segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Imagem minha



fotografia de Martin Munkacsi 1939

Ficas a ler comprazida diante das rosas
silhueta que vislumbrei compus e reanimei.
Tinhas o perfil marcado cruamente pela luz,
as mãos claras no colo, os cabelos despojados
do brilho das cabeleiras soltas, mas juvenis
e sacudidos no início da tarde com alegria.
As páginas balouçavam do mesmo modo que as rosas
porque ao começar a tarde nos dias de Verão
brisas e vapores estendem-se desde o mar
até às margens floridas. No teu banco
adornado por festões de rosas trepadeiras
afastas os olhos do livro não absorta
mas para sempre atraída por inúmeras imagens.

Fiama Hasse Pais Brandão, in "Três Rostos - Poemas Revistos"

domingo, 30 de agosto de 2009

O balão aquecido


Giorgio di Chirico "Mistério e melancolia de uma rua"


Estranho a tarde de Agosto nos passeios sós
a geometria do cimento de inúmeras placas
quase tectónicas, quase erodidas, quase ruínas
de um calor forte, contido magma.
Um Centro de Saúde em casa rasa anuncia entradas
desiguais, para um estado febril de gripe "A" deserta
e muitos outros mortais de quedas imprevistas
tonturas de Estio, sedes ocultas em fomes insaciadas
as finas cintas, ou ares alugados de muitos doces
mesmos medos, sinais contrários, doença (de)mente

a bulimia de muitos hinos sopra.
o Eu profundo influi no nariz agora liso
num olhar de pólo Norte atmosférico
respirando as furnas , as quentes pedras.
os braços ensinam os dedos no artesanato
entrelaçado de uma cesta de vimes levíssima
acima da qual desperta o fogo feito
no balão aquecido de sonhos e cinzas
que enleva mais perto os telhados de vidro
o céu entoado de segredos que tudo vê
e nada conta na distância dos silêncios.

subo...subo...subo...na estranha forma
o nosso mundo é apenas um ponto único;
a lágrima azul
o infinito
fico...fico...fico...
longe...longe...longe...

Ventilação do Poema

Pássaros que passam
e navios perdidos
que permanecem,
ou ficam em ninhos
ou soam em apitos

ventilação de vazios
pontos de fuga do poema
os pássaros e os navios

sábado, 29 de agosto de 2009

Coisas, pequenas coisas





Fazer das coisas fracas um poema.

Uma árvore está quieta,
murcha, desprezada.
Mas se o poeta a levanta pelos cabelos
e lhe sopra os dedos,
ela volta a empertigar-se, renovada.
E tu, que não sabias o segredo,
perdes a vaidade.
Fora de ti há o mundo
e nele há tudo
que em ti não cabe.

Homem, até o barro tem poesia!
Olha as coisas com humildade.

Fernando Namora, in "Mar de Sargaços"

Are you going?



O vento buliçoso de bom dia
maré viva de bandeira rubra
sinal de perigo
condição objectiva de largar areias
as águas frias
e subir acima à pequena catarata
roda larga de madeira
velha azenha.

Subsistia límpida a transparência
um cardume roçando a pele
de tamanho pequeno.

O ruído constante de pedras lavadas
as águas correntes de um rio.

Bandos de natureza amiga como brisas
no vento de borboletas
nos bichos barcos de quatro patas
às dezenas subindo junto às margens.

O sabor doce de figos brancos
após o banho o encontro dos trevos
entre pinheiros e odores frescos
de eucaliptos abrindo narinas
os sentidos nas sombras verdes
o deitar pleno nas toalhas dos arbustos
nos braços dos acordes mi menor e sol maior
de uma pergunta de estrofes antigas:

"Are you going to Scarborough fair
Parsley, sage, rosemary and thyme...".

A melodia sussurrou o silêncio das seivas
a leveza do ar por mais de uma hora;
a guitarra de olhos fechados pousada
e as árvores como cordas
tangiam os corpos como pautas
entre os dedos e os lábios roxos -

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Eine Kleine Nachtmusic

O amor é o homem inacabado






Todas as árvores com todos os ramos com todas
[as folhas
A erva na base dos rochedos e as casas
[amontoadas
Ao longe o mar que os teus olhos banham
Estas imagens de um dia e outro dia
Os vícios as virtudes tão imperfeitos
A transparência dos transeuntes nas ruas do acaso
E as mulheres exaladas pelas tuas pesquisas
[obstinadas
As tuas ideias fixas no coração de chumbo nos
[lábios virgens
Os vícios as virtudes tão imperfeitos
A semelhança dos olhares consentidos com os
[olhares conquistados
A confusão dos corpos das fadigas dos ardores
A imitação das palavras das atitudes das ideias
Os vícios as virtudes tão imperfeitos

O amor é o homem inacabado.

Paul Eluard, in "Algumas das Palavras"
Tradução de António Ramos Rosa

terça-feira, 25 de agosto de 2009

De la musique




Ah, pouco a pouco, entre as árvores antigas,
A figura dela emerge e eu deixo de pensar...

Pouco a pouco, da angústia de mim vou eu mesmo emergindo...

As duas figuras encontram-se na clareira ao pé do lago....

... As duas figuras sonhadas,
Porque isto foi só um raio de luar e uma tristeza minha,
E uma suposição de outra coisa,
E o resultado de existir...

Verdadeiramente, ter-se-iam encontrado as duas figuras
Na clareira ao pé do lago?
( ... Mas se não existem?...)
... Na clareira ao pé do lago?...

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O pêlo era macio




O esquilo de cores de bugalha
brincava pinhas do tamanho de nozes
e subia linhas fundas de tronco
pequenas ravinas de algumas formigas
no cedro largo e secular.
pelos caminhos tinham passado
os irrequietos caprinos nos indícios
escuros de azeitonas. por fim
abria-se a clareira como mancha
ao olhar circular das aves
corredoras de ramos ou apenas
sombras cingidas de um céu azul.
Foi curiosa e improvável a descoberta
dos "frades" ( cogumelos brancos
de anel redondo) benignos e secretos
em poses desmanchadas de abas grandes
acima de margens interiores de um rio
prisioneiro de fragas vestido de verdes.
Uma vida próxima um gato branco
encostou a voz fina única breve
de dorso elevado um tremor interno.

o pêlo era macio.

sábado, 22 de agosto de 2009

O meu sonho habitual


Nélio Filipe "Verão" (fotografia retirada da internet)

Tenho às vezes um sonho estranho e penetrante
Com uma desconhecida, que amo e que me ama
E que, de cada vez, nunca é bem a mesma
Nem é bem qualquer outra, e me ama e compreende.

Porque me entende, e o meu coração, transparente
Só pra ela, ah!, deixa de ser um problema
Só pra ela, e os suores da minha testa pálida,
Só ela, quando chora, sabe refrescá-los.

Será morena, loira ou ruiva? — Ainda ignoro.
O seu nome? Recordo que é suave e sonoro
Como esses dos amantes que a vida exilou.

O olhar é semelhante ao olhar das estátuas
E quanto à voz, distante e calma e grave, guarda
Inflexões de outras vozes que o tempo calou.

Paul Verlaine, in "Melancolia"
Tradução de Fernando Pinto do Amaral

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

A agulha de alfaiate






No terreno, nas linhas de uma fronteira
o muro caído estendia as pedras como filhas
alterava o espaço de torrões secos no cimo
de pomares, acima da um espelho de albufeira
esse rio claro de pousios e cantos de asas
pios encobertos nos raios incomuns do castanheiro
o mais antigo, o mais sabedor e confidente
de muitas histórias de ouriços e folhas recortadas.

Particular e alta aquela rocha onde moram
covas seculares de águas paradas
na original pura envolvência que exprime
o etéreo lugar do ininterrupto sentir
aquele que se une de distâncias
e melodias breves e fortes
no doce tremer dos nossos alicerces
a sequência mais similar de um Paraíso
por debaixo do mar e uma existência de ondas.

Agora mais leve é a seda dos dedos
nas janelas que fecho ao presente
de claridades e escuros dispersas
o rebusco de infinitos nas brisas complexas
nos lugares mais sérios do sorriso.

Junto á serra de novo ergo
esta e aquela natureza adversa
reconstruo sem mágoa o sossego
- pedra a pedra o muro caído;

qual agulha de alfaiate
nas baínhas de umas calças
ou nas rodas de um vestido.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Dia mundial da fotografia

Frutos



Cézanne

Pêssegos, peras, laranjas,
morangos, cerejas, figos,
maçãs, melão, melancia,
ó música de meus sentidos,
pura delícia da língua;
deixai-me agora falar
do fruto que me fascina,
pelo sabor,
pela cor,
pelo aroma das sílabas:
tangerina, tangerina.

Eugénio de Andrade, in Aquela nuvem e outras

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Conversa sentimental



Robert Hardgrave


Conversa Sentimental
No velho parque deserto e gelado
Duas formas passaram há bocado.

Com os olhos mortos e os lábios moles,
Mal se ouvem, a custo, as suas vozes.

No velho parque deserto e gelado
Dois espectros evocaram o passado.

— Recordas-te do nosso êxtase antigo?
— Por que razão acha que ainda consigo?

— Bate, ao ouvires meu nome, o coração?
Vês ainda a minha alma em sonhos? — Não.

— Ah! bons tempos de prazer indizível
Unindo as nossas bocas! — É possível.

— Como era azul, o céu, e grande a esperança!
— Mas é prò negro céu que hoje se lança.

Lá caminhavam plas aveias loucas
E só a noite ouviu as suas bocas.

Paul Verlaine, in "Festas Galantes"
Tradução de Fernando Pinto do Amaral

sábado, 15 de agosto de 2009

Não correm ventos e o sumo é fresco


Magritte "Os valores pessoais" 1952


De dia surgiam surpresas incertas
mais ou menos completas
conforme o humor de Verão
no fresco laminar de um copo de fruta
batido nos ritmos de gelos e vidros.

preferia o toque de páginas descoloridas e similares.
os quadros eram o resultado de um quarto fechado e cheio
em cada folha de múltiplas ideias qual filme de lápis
que se apagava e reescrevia em sequencial serrania;
capítulos de enredo de linhas contínuas em trajes bordados
de cidades, caminhos de terras batidas, de mares navegados.

preferia o toque das páginas em papel de seda, de papiro
e as cores breves de antracites nas sebentas
mas nada tão próximo como a luz intermitente
das fases: luas, águas, nuvens em movimento;
um ecrã que atravessa continentes
em passos de légua que tocam as ilhas
as várias tão diferentes vidas.

rolava de novo pratas escondidas no copo verde liso
um sumo agitado de onde sobressaía a manga tropical
o fruto difícil de fibras protegendo o espalmado limbo;
um rosto de cabelos escorridos depois de um sonho
imaginado personagem de um livro.

não correm ventos e o sumo é fresco
e ao longe ondula ainda a temperatura quente
de uma utopia.

A minha ausência de ti



Chagall "Paris através da janela" 1913

Foi tal e qual o inverno a minha ausência
de ti, prazer dum ano fugitivo:
dias nocturnos, gelos, inclemência;
que nudez de dezembro o frio vivo.
E esse tempo de exílio era o do verão;
era a excessiva gravidez do outono
com a volúpia de maio em cada grão:
um seio viúvo, sem senhor nem dono.
Essa posteridade em seu esplendor
uma esperança de órfãos me parecia:
contigo ausente, o verão teu servidor
emudeceu as aves todo o dia.
Ou tanto as deprimiu, que a folha arfava
e no temor do inverno desmaiava.

William Shakespeare, in "Sonetos"
Tradução de Carlos de Oliveira

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

O verdadeiro válido sentido tão simples



Dali "Sonho causado pelo voo de uma abelha em redor de uma romã um segundo antes de acordar" 1944


O verdadeiro válido sentido tão simples:
despertar na aurora calma lançando
os braços como setas no ar morno
de um dossel de cama desfeita
sustendo o olhar fechado de um encontro
de uma mão, dedos, um outro corpo ainda morno
a alça inclinada, o assomar deitado de um seio
janela interior de um desejo macio de algodão
acordando o lobo, o capuchinho, os lábios vermelhos
que se estendem em cima da mesa ao pequeno almoço
de laranjas, pão centeio, o escorregar da manteiga
um pouco de doce
mas não tão doce quanto o primeiro exercício de juntar
os rostos brasindo as cores de raios quentes da praia;
morenas e verdes de ramos nos desenhos de uma flora
nas soltas camisolas caídas junto ao lago branco
toalha de felpo na hora de uma chuva imersa de espumas
no descolar de gotas: um jogo morno de dois corpos.

Válido, tão válido o sentido, sem teorema
como o voo elegante de uma luz de pirilampo
um canto feiticeiro
uma candeia acesa
a fogueira que chama.

noite





Mas a noite ventosa, a noite límpida
que a lembrança somente aflorava, está longe,
é uma lembrança. Perdura uma calma de espanto,
feita também ela de folhas e de nada. Desse tempo
mais distante que as recordações apenas resta
um vago recordar.

As vezes volta à luz do dia,
na imóvel luz dos dias de Verão,
aquele espanto remoto.

Pela janela vazia
o menino olhava a noite nas colinas
frescas e negras, e espantava-se de as ver assim tão juntas:
vaga e límpida imobilidade. Entre a folhagem
que sussurrava na escuridão, apareciam as colinas
onde todas as coisas do dia, as ladeiras
e as árvores e os vinhedos, eram nítidas e mortas
e a vida era outra, de vento, de céu,
e de folhas e de coisa nenhuma.

Às vezes regressa
na imóvel calma do dia a recordação
daquele viver absorto, na luz assombrada.

Cesare Pavese, in 'Trabalhar Cansa'
Tradução de Carlos Leite

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Visita-me enquanto não envelheço




Modigliani "Jeanne Hébuterne com camisola amarela"


visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado

tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores

ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos

antes que desperte em mim o grito
dalguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro

perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água

com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te

Al Berto, in 'Salsugem'

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Imprecisos



(fotografia retirada da internet)

Sinto que tropeço nas iluminuras
os dourados reflexos dos intensos amarelos.
Ao trocar o olhar exterior pela minúcia
o encoberto universo dentro
espalho a tinta de um renovado escriba
de algodão à cintura cabelos no agreste vento
recolhendo nos textos antes do destino
os círculos voláteis de um castelo de cartas
onde se risca o ar de asas brancas
ou de frente nas estrelas os morcegos
- cabeças pequenas asas de medo;
à noite cobre-me
o cego aroma de veludos negros
- volúveis imprecisos e humanos.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Demasiada Loucura é o Mais Divino Juízo


Patrick Hourihan "Fantastic Duet"

Demasiada Loucura é o mais divino Juízo -
Para um Olhar criterioso -
Demasiado Juízo - a mais severa Loucura -
É a Maioria que
Nisto, como em Tudo, prevalece -
Consente - e és são -
Objecta - és perigoso de imediato -
E acorrentado -

Emily Dickinson, in "Poemas e Cartas"
Tradução de Nuno Júdice

sábado, 8 de agosto de 2009

Amo-te no intenso tráfego


Salvador Dali "Leda atómica" 1949

Amo-te no intenso tráfego
Com toda a poluição no sangue.
Exponho-te a vontade
O lugar que só respira na tua boca
Ó verbo que amo como a pronúncia
Da mãe, do amigo, do poema
Em pensamento.
Com todas as ideias da minha cabeça ponho-me no silêncio
Dos teus lábios.
Molda-me a partir do céu da tua boca
Porque pressinto que posso ouvir-te
No firmamento.

Daniel Faria, in "Dos Líquidos"

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Mar de sentidos


Magritte " A condição humana" 1935


As águas do mar do norte gélidas de frias.
Manhã cedo de passeios nas beiras desse lugar;
passos em fio, marcas de sandálias que se alisam
no silêncio breve e branco das espumas
no ar descomposto das algas, na retenção
azul líquida de vasos, nos pés de bicicleta
em ritmos cardíacos, como ilhas
em movimentos de areia e águas, navios, navios...

Passeios de braços pousados e sombras no olhar
redondas nos sussurros do horizonte
cruzadas de palavras, audíveis, largas:

quem as diz? quem as traz fortes?

essas mãos dentro de mim, abrindo, abrindo...
o pó dos livros, as frases imperdíveis como ecos
sinais que se misturam de tantos, tantos modos
em rasgos longos, fumos, fumos, tantos fumos...
uma lava luminosa, quente, rosa-dos-ventos de rumos
que solta as lágrimas de púrpura, os sorrisos mais firmes
a essência mais límpida de um mar de sentidos.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

A forma justa


(Fotografia retirada da Internet)



Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
— Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas"

D E S C O M P R E S S Ã O

Procuro compensar a azáfama,
o bulício brutal vivido
com o pandemónio do stress laboral;
o polegar firme
e a polpa do indicador,
premem minhas têmporas,
deixo que o índex se estenda
por toda a minha fronte,
cotovelo esquerdo sobre a mesa,
rodo o pescoço
sinto-o estalar e ranger,
provocando dor surda
por estiramento muscular;
sobrelevo os ombros
despertando dor aguda nos trapézios,
assim permaneço alguns segundos
aceitando dor crucial por intencional;
dentro em breve atingirei
tranquilo relaxamento funcional!

Olhos ainda cerrados, visão dourada,
mar azul em ilha deserta...
a cabeça ainda lateja em torpôr,
mas é silenciada a ansiedade,
vai-se esbatendo a intolerância;
deixo escorrer a fadiga,
regressa o possível discernimento,
e os neurónios mostram-se felizes
por gradualmente poderem retomar
a fisiologia primária em suas sinapses!

Olhos agora entreabertos,
tranquilo, e com alguma serenidade
introspectivamente assumo:
- terei por certo escapado ao infarto,
mas não ao absurdo stress profissional;
- como se pode assim louvar o trabalho ?!


(Antonio Luíz , 16-07-2009 - Poesia pragmática ).

5 POETRIX ( a propósito do Verão )

Condição sine qua non:

- amar na praia
sol e sofreguidão,
verão escaldante no coração.


Alternativa:

Esbracejo no mar,
pertenço-lhe por instinto
após escaldão.

Constatação:

Bátegas de água fresca
temperam gentilmente areia
solarenta.

Relaxamento arriscado:

Gente deambulante indefesa
em praias, sol a pique...
vida desprotegida.

Compensação:

Paixão na orla do mar,
abraços-protecção do sol
intempestivo.


(António Luíz , 28-07-2009 - Poesia pragmática )

terça-feira, 4 de agosto de 2009

A catedral engolida



Depois daquela poesia a seguir ao almoço
no hábito que não é o nosso
desceu o sono, o farto sentir do cansaço
o abrir de uma rosácea que pedia descanso.
Dessa forma se fecharam os olhos
na calma branca de uma parede incompleta;
lugar onde caiu o quadro colorido
de um prego inseguro e superficial.
Seguiu-se o ruído de mundos leves
entrando e saíndo uma brisa breve de ritmos
escutando o sentir interior das furnas
na forma de sombras de um teatro antigo.

Os véus opacos desvendavam segredos apenas
a pássaros pequenos que debicavam migalhas
acesas sobre a mesa.

Nas almofadas dois rostos em crescendo
sem qualquer indício de faúlha, a faísca
que de lua em sol subia os lábios felizes
(felinos os corpos que quase miam
no jeito encolhido de um beiral de Agosto).
Dormiam, tanto dormiam.


No primeiro acordar foi tão nítido o sonho:
uma catedral engolida de ondas
ao som de um piano no breve instante.
Sobrou suspenso, não deglutido um vitral
filtrando cores de um insensato arco-íris
nos dois rostos calmos como os fenos-
quando não há mais ventos- e o mesmo som, dentro
de uma pequena imensa jarra feita em cima da mesa
de fios finos de estrelícias
aromas de narcisos
nas puras águas de uma ilha
onde habitavam os poemas
e à volta
as almas de todos os rios.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

La Cathédrale Engloutie/ Debussy

La Cathédrale Engloutie




Creio que nunca perdoarei o que me fez esta música.
Eu nada sabia de poesia, de literatura, e o piano
era, para mim, sem distinção entre a Viúva Alegre e Mozart,
o grande futuro paralelo a tudo o que eu seria
para satisfação dos meus parentes todos. Mesmo a Música,
eles achavam-na demais, imprópria de um rapaz
que era pretendido igual a todos eles:
alto ou baixo funcionário público,
civil ou militar. Eu lia muito, é certo. Lera
o Ponson du Terrail, o Campos Júnior, o Verne e o Salgari,
e o Eça e o Pascoaes. E lera também
nuns caderninhos que me eram permitidos
porque aperfeiçoavam o francês,
e a Livraria Larousse editava para crianças mais novas
do que eu era,
a história da catedral de Ys submersa nas águas.

Um dia, no rádio Pilot da minha Avó, ouvi
uma série de acordes aquáticos, que os pedais faziam pensativos,
mas cujas dissonâncias eram a imagem tremulante
daquelas fendas ténues que na vida,
na minha e na dos outros, ou havia ou faltavam.

Foi como se as águas se me abrissem para ouvir os sinos,
os cânticos, e o eco das abóbadas, e ver as altas torres
sobre que as ondas glaucas se espumavam tranquilas.
Nas naves povoadas de limos e de anémonas, vi que perpassavam
almas penadas como as do Marão e que eu temia
em todos os estalidos e cantos escuros da casa.

Ante um caderno, tentei dizer tudo isso. Mas
só a música que comprei e estudei ao piano mo ensinou
mas sem palavras. Escrevi. Como o vaso da China,
pomposo e com dragões em relevo, que havia na sala,
e que uma criada ao espanejar partiu,
e dele saíram lixo e papéis velhos lá caídos,
as fissuras da vida abriram-se-me para sempre,
ainda que o sentido de muitas eu só entendesse mais tarde.

Submersa catedral inacessível! Como perdoarei
aquele momento em que do rádio vieste,
solene e vaga e grave, de sob as águas que
marinhas me seriam meu destino perdido?
É desta imprecisão que eu tenho ódio:
nunca mais pude ser eu mesmo - esse homem parvo
que, nascido do jovem tiranizado e triste,
viveria tranquilamente arreliado até à morte.
Passei a ser esta soma teimosa do que não existe:
exigência, anseio, dúvida e gosto
de impor aos outros a visão profunda,
não a visão que eles fingem,
mas a visão que recusam:
esse lixo do mundo e papéis velhos
que sai dum jarrão exótico que a criada partiu,
como a catedral se iria em acordes que ficam
na memória das coisas como um livro infantil
de lendas de outras terras que não são a minha.

Os acordes perpassam cristalinos sob um fundo surdo
que docemente ecoa. Música literata e fascinante,
nojenta do que por ela em mim se fez poesia,
esta desgraça impotente de actuar no mundo,
e que só sabe negar-se e constranger-me a ser
o que luta no vácuo de si mesmo e dos outros.

Ó catedral de sons e de água! Ó música
sombria e luminosa! Ó vácua solidão
tranquila! Ó agonia doce e calculada!

Ah como havia em ti, tão só prelúdio,
tamanho alvorecer, por sob ou sobre as águas,
de negros sóis e brancos céus nocturnos?
Eu hei-de perdoar-te? Eu hei-de ouvir-te ainda?
Mais uma vez eu te ouço, ou tu, perdão, me escutas?

domingo, 2 de agosto de 2009

Que farei no outono quando tudo arde




Que farei no outono quando ardem
as aves e as folhas e se chove
é sobre o corpo descoberto que arde
a água do outono

Que faremos do corpo e da vontade
de o submeter ao fogo do outono
quando o corpo se queima e quando o sono
sob o rumor da chuva se desfaz

Tudo desaparece sob o fogo
tudo se queima tudo prende a sua
secura ao fogo e cada corpo vai-se

prendendo ao fogo raso
pois só pode
arder imerso quando tudo arde

Gastão Cruz, in "As Aves"

sábado, 1 de agosto de 2009

Eu Platero


Matisse "A dança" 1910 , óleo sobre tela 260cmx390cm, Ermitage S. Petersburg


Sempre o mesmo "Platero". Crescem as orelhas
encostam-se os cabelos e cai o peso de chumbo
dos meus erros.
Aquieta-se a aurora, permanece a lua
a pulsação límpida das estrelas
que apesar de lenta sempre aumenta
a mesma cor intensa da cereja
a mesma luz e sombra do desejo.