terça-feira, 8 de março de 2011

Fragmentos II - A-REALIDADE


David Hockney


A-REALIDADE. Sentimento de ausência, fuga da realidade experimentada pelo sujeito apaixonado face ao mundo

I. Espero um telefonema e essa espera angustia-me mais do que é habitual. Tento fazer qualquer coisa mas não consigo. Passeio no meu quarto: todos os objectos - cuja familiaridade normalmente me reconforta - , os telhados cinzentos, os ruídos da cidade, tudo me parece inerte, separado, siderado como um astro deserto, como uma Natureza onde o homem nunca tivesse existido.
II. Folheio o álbum de um pintor que apreço; não posso fazê-lo senão com desprendimento. Aprovo essa pintura mas as imagens estão geladas e isso aborrece-me.
III. Num restaurante a abarrotar, na companhia de amigos, sofro (palavra incompreensível para quem não está apaixonado). O sofrimento vem-me das pessoas, do barulho, da decoração (kitsch). Um manto irreal, vindo dos lustres, dos tectos de vidro, atinge-me.
IV. Estou sozinho num café. É domingo, à hora de almoço. Do outro lado do vidro, num anúncio mural, Coluche faz caretas e faz de imbecil. Tenho frio.
( o mundo está cheio sem mim, como em La nausée (Sartre); aprende a viver por detrás de um vidro; o mundo está num aquário; vejo-o perto e, no entanto, afastado, feito de uma outra substância; caio continuamente na precisão, fora de mim próprio, sem vertigem, sem nevoeiro, como se estivesse drogado)
…………..


Roland Barthes " Fragmentos deum discurso amoroso" Ed. 70 1981

Um poema para o dia da Mulher


Pablo Picasso


Mãe, agora que guardaste na arca
as blusas pretas e os teus olhos
voltaram a ser azuis; que os meus
irmãos dormem no seu quarto um
sono de poderem ser felizes, que

já conseguimos dizer uma à outra
o nome dele no meio de um sorriso
porque a morte, afinal, é uma coisa
tão longe – deixa-me perguntar-te

porque não há retratos do meu pai
comigo ao colo, como os dos meus
irmãos que ele trazia sempre junto
ao peito e tu depois dividiste pela
casa para ele poder saber que ainda

te lembravas; ou então debruçado
no meu berço – que tu escondeste
no sótão ainda eu era pequena e te
sentavas a embalar vazio quando ele
não entendia porque estavas tão
triste. Mãe, eram tão azuis os olhos

do meu pai no dia em que levou os
meus irmãos à escola e tinham tanto
medo do que pudesse acontecer-lhes;
são tão azuis também os olhos deles
debaixo do seu sono, e os meus tão

negros de dúvidas – porque foste
sempre tu que me levaste sozinha
para as coisas difíceis da minha vida,
que o meu pai nem nunca quis saber
que coisas eram. Mãe, estão hoje tão

azuis os teus olhos com essas roupas
claras, e eu ainda tenho o nome do
meu pai entre as minhas lágrimas, mas
agora, que os meus irmãos descansam

no seu quarto, que já todos podemos
dizer o nome dele sem nos cortar os
lábios, diz-me a verdade: esse homem
que chorámos era mesmo meu pai?

Maria do Rosário Pedreira "Nenhum nome depois" Págs. 42-43
(retirei de blog de Arlindo Correia)