quinta-feira, 29 de março de 2012

Era o sol uma sombra

Rasgo de sol enquadrado na árvore como o amor na pele
Triângulo isósceles de indefinições que cresce e morde
A seda de um beijo, a sede da doçura de tudo o que foi.
É tarde e o sol não fica, talvez já não volte a nascer.
A incerteza da luz gravada na clorofila do rosto comove.
Será o coração a raiz? Mente ancorada a corpo incerto.
Não.
A raiz é o cerne neuronal do pensamento que acende os olhos.
O coração não se arranca nem dá fruto.
É só um músculo liso, autómato e acéfalo.
O miocárdio não pensa tão cheio de sangue.
Um punho fechado de células síncronas
Um sol ao contrário, que apaga e sorve luz.
O coração arranca-se. Quando é preciso.
Entra o sol e os neurónios continuam vivos e ternos
Sem a saudade melancólica do beijo.
A raíz é o corpo ser inteiro.
Ser inteiro em si na incompletude da dor.
A inteireza de se saber ser quem se é e faz.
A luz nas folhas verdes de uma árvore direita.
Inteira.

Isto tudo que nos rodeia (I) - Cartas de Mécia Sena/Jorge Sena


John William Waterhouse "Ophelia" 1889


Querida Mécia (28/11/46)

De manhã andei na obra. Almocei. Depois chegou o correio: um postal da Mãe, outro do Óscar, e provas do Pessoa. Até às 4 e meia, vi , e empacotei para as devolver, 80 páginas do Pessoa, e escrevi-te, ao Óscar, à Manuela Porto, ao Salgueiro (da Inquérito) e à Mãe. Fui ao túnel, andei por lá. Vim para o quarto repousar, ler um pouco: Shaw, E, à luz da vela, porque a electricidade foi-se mais uma vez, aqui estou a escrever-te com vagar.
Como já disse não recebi notícias tuas, que se calhar mandaste para Évora …

(…)

Acaba de regressar subitamente a luz, não sei por quanto tempo – (agora está a apagar e a acender) – (…) Apaga , acende, apaga, acende, que nem as velas se poupam, nem as velas servem (até esta frase parece um final de poema – hein? – um princípio de outro vem à cabeça do papel desta carta, mas não passou daí, em verso, e continuou-se por aqui fora como estás vendo).

(…)

São sete e meia, estou cansado, muito, muito cansado. Até amanhã, querida.

Jorge de Sena