sábado, 16 de janeiro de 2010

A poética de Beethoven



Um auditório com um piano grande
De cauda , ligeiramente em cima, inclinada
E rodas de carrinhos de chá tão pequenas
Que devem ter durezas de diamantes
Para segurar as cordas, as madeiras nobres
A elegância das notas pesadas e longas
E a brilhante cor dourada dos metais.

O programa de uma única folha fala em Beethoven
Anuncia um rosto jovem na fotografia.
Quando entra o artista comenta-se a semelhança
Estica-se a fisionomia e adivinha-se a idade;
Se é moderna ou já antiga a referida fotografia.
Coincide. Tem três dias. Quatro no máximo.
Julgo que está a usar a mesma camisa.

O artista, o programa, a mesma camisa
A pose característica, em frente ao piano
A mão pousada sobre uma aresta azeviche
A vénia, as palmas, sem pressas, lentamente.

Quando há uma casaca de grilo, mais um gesto
Aquele que atira asas inuteis em bico
Para o lugar que escuta o ruído de tábuas,
A acústica de um ranger mal apertado.
Não é o caso. As calças pretas, os sapatos
Na cor de verniz dos casamentos, os dedos
Longos , embora os haja mais pequenos
Não é atributo indispensável. Os dedos
Compridos de articulações notórias
em leves estalidos de acomodação.

O piano de cauda preta, inclinada e
E os dedos leves como folhas na natureza
Ao vento, horizontais, descendo em fragmentos
De linhas e pontos de bússola e cardeais.

A sinfonia de Beethoven “A Patética”
Um nome incómodo sem origem
Pelo menos que eu saiba. Patético
Pateta, porque não “A Poética”
Não soa mais condizente?

Os braços começam de ângulo recto
E as mãos como aves voam , duplificam
O prazer de um intervalo antes de uma nota
A nova nota que intensifica o acto
De pousar no marfim branco e levantar
De novo, o voo e o silêncio e o braço
Em voo , e os meus olhos seguindo
O voo, o voo das aves, dos dedos
Da música de uma sinfonia “Poética”.

Um piano, de cordas, de cauda
E aquele plano do artista que vibra
Que me toca alma, naquela nota
Como um cupido de arco e seta
Naquela morte boa da “Poética”
Uma seta de cordas, a dor no peito
Aquele desfazer por dentro.

Lembro-me do outro filme e um quadro:
Uma sala luminosa e branca
Um rádio com algum solavanco
De ondas ténues, ruídos hertzianos,
Ruídos, a porta fechada. Um ecrã.
Um piano grande. Nós a um canto.
Observando Igor no paraíso de Paris
Que tem um olhar penetrante
Magnânimo, e se perde, perde-se de doçura:
Um doce de coco no aroma de Chanel.

Sacrilégio concerteza.Que pensamentos.
O artista deslizava nas escalas
Na primeira, na oitava, de ar lânguido
Naquela camisa branca, como se fosse fácil
E ainda essa tarde corria desvairado pela casa:
“Ainda não está bem! Que desgraça!
Vai lá estar o maestro, a professora, a D. Teresa
A Manuela, o professor, a Antena 2, o gravador!”
Digo eu. Assim o percebi ! Depois de Beethoven
Depois do Kachaturian, um ar tanto livre.
Falava. Não era só mãos.
O antigo aperto fluía em círculo
Em movimento centrípeto no fim do concerto.
O artista agradecia. As palmas ouviam-se.

As plateias nem sempre estão de acordo
Levanta, não levanta, pousa o casaco, o programa
Bravô, bravô, há sempre uma voz rouca.
Um encore, dois encores ou tantos? Bravô
Bravô, a mesma voz rouca. Acabou. Vamos.

Mas o sacrilégio não abandona. Nós a um canto.
Um centro. Um piano grande e as mãos deslizando.
A sagração da primavera em pleno Inverno
A sinfonia Poética. A imagem de Stravinsky
O perfume nº 5 -