domingo, 22 de janeiro de 2012

Blanc et Blanc


 
I.
O pastor alemão veio morar para o Centro,
Onde a releitura do ódio parece a releitura do amor
trouxe na viagem e na língua ainda o sabor das lágrimas de Heidi
elas nunca tocaram o chão -
a meio da queda ele bebia-as
como um limite, doces e citrinas, sabiam a gin tónico com muito limão
O caminho em direcção ao centro, a carreira de professor que ensina as estações
o medo vem a seguir ao Outono e o desejo a seguir ao Inverno
mas os ciclos são interiores: como as estações
a meio da queda, o frio congela as lágrimas,
 são agora flocos de neve que caem dos olhos de Heidi, parecem estrelas
cobrem os soldadinhos de chumbo de um manto branco

 
II.
despe Sebald… alguém
não é homem nem mulher
porque os géneros mentem –
A sua cara é feita de traição,
de traição os nervos, o contorno do queixo,
 o contorno das orelhas,
de traição os nervos,
 o viso, a expressão,
 de traição também o vento quente que lhe bate na cara.
Tem um derrame nos olhos por ter visto de mais,
e em todos os glóbulos a febre: Vermelha e branca -
Branca e Branca, como a ficha dos homens que fugiram -
 desenha a lápis um fundo onde morar
na expressão um afogamento interior
Desaparece como personagem, Heidi
 No lugar dela: uma memória magnética
Que acende os olhos, o derrame do centro
para onde a memória foi morar
 Ele ou ela disfarçado de noite porque os géneros mentem
Congelam na descida,
 o cair decidido no chão – rotundo,
Os nervos coloridos disfarçados de noite.



III.
Puseram uns patins no pónei branco
e empurram-no para cima do lago congelado
  os seus movimentos numa dança de susto,
O arfar do potro, o medo preso aos tendões
Uma respiração nervosa diz-lhe que sobreviva
O sangue a correr rápido
 o chão a fugir-lhe por baixo das patas
o espectador era só um: Toda a Gente.
O desenho que ficou no gelo, as marcas dos patins,
Da tracção, do espasmo, da dança dos reflexos,
as asas de uma borboleta
  no meio de um livro
 o último leitor fecha-o,
 noutra página um trevo de quatro folhas,
 outros amuletos ainda
ganham vida dentro da Montanha Mágica – Não será mais aberta.

 Falo de um entrar verdadeiro, um Entrar Magnético

IV.
Se nas mãos o mensageiro traz uma vela acesa
e se o mensageiro sofre de insensibilidade motora,
não dá conta que ela lhe queima as mãos
 e de arder todo o mensageiro se faz nova mensagem –
a expressão feita de muitas somas,
uma sede  de novo - foi toda para os olhos,
 desenha a linha da vida, o lápis, o pulso, o traço seguro
O fotógrafo da realidade pousa a máquina, sinal de abandono
 tem só agora a retina e no branco da parte de trás dos olhos,
as duas asas da borboleta, invertidas,
afogadas na representação da órbita
O coleccionador desta realidade faz uma nova cartografia do espaço,
 mas tem de ser ágil, a terra treme e muda muito rápido,
Surgem novas penínsulas, novas ilhas, novos medos onde antes era terra,
 e ao cartógrafo são exigidos reflexos rápidos,
porque também o mapa lhe foge por baixo das mãos.
O pulso seguro desenha a terra que treme
Só a velocidade lhe é permitida, como salvação e nela
a releitura do ódio parece-se com a releitura do amor.
Agudizam-se, chega-se logo aos pólos,
Talvez por isso ele foi morar para o centro.
O fotógrafo da realidade está desempregado, não porque não haja realidade (trabalho não falta) – mas porque o nosso século não permite mais a representação.
Também o cartógrafo. Resta-lhes o precário mas doce ofício de criar novos medos e neles entrarem
Dos teus olhos destilo uma Vontade Nova,
Todo o Desejo, toda a Viagem em nova anatomia
 a minha obsessão por braços, destilo das tuas mãos o caminho.
Da tua sede, a minha sede, da tua língua a minha vigília


V.
De todos os frutos se destila o prazer e o esquecimento
De todos os medos se destila a Crença – procuramos novas formas de beber
A viagem
não admite géneros, só procura -
de viagem a nova anatomia que rasga o universo à escala humana
Os dentes alinhados transmitindo coragem
os nervos tão seguros, os braços a remarem
por canais que abrimos e não se fecham

VI.
Na anatomia a minha obsessão por braços
Na geografia a minha obsessão por penínsulas:
Aquilo que entra –
E depois dos braços, as mãos, e depois os dedos
 extremidades, pontas que recebem e dão, por isso perecíveis, vulneráveis.
E depois penínsulas cada vez mais finas e estreitas,
 paredões, finíssimas línguas de areia que entram pelo mar:
parecem dedos, os Faróis,
pescadores solitários com a lancheira ao lado, namorados –
 Aqui nas pontas recebe-se e leva-se para o centro.
Ali um caminho ou uma artéria fina,
em direcção ao coração,
ao núcleo
Ele pede a sensação que as pontas lhes dão.
As flores roxas fecham-se à noite e as flores amarelas fecham-se à noite.
é no fundo das pessoas e não debaixo das botas
que se calcam os esqueletos das folhas de Outono -

VII.
os soldadinhos de chumbo que o pastor alemão deixou no chão
cobertos pelo manto branco da neve que continua ainda a cair
O frio foi todo morar para dentro, nos ossos, nas pontas dos dedos

Não é só a máquina que filtra, mas também os olhos
Deles nevam as lágrimas ou as estrelas
E elas voltam a subir para desenhar as nuvens do fundo
também da queda se faz subida:
Já não vertical – mas um espalhar-se contínuo, infiltra-se em todo o lado

Não sei de que ângulo a vi partir
Subia, subia
branca e branca era a montanha
Um moinho no cimo, um novelo dentro do moinho
Um cão a guardar o moinho – um pastor alemão
A cauda a abanar a assim que a viu, o riso foi todo para os homens
O resto da natureza ajuda a desenhá-lo
O que vi na tua cara – Mais Deus que qualquer outra coisa
Mais Criador do que tudo… o Branco cruza o Branco
Alguém me perguntou - De que falamos? De que falamos desde que nos conhecemos?
 Os faróis parecem dedos.

Nuno Brito

palavras de prefácio de um livro que se chama abraço




Os livros, esses animais opacos por fora, essas donzelas. Os livros caem do céu, fazem grandes linhas rectas e, ao atingir o chão, explodem em silêncio. Tudo neles é absoluto, até as contradições em que tropeçam. E estão lá, aqui, a olhar-nos de todos os lados, a hipnotizar-nos por telepatia. Devemos-lhes tanto, até a loucura, até os pesadelos, até a esperança em todas as suas formas

José Luís Peixoto