segunda-feira, 24 de maio de 2010

Mascarada

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Pensou ir mascarada à festa - Descobriu no espelho da sala que já estava mascarada; não percebeu de quê. Descalçou-se como as outras raparigas de cabelo curto para ir à festa. A cara fugia-lhe para um estranho ângulo, não era bem cara; Observou-se em campo/ contra campo – Não a ela – Mas às outras. Não era cara o que tinha; Descalçou-se e escreveu três poemas em métrica sáfica: “A Expiação de Pizarnik”, “Pathos de Mariana Alcoforado” e “A Tentação de Berlim”. Fez um bolo com muito chantilly para levar à festa. Parecia que voltava a ter cara.

Nessa Noite sonhou que caminhava pelo gelo de um dos pólos, e estava cheia de febre, e era muito grande, anormalmente grande, e os seus pés quentes faziam derreter a neve, e esse degelo criava pequenas lagoas e rios que desciam pela Escandinávia e depois pela Europa toda, e conseguia ver, pelo seu tamanho anormal a Europa toda, os fabricantes de cerveja em Munique, os semeadores de trigo da Sicília, os apostadores da bolsa de Amesterdão: alguns atirando-se de janelas por perderem tudo num mesmo dia. Os pescadores que pescavam no Báltico, os transportadores de sal, os camionistas a entrarem em França e a saírem de França, os leiteiros de todo o continente a levarem as bilhas a casa das pessoas, os guardas de todos os faróis da Europa a ouvirem rádios mal sintonizados, os pastores a percorreram com os seus rebanhos vários trilhos, os paquistaneses a venderem guarda-chuvas e flores em todas as metrópoles da Europa.
E a neve estava um pouco vermelha, como se depois da neve tivessem chovido morangos, e ela calcava a neve e os morangos que no contacto com o seu corpo quente faziam rios vermelhos que desciam das montanhas. Olhava o mar, agora no seu tamanho normal e apareceu uma ninfa com a boca negra de petróleo, vinha do golfo do México onde no seu fundo Neptuno ficava imobilizado, com os músculos presos e cristalizados pelo petróleo gordo. E lembrou-se que o petróleo era antes de o ser, sangue de animais vivos como os dinossauros e de árvores vivas fossilizadas, coisas com vida, que agora davam vida, pensou na revitalização do planeta, e na morte como a grande ficção. A ninfa com a sua língua negra abraçou-a, e deram um linguado que demorou muito tempo, a sua língua estava também negra e o petróleo colou as duas línguas que ficaram presas e entrelaçadas: Mas isso não provocava pânico, era sangue de animais vivos, agora fossilizado, aquilo que permitia agora os carros dos bombeiros apagarem os fogos e fazer os aviões voarem: os dinossauros permitiram o voo aos homens. Isto fez rir as duas. Entraram no mar pensando-se uma única coisa. Escorria-lhes do sexo um leite adocicado enquanto o linguado continuava, e as línguas continuavam entrelaçadas e presas, tal como os braços, os da ninfa gordurosos de petróleo colavam-se aos seus como resina e eram uma só coisa, sentadas de joelhos em frente ao mar, à espera que a maré subisse.


Nuno Brito

alvéolos de infinito


Marc Chagall "o pintor na lua"


a tesoura de folhas afiadas cortou a estrada.
um salto no abismo. alvéolos de infinito .
asas a escoar sonoridades pianíssimas.
a liberdade oca. a proximidade da neblina.
um limbo. um ponto de espírito
desencontra a forma na descida da Lua
atinge a sólida cicatriz no estalar da Terra.

um limbo.
fechou uma concha de gelatina
transparente de morango.
há portas e janelas abertas de madrugada.
um caderno de folhas soltas esvoaça;

pérola brilho risco e palavra -

Perigo de esquecimento global




O mundo está suspenso
por uma mnemónica
exaurida.
Já nenhum mês tem 31 dias
contados pelos nós
das nossas mãos.
Milhões de pessoas
esquecem depressa que vivem
depressa e usam
a abertura absurda do mundo
como despensa e intestino,
abreviaturas quando
se lembram de ti,
uma coroa de flores de sono
que te oferecem enquanto
dormes coberto
de distância e formigas.
Os teus melhores amigos
fazem de ti uma ideia difusa
quando dormem pouco
e vão trabalhar de manhã cedo
com a mesma nódoa de whisky
na camisa que levaram na última vez
em que estiveram juntos
e brincaram às hemorragias.
O tempo é um grande diurético,
já diziam os antigos.
Mas a mulher que amaste há mais de dez anos
e há mais de dez anos amas, sem reservas,
embora se degrade e degrade ao som assumido
e sincrético da mais eficiente fisiologia
todos os dias da tua vida
e se pareça já mais com um escombro do sentido
do que com aquela que deixou a sua imagem pesada
e convexa no camarim da letargia

mesmo essa, precisamente essa,
não te poupa o carnaval das suas réplicas diferidas
cada vez que te aproximas de uma nova possibilidade
de amares outra vez outra viciosa despedida
e assim sucessivamente até ao fim
se é que o fim não estará ele também suspenso
por uma mnemónica com inúmeros problemas
de existir.