sexta-feira, 15 de abril de 2011

XXXV - Um poema de Pablo


Salvador Dali "A aparição da cara de Afrodite" 1981

A tua mão voou dos meus olhos para o dia.
A luz entrou como uma roseira florida.
Areia e céu palpitavam como uma
culminante colmeia cortada nas turquesas.

A tua mão tocou sílabas que tilintavam, taças,
galhetas com azeite amarelo,
corolas, fontes e, sobretudo, amor,
amor: a tua mão pura poupou as colheres.

A tarde foi-se. Secretamente a noite deslizou
sobre o sono dos homens sua cápsula celeste.
A madressilva soltou um triste aroma selvagem.

E a tua mão voltou voando do seu voo
a fechar suas penas que julguei perdidas
sobre os meus olhos devorados pela sombra.

Pablo Neruda "Cem sonetos de amor" Trad. Albano Martins, Campo de letras

O momento de Doisneau



1. Muito antes de Freud, já Stanislavski tinha chegado à conclusão de que um sentimento é como um dirigível, por mais imenso que seja é sempre mais leve do que o ar, e no seu cockpit há pelo menos um narrador e um co-narrador, os dois muito atentos ao seu papel de condutores únicos e exímios do destino comum de uma narrativa, que é sempre uma viagem mais ou menos longa e significativa de balão ou dirigível, atravessando o capítulo da nudez de tudo à velocidade imprevista de sempre.

2. A corporização radical da personagem proposta por Stanislavski é, no mínimo, apetecível: Stanislavski pretende imitar a fundo o real, usando e abusando dos vínculos ditos “naturais” da realidade e, detendo-se nas suas luminosas estratégias de imitação eficazes e antigas, construir uma espécie de fenómeno de actuação sobre a actuação propriamente dita, recebendo do texto crepusculares mundos fingidos, sentidos como Pessoa queria que sentíssemos o fingimento, projectando-o muito para além das suas próprias fronteiras e expectativas.

3. No fundo, Stanislavski queria imprimir no actor aquilo que no poeta navega apenas na distância mater da sua escrita. Ou, talvez, por outro lado, dotar o poeta de toda aquela perícia que envolve o actor, da maquinaria ignóbil do corpo humano quando realçado entre os seus, entre os que assistem vestidos ao bailado analfabeto dos seus gestos e passos torpes na periferia do indizível, inventário tradicional de posturas patéticas e autênticas. Mas mais do que isso, Stanislavski tinha vontade de autenticidade histérica, noções muito presentes no amor, quando o impacto entre dois corpos e os papeis que lhes foram atribuídos produz esse tão estranho “método de acções físicas”, tendo apenas em vista a satisfação de uma promessa proveniente do interior incómodo do indivíduo, que sempre nos é indevida, excepto nos lugares extremos.

4. Ora, todo o lugar é um lugar extremo, se nada mais além desse lugar existir. Toda a expectativa consumada é uma ópera que conspira. Como no momento de Doisneau.