino ao disparate
(que nunca será transplantado com êxito
por uma nova ponderação
porque as ponderações serão sempre rejeitadas
pelo senso comum
e pela falta de imunosupressores
e compressas ontológicas
nas farmácias.)

O mercado sairá de cena também a qualquer momento,
como um ditador que se escondesse num suicídio temporário
e, sob pseudónimo, publicasse ainda um livro
sobre o transplante da humanidade.

Sem data


Claude Monet

Esta voz com que gritei às vezes
não me consola de só ter gritado às vezes.

Está dentro de mim como um remorso, ouço-a
chiar sempre que lembro a paz de segurança estulta
sob mais uma pedra tumular sem data verdadeira.

Quando acabava uma soma de silêncios,
gritava o resultado, não gritava um grito.

Esta voz, enquanto um ar de torre à beira-mar
circula entre as folhas paradas,
conduz a agonia física de recordar a ingenuidade.

Apetece-me explicar, agora, as asas dos anjos.

Jorge de Sena
In Perseguição, 1942