sábado, 30 de junho de 2012

amanhã seria notícia


                                               

tenho os olhos ardentes de uma noite curta
não recordo os sonhos e sigo o caminho do mar , das ondas
dos seus frios fundamentais na manhã que desperta.
há um linho na espuma e uma renda que cobre a areia.
vai e volta.
na manhã luminosa há olhos que não existem
e gaivotas que piam com bicos amarelos.
haverá um cais
no interstício da rocha,  na capa escorregadia  de uma lapa
na tessitura verde da pedra, luzidia e lisa esculpida pelas gotas soltas,  pelas mãos do mar –

observo  o meu infinito. o infinito de uma transição. o infinito de nós.
o infinito tem a permanência em cada veia levantada que atravessa o sal,
que atravessa a pedra da calçada, que atravessa o estrado de madeira de uma esplanada
- aquela que grita ao som dos passos e que chia sistematicamente num parafuso gasto –

lembro-me dos gatos.
os meus gatos, sim, os meus gatos, aqueles que me encostam os pêlos brancos, amarelos,
pretos e cinzentos, sem saberem que há contrariedades,
nebulosas para lá da lua que rodou para outro lado, para lá da manhã silenciosa –

os meus gatos aguardam e aguardam sempre que chegue a casa
para que lhes empreste as palmas, para que lhes mostre as pontas das pernas
para que lhes abra o colo
para que elevem o dorso, estiquem a cabeça ou enrolem o corpo
fazendo-se muito pequenos, um novelo que arfa, ritmado –

na praia, o azul é tímido no  último dia de junho, tem a cor de uma aguarela
 improvável para quem carrega sonhos e castelos na areia,
para quem brilha nos espelhos e se constrói de si mesmo
e de muita gente, a do passado, a do agora, a do futuro, e a da cor das vagas
que chegam e partem, entrando de novo naquele mundo
um mar mais calmo, como hoje –

quando muitos chegam à praia, há camisolas e caras tortas
um desespero de ausência de raios nos guarda-sóis
uma orfandade de um momento prescrito, sem remédio
para uma doença de rotinas. falha a luz e a temperatura adequada
para cremes e soluções protectoras, bíceps firmes, cintas curtas
umbigos planos, lábios iluminados, e sentam-se a meu lado
de revistas e jornais, na escuridão das lentes, com a meia-de-leite, o pão torrado –

devo ser uma ave. uma ave com mãos e palavras. queria ser uma ave.
queria fechar –me um instante. fechar-me num som tibetano, muito calmo.
queria ter penas e asas, ser leve, leve, muito leve

e voar –

na mesa, a caneta soltaria a tinta numa mancha preta
a estender-se como uma maré que cresce, assim de repente
envolvendo o infinito, a transição e as letras.

quando chegasse ao cais de uma rocha, ali à frente,
na forma de um pescoço branco que oscila
observaria a sombra, a sombra de um homem
a sombra do homem num espaço vazio
recortado, de uma tela de cinema, de uma realidade
construída,
e observaria o espanto dos turistas, a sua boca aberta, a sua convivência com o ridículo
e o anotável de uma improbabilidade sem sentido. quem explica?

e amanhã seria notícia -

josé ferreira 30 de Junho de 2012




quarta-feira, 27 de junho de 2012

Cantar de amigo - um poema de José Almeida Silva




Cantar de Amigo

Não mais, meu amigo,
O passado ido –

O caminho feito
Revelou a luz

E trouxe o presente
Voltado ao futuro.

Sei que não rasuro
O medo e a miséria,

Nem a ignorância
Nem a opressão

Que foi o passado
De dor e sem pão.

Não mais, meu amigo,
O passado ido –

Sei que estou atento
Ao frágil momento –

Velados desejos
De um tempo perverso,

Vestido de outrora
E bandeira preta.

Mas se for preciso
Há luta na hora

Que os dias são outros
E a consciência acesa –

O cansaço é muito,
Muito o desencanto

Mas há muita força
Para defender

O grande poder
Que é a liberdade –

Não mais, meu amigo.
Vem cantar comigo –

                     2012.06.11
    José Almeida da Silva

Do que Nada se Sabe

 






A lua ignora que é tranquila e clara
E não pode sequer saber que é lua;
A areia, que é a areia. Não há uma
Coisa que saiba que sua forma é rara.
As peças de marfim são tão alheias
Ao abstracto xadrez como essa mão
Que as rege. Talvez o destino humano,
Breve alegria e longas odisseias,
Seja instrumento de Outro. Ignoramos;
Dar-lhe o nome de Deus não nos conforta.
Em vão também o medo, a angústia, a absorta
E truncada oração que iniciamos.
Que arco terá então lançado a seta
Que eu sou? Que cume pode ser a meta?

Jorge Luis Borges, in "A Rosa Profunda"

terça-feira, 26 de junho de 2012

Com os olhos em fuga, na superfície do mar


                                        Giorgio di Chirico, ca. 1930

As franjas de superfícies chegam à praia, ondas e som.
A reverberação do sal e do plâncton na ligação seguinte, chegam e partem.
As íris são duas ilhas unidas pela montanha do nariz
e um horizonte que se estende até ao infinito.
O infinito tem a distância do sol –

As íris, as duas, as minhas, estão sós como uma fotografia
e paradas como uma biblioteca, com os pés descalços
e os dedos muito encolhidos, como se recolhessem a força de uma alga
ou o beijo de um peixe, quando a onda passa.
 O sol intenso  de Junho queima como Krípton e há temperatura a toda a volta
como se o ar fosse todo igual, muito morno, um ar irmão de muito ar
um oxigénio profundo, como as tuas palavras –

Uma alquimia que transmuda as intensidades, fogo, minérios e água
até à reinvenção da forma, uma estátua invisível do mundo –

Tenho um cristal, branco, verde, azul a cintar-me a mente
a receber as mãos,  as espalmadas de linhas
as veias que se estendem  como rios inflamados
acima das espumas, sem sair o sangue –

Sinto um sangue fechado
um sangue de artérias em cima dos pulsos, pulsando
nas artérias que vêm de todos os lados do corpo, unindo como um silogismo.
Este sangue não tem nada de dor é um sangue de cor
que invade que afluiu na face, como se existisse uma grande mesa
e dois copos de vinho mosto, um copo em cada uma das extremidades
doce, muito doce, como um sonho, um sorriso  e uma eternidade –

 josé ferreira

segunda-feira, 25 de junho de 2012

procura a metamorfose



                                               Maurice Denis


nas tardes infinitas
há árvores enormes de folhas amarelas
e um livro aberto.
 o livro pode ser de mil e uma folhas e muitas palavras
ou de grandes páginas com poucas letras.
não é o tamanho nem a quantidade que importa –

as árvores enormes de folhas amarelas
podem ter sido  inventadas.
e podes estar sentado numa mesa, num jardim ou dentro de uma casa.
se tiveres um livro aberto podes ter viajado pela Patagónia ou pela Sibéria
e podem crescer raízes na terra, assim rapidamente, num instante
com árvores enormes de folhas amarelas.
podes ser surpreendido pela metamorfose do chão –

e pode haver mais do que silêncio por debaixo das copas inventadas
como por exemplo, os pássaros ou mulheres gregas e romanas
em túnicas longas e largas -

nas tardes infinitas depois da metamorfose pode soprar a brisa
pode girar o novo mundo solar à tua volta 
antes do crepúsculo
um mundo sofisticado ou campesino
e músicas, sim, músicas, de harpa ou de flautas.
acredita na possibilidade –

as metamorfoses não surgem do acaso nas tardes infinitas
tens que as procurar.
procura sem descanso como se fossem pérolas
ou  tesouros de grutas milenares.
há uma filosofia na Grécia
que fala de pergaminhos sábios, de um oásis, de um segredo bem guardado:
o inatingível, o inalcançável e o maior de todos os bens, a felicidade -

talvez seja possível pelo sonho ou pela proximidade –

procura de todas as maneiras, não te esqueças.
abre portas e janelas.
procura sempre. 
pela genética e pelos poemas

josé ferreira

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Em tuas veias - um poema de António Ramos Rosa


                                    Maurice Denis 1892


Em tuas veias de rosa
de cândida maturidade
quero derramar o meu encanto
quero fluir no meu outono
Na tua nudez de piscina
dourada e marinha
com minúsculas sombras de melancolia
beberei a tua noite azul
e repousarei a salgada dolência
na firmeza macia dos teus róseos músculos
já não serei o fumo de uma sombra
mas um sopro de estrelas
desfalecendo no moroso júbilo
da minha sombra inteiramente aberta
cheia da nítida substância de um páramo terrestre
em dois vasos num só vaso de lucidez ardente



in «Meditações Metapoéticas», António Ramos Rosa
 e Robert Bréchon, Ed. Caminho, 2003

quarta-feira, 20 de junho de 2012

o depois do amor



também podíamos permanecer assim depois do amor
juntos, no meio de um campo, numa cama de vento, sem as paredes e sem o medo.
assim como um fragmento do tempo, a mostrar-se, a ser instante, a ser presente –

podíamos ver astros-estrelas.
os astros-estrelas não se movimentam com o amor.
quando os dias  e as noites rodam são homens e mulheres
numa dança de mil movimentos, com os dedos e com a mente.
assim como um vai e vem de ondas que naquele  momento se tornam brancas –

também podíamos permanecer assim depois  do amor
quando o céu é um deus que nos fecha  os olhos
e  nos abraça dentro as células satisfeitas –

e abraça muito, e em cada batimento
aquele lado esquerdo, agora em descanso e  tão perfeito  –


josé ferreira

terça-feira, 19 de junho de 2012

O fruto - um poema de Rilke




O Fruto

Subia, algo subia, ali, do chão,
quieto, no caule calmo, algo subia,
até que se fez flama em floração
clara e calou sua harmonia.
Floresceu, sem cessar, todo um verão
na árvore obstinada, noite e dia,
e se soube futura doação
diante do espaço que o acolhia.
E quando, enfim, se arredondou, oval,
na plenitude de sua alegria,
dentro da mesma casca que o encobria
volveu ao centro original.


Rainer Marie Rilke(Tradução: Augusto de Campos) lido aqui





segunda-feira, 18 de junho de 2012

Ácidos e Óxidos - um poema de Ruy Belo


ÁCIDOS E ÓXIDOS
É uma coisa estranha este verão
E no entanto ia jurar que estive aqui
Não me dói nada, não. A tia como está?
Claro que vale a pena, por que não?
Sim, sou eu, devo sem dúvida ser eu
Podem contar comigo, eu tenho uma doutrina
Não é bonito o mar, as ondas, tudo isto?
Até já soube formas de o dizer de outra maneira
Há coisas importantes, umas mais que outras
Basta limpar os pés alheios à entrada
e só mandarmos nós neste templo de nada
E o orgulho é a nossa verdadeira casa
Nesta altura do ano quando o vento sopra
sobre os nossos dias, sabes quem gostava de ser?
Não, cargos ou honras não. Um simples gato ao sol,
talvez uma maneira ou um sentido para as coisas

Ó dias encobertos de verão do meu país perdido
mais certos do que o sol consumido nos charcos no inverno,
estas ou outras formas de morrermos dia a dia
como quem cumpre escrupulosamente o seu horário de trabalho
Não eras tu, nem isto, nem aqui. Mas está bem,
estou pelos ajustes porque sei que não há mais
Pode ser que me engane, pode ser que seja eu
e no entanto estou de pé, rebolo-me no sol,
sou filho desta terra e vou fazendo anos
pois não se pode estar sem fazer nada
Curriculum atestado testemunho opinião…
que importa, se o verão é mesmo uma certa estação?
Escolhe inscreve-te pertence, não concordas
que há cores mais bonitas do que outras?
Sou homem de palavra e hei-de cumprir tudo
hão-de encontrar coerência em cada gesto meu
Ser isto e não aquilo, amar perdidamente
alguém alguma coisa as cláusulas do pacto
Isto ou aquilo, ou ele ou eu, sem mais hesitações
Estar aqui no verão não é tomar uma atitude?
A mínima palavra não será como prestar
em certo tipo de papel qualquer declaração?
Há fórmulas, bem sei, e é preciso respeitá-las
como o gato que cumpre o seu devido sol
São horas, vamos lá, sorri, já as primeiras chuvas
levam ou lavam corpos caras
Sabemos que podemos bem contar contigo em tudo
Amanhã, neste lugar, sob este sol
e de aqui a um ano? Combinado
Não achas que a esplanada é uma pequena pátria
a que somos fiéis? Sentamo-nos aqui como quem nasce
Será verdade que não tens ninguém?
Onde é o teu refúgio, ó sítio de silêncio
e sofrimento indivisível? É necessário
Vais assim. Falam de ti e ficas nas palavras
fixo, imóvel, dito para sempre, reduzido
a um número. Curriculum cadastro vizinhança
Acreditas no verão? Terás licença? Diz-me:
seria isto, nada mais que isto?
Tens um nome, bem sei. Se é ele que te reduz,
aí é o inferno e não achas saída
Precário, provisório, é o teu nome
Lobos de sono atrás de ti nesses dez anos
que nunca conseguiste e muito menos hoje
Espingardas e uivos e regressos, um regaço
redondo – o único verdadeiro espaço, o
sabor de não estar só, natal antigo,
o sol de inverno sobre as águas, tudo novo,
a inspecção minuciosa de pauis, de cômoros, marachas
Viste noites e dias, estações, partidas
E tão terrível tudo, porque tudo
trazia no princípio o fim de tudo
A morte é a promessa: estar todo num lugar,
permanecer na transparência rápida do ser
E perguntar será para ti responder

Simples questão de tempo és e a certas circunstâncias de lugar
circunscreves o corpo. Sentas-te, levantas-te
e o sol bate por vezes nessa fronte aonde o pensamento
– que ao dominar-te deixa que domines – mora
Estás e nunca estás e o vento vem e vergas
e há também a chuva e por vezes molhas-te,
aceitas servidões quotidianas, vais de aqui para ali,
animas-te, esmoreces, há os outros, morres
Mas quando foi? Aonde te doía? Dividias-te
entre o fim do verão e a renda da casa
Que fica dos teus passos dados e perdidos?
Horário de trabalho, uma família, o telefone, a carta,
o riso que resulta de seres vítima de olhares
Que resto dás? Ou porventura deixas algum rasto?
E assim e assado sofro tanto tempo gasto

[in Todos os Poemas, Assírio & Alvim, 3.ª edição, 2009]

domingo, 17 de junho de 2012

o teu ombro nu


                                          Salvador Dali 1925

leio as notícias na mesa de perna bamba, no princípio da tarde de um sábado.
um copo oscila e um prato bate. faz ruído
enquanto recordo o teu nome, os teus olhos tímidos
a tua curva do pescoço
o teu modo doce –

as notícias são iguais a um futebol de letras que muitos jogam melhor
ali mais para a esquerda, ali mesmo ao centro, à direita, que ninguém vê
e ninguém compreende que há uma mesa 
de perna manca, almofadada, para que não se ouça o som
do euro, do dólar e da libra, onde,  por debaixo  se faz silêncio
e se trocam com cuidado moedas e cassetes, discos e envelopes
com um assentimento dos olhos com a participação das mãos –

guardam segredos numa bolsa de contradições
e oposições,  a antítese do sonho, porque por debaixo da mesa se faz o jogo
um jogo de árbitros de fruta podre  e de marcações
um vício, digo, inútil para a alma, mas imenso para o umbigo –

e é tão cansativo este lamaçal –

mas guardo o jornal, dobro-o todo, arrumo-o na saca
como se levantasse uma mesa, como se dobrasse uma toalha que parece branca
mas está cheia de nódoas, de um vinho falso, de umas migalhas de aço
de um riso gasto de espiões de caras quadradas, de testas de ferro –

guardo todas as notícias na saca plástica, e fecho  os olhos
para seguir ao sul, à cor mais azul, até ás casas brancas caiadas de cal
com terraços árabes para secarem figos para trazerem mel
e penso em ti, no teu rosto e nos teus lábios molhados de chá egípcio
nos teus pulsos de veias finas e pulseiras de cores argentinas -


pergunto-me onde está a trança, ao centro ou em que ombro?
suponho que usas o vestido branco e que subiste acima à varanda.
vês provavelmente os telhados, ao fundo o mar.  e é a hora inapropriada da radiação.
mas protejo-te, deixa subir o sangue, crescer a tonalidade vermelha
afinal é quase verão e os deuses exigem atenção:  as tuas pálpebras
o ângulo recto dos  joelhos, os pés descalços nos azulejos
sentada na cadeira e sem a mesa, escutando a sesta e o silêncio próximo –

não te mexas, abre as mãos como quem espera uma carta ou um poema
 espera mais um segundo
pergunto ao vento se me leva, junto do teu ombro

os lábios –



josé ferreira

sexta-feira, 15 de junho de 2012

a arte de um soneto de Alexandre O'Neill


                          imagem daqui
Quatorze versos

No primeiro é assim: fica de parte.
No segundo já posso prometer
que no terceiro vai haver mais arte.
Mas afinal não houve... Que fazer?


Melhor será calar, pois que dizer
nem no sexto conseguirei destarte.
Os acentos errados é favor não ver;
nem os versos errados, que também sei hacer...


Ó nono verso por que vais embora
sem que eu te sublime neste décimo?
Ao décimo primeiro dediquei uma hora.


Errei-o. Mas que importa se a poesia,
mesmo que não o errasse, já não vinha?
É este o último e, como os outros, péssimo...


Alexandre O'Neill, in Poesias Completas 1951/1986 lido aqui

quinta-feira, 14 de junho de 2012

as janelas são vidros que iluminam


                                   fotografia de Alexandra Klemm

as janelas são vidros que iluminam. as janelas são uma companhia
em muitos  quadrados pequenos ou de uma só folha sem esquadria
e sem fragmentos nas faces límpidas.
e as janelas têm diferenças
as diferenças de fora e as diferenças de dentro
na distância das areias com que se amalgama o vidro –

as janelas abrem-se na claridade e no escuro
têm boas chamas, fogueiras lentas,  cinzas nas malhas do vento
e a reinvenção do espírito, a alma pura que não fala
a que se sente
na superfície transparente de silêncios –

e depois nas janelas também há o redondo
o círculo de um homem de Vitrúvio
a centrifugação de um mundo
um mundo de outros e único –

as janelas giram entre os latifúndios de um horizonte
e os pés de uma bailarina, de um bailarino
numa dança contínua
um equilíbrio
o ponto de alavanca de uma Grécia antiga
para levantar as asas e ser mais leve que a molécula de oxigénio
na densidade mais profunda –

essa possibilidade apenas existe
quando os olhos sorriem nos olhos dos outros
nos lábios dos outros, nos ombros dos outros
nos dedos dos outros, na pele dos outros
nos cabelos dos outros, na cabeça dos outros
nos pés dos outros
quando caminham –

nunca somos únicos e somos sempre únicos
este o maior paradoxo que existe,  
em cada célula orgânica
do dinossauro ao ser mais ínfimo
e a importância é o conjunto, não a ilha –

a ilha é a maior das mentiras porque há sempre terra e raízes;
uma atlântida, um triângulo das bermudas
uma palmeira e um coco de casca dura
uma rosa e os espinhos
uma música e um ruído
um cronómetro de sentidos  –

a ilha é uma mentira, a maior de todas as mentiras
porque esconde um continente
na superfície líquida
um continente que cresce todos os dias
como as janelas, as janelas e os vidros que iluminam –


 josé ferreira 

quarta-feira, 13 de junho de 2012

um soneto de Rimbaud



lá ia eu, de dedos nos bolsos abertos; 

o meu paletó tornava-se assim ideal; 
caminhava debaixo do céu, Musa! era o teu servo; 
Oh! mas que amores esplêndidos eu sonhava!

as minhas únicas calças estavam rotas. 
era o Pequeno Polegar sonhador, com um sonho à volta 
e criava rimas. o meu albergue era a Ursa Maior. 
as minhas estrelas do céu exalavam aromas e escutava,


sentado na borda das estradas, os bons fins de tarde 
de Setembro quando sentia as gotas, 
gotas rosadas na minha fronte, como um vinho forte; 

onde numa chuva de rimas e no meio de sombras fantásticas, 
das cordas de liras, tirava os elásticos, 
libertava os meus pés magoados, e colocava-os perto do coração -

Arthur Rimbaud (tentativa de tradução minha, o original pode ser lido aqui)

terça-feira, 12 de junho de 2012

os pés estão descalços, a pele é fina
























os pés estão descalços, a pele é fina:
skin against skin.
será mais suave o caminhar pelos caminhos
mais de terra, menos de pedras e de asfalto que não ferve.
o asfalto  é plano e negro,  sem azul  e sem descoberta -

os pés estão descalços, a pele é fina:
skin against skin.
será mais suave a escolha de um caminho, fios unidos.
fios de seda como linhas de um tecido:
que se tece e é tecido pelo sol, pela lua e pelas brisas
um tecido de sentidos –

os pés estão descalços, a pele é fina:
skin against skin
a simbiose de cor como o velame das orquídeas
mais de terra, mais de árvores
e de raízes  –

 josé ferreira

sábado, 9 de junho de 2012

poema de uma tarde de junho





















há este hábito de esperar os versos.
quando chegam tiro-lhes a capa molhada de uma chuva de junho
espreito a brancura dos ombros
coloco a mão na nuca para que descansem de uma viagem de mil anos
com ternura
para que soltem os cabelos

e de mão na cintura danço com eles –

josé ferreira

sexta-feira, 8 de junho de 2012

poema em cinco movimentos sobre uma fotografia



 I
escrevi dois poemas, hoje
na esperança de surpreender o teu corpo em contraluz
na luz da janela, tocando a cortina.
ao longe o rio é um murmúrio muito lento, as searas estão sossegadas.
respira-se a densidade verde.
na mesa um  prato de porcelana, um  círculo de ouro
os restos dos últimos biscoitos
 incompletos,  de uma forma imaginária, surpreendidos
e testemunhas  
em migalhas pequenas, nas pontas dos  dedos, uma  a uma –

II
escrevi  os poemas por este momento.
não te movas, quero o tempo parado, pause.
 suspenso, como numa fotografia , um fragmento
e a melodia, a música dentro da cabeça  e uma cúpula de cisnes
um céu azul mas diferente na luz branca da cortinas –

III
o teu corpo é um poema, um mar em movimento.
não te posso explicar o meu ritmo, o batimento do mercúrio
sei que a pulsação é de perigo, sei que  bateu
bateu muito como uma campainha
as têmporas, os ouvidos
a explosão dos sentidos –


IV
se voltares junto da janela branca e da cortina
em contraluz
e olhares de uma forma longa
do lado oeste, quando o rio descreve a curva mais abrupta 
como um cotovelo, junto do bosque da tigelinha, no lugar do monge
a esconder-se e  a descer
num brilho reflectido surge, na inclinação mais forte
um lago enorme de ondas, uma imensidão infinita
um corpo enorme com mãos gigantes que recebe as águas doces
as águas de um rio -

V
levamos as bicicletas pelo caminho das hortas
junto da represa onde as rãs saltam, onde há vespas e asas grandes de borboletas.
na descida mais abrupta colocamos velas brancas e sopramos
sopramos muito com bochechas de renascimento, para chegar depressa.
para descer sem medo a escada das baías
 até ao pátio fluido das areias, a serenidade das brisas –

haverá o crepúsculo das roupas molhadas, o banho múltiplo
e ao voltarmos com pedaços de mica e restos de algas
as bicicletas ficarão inanimadas com as borrachas limpas
numa relva crescida
e entraremos em casa com uma alma sem vícios
sem joelhos duros  e de mãos macias
para lavar o sal e adormecer na luz dos vaga-lumes
intermitentes, na respiração dos troncos e cheios de raízes
pousados, muito quietos e juntos –


 josé ferreira

quinta-feira, 7 de junho de 2012

com as letras todas nas margens de um rio




escrevo-te de novo com as letras todas e as rugas nos olhos
de piscarem sombras
e afastadas para longe
 para um lugar sem retorno, distante –

coloca o rosto no meu ombro,
como um sossego imprevisto de uma baía
ou de uma margem revestida de arbustos verdes
quando os rios são um privilégio sem inocência
somos crescidos
e mergulha nessa profundidade fresca como num mistério
de segredos e significados de rendas, um afecto de búzios
uma memória de outros tempos mas com sentido, filtrada
tornada mais fina, mais de linhas, mais de linho, mais de almofadas e companhia
e de tempos parados olhando uma pulseira de  cores ou um céu de arco-íris
mais de momentos tranquilos, digo, e uma música de fundo
um intervalo sem vírgulas, sem soluços, sem lágrimas e sem mentiras –

mas não tremas
não tremas, nem no sorriso
o sorriso quando treme e como a queda de um hemisfério
a incompletude dos dias –

josé ferreira

quarta-feira, 6 de junho de 2012

A um ritmo certo, na parede branca


                                           

                                  Ludvik Glazer-Naudé        


As fotografias  passavam como diapositivos.
A um ritmo certo, numa parede branca.
Ali um barco, ali um pássaro, ali uma árvore
Ali um ombro.
A um ritmo certo que passava na parede branca.
Ali os olhos, na metade de um espelho.
Ali um braço, ali uma unha pintada de vermelho.
Ali um pé pousado numa sabrina plana.
Ali uma brisa de platina e os cabelos ao vento.

A um ritmo certo na parede branca.

josé ferreira 6 Junho 2012

terça-feira, 5 de junho de 2012

Sento-me então a olhar o rio





                                           Roland Gerth 


Sento-me então a olhar o rio, 
os meus pensamentos formam cardumes 
que contra a corrente se insurgem 
mas as águas são inexoráveis; 
olhando-as, a superfície cintila, 
propaga-se como se fossem notas 
de um piano na garupa de um cavalo 
que se dirige para o mar. 
O rio bebe as cores da cidade, 
sobre elas eu abro o coração 
em que te encontras, as colinas 
emolduram as raízes que à terra
nos ligam. Para os meus olhos 
é um momento de pausa: as coisas 
que interrogo não resistem à maré,
não dão respostas; perdem-se no mar 
como tudo o que a memória não reteve. 
Mas este rio 
já foi longamente folheado, nele 
escrevemos o romance de amor 
que nos deu uma casa, 
nos cortou o cabelo, nos afastou 
das rugas, nos entregou o azul 
(tecido, nuvem, divã, janela...) 
o voo das artérias, lugar do corpo, 
portas que nos amanhecem, espelho 
onde fazemos fluir a vida. Acordes 
da guitarra que forja o horizonte, 
que guia o sinuoso voo das gaivotas 
e acaricia a pele que rasga atalhos 
no interior dos sonhos. Estarei 
vivo enquanto me guardar 
teu coração. E no seu lucilar, 
esta água imita o fogo 
que devora sombras e escombros, 
libertando a asa que no sangue 
respira. A foz está próxima, 
mas o horizonte é o teu olhar. 
No leitor do carro, a guitarra flexível 
sublinha o que divago; os acordes 
disparam, 
encontram-me na trajectória do seu alvo.


Egito Gonçalves In A FERIDA AMÁVEL , Campo das Letras, 2000

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Intervalo



                                      Lillian Bassman


Faço um intervalo porque a boca se fechou
num silêncio de silício, uma campânula de vidro
imerso e sem imagens, e foi um dia de domingo –

Um caderno permanece aberto de notas dispersas sobre números
Um quotidiano, uma utilidade que não fala, nem mexe, nem merece.
Melhor assim o silêncio –

Faço um intervalo porque penso nos teus braços
Nos teus olhos, abrindo um sorriso
Nos teus modos tímidos
Na tuas palavras  sopradas pelos lábios
Nos teus ombros típicos:
Uma alça presa e a pele à mostra –

Faço um intervalo pelo rio grande imaginário
Com um chapéu de palha e um barco
Uma viola cheia de cordas dentro das mãos
Na posição de sol e por cima do teu colo –

O barco desliza na divisão perfeita de uma linha
Pela grafite de um compasso  e a meio do rio
E podia ser uma gôndola  de dias quentes
De profundidades ilíquidas, lentamente e sem a mente
Nos labirintos e nas ilações de rumos –

Faço um intervalo e penso na transparência de um horizonte
Em dias diferentes
O caminhar dos dedos como se corressem
E transpirassem e batessem num ritmo de músculo
Num íman de sede, numa entrega de tudo
Uma promessa de mundo –

Faço um intervalo porque é importante o sonho
E não creio nos demónios que calcinam a alma, como pedras
Demónios que atordoam e fazem perder os sentidos –

Acredito na cor das brisas e seguro as velas nos dias difíceis
Porque há muitos momentos na vida:
A distância de um oceano e a diferença do frio
A proximidade numa mesma cidade tornada longínqua
E o habitar da possibilidade como dizia Dickinson –

 josé ferreira 4 Junho de 2012

domingo, 3 de junho de 2012

O vagar


O vagar do que dizia soava ao escorrer do azeite, no lagar da ainda aldeia. No entanto, não morrera ele no chão, onde caíram as azeitonas deixadas. As que não se apanharam deram-se à terra. E ele ficou, com quem ficou, mas foi como azeite entornado fora de prato. Aceitou, mesmo depois de entender, até ao fim. É isso o que mais lamento.
Quase incógnito, impotente, como tantas mulheres de todos os tempos, e na inversão de papéis, mesmo assim, quando disse que não, foi não. Essas poucas ocasiões foram poucas demais, mas há quem se lembre.
Os tempos de hoje são parecidos aos dele em muitos lugares, é isso que me surpreende muitas vezes.
E se tudo pode mudar, deu o aviso, o que não muda. E o vagar do que dizia soa ainda como azeite, verde, velho, sensato, e a tempo, mesmo que ele morto. Morreu fora de casa e fora de terra. No entanto, ironicamente, ficou a esperança nesse aviso, e também tanto a agradecer. 
Anabela Couto Brasinha