quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

assim fechados tão perto do meu rosto


André Kertész


assim fechados tão perto do meu rosto, aos teus lábios
não os quero nunca
coloca-lhe rosas e perfumes de oriente
fumos divagantes, sopros sibilantes
subtilezas múltiplas de mente
porque aos teus lábios assim fechados, sem beleza
não os quero nunca

disse-lhe olhando o ponto fixo no canto da mesa
não desviando o olhar. tremia um pouco.

ao inclinar o oblíquo rosto
os olhos molharam-se na frente daquele lago
sem expressão, parado, como quem aguarda
o fim de um acto, o fim de uma cena
pediu perdão, desculpou-se com a pressão
o stress de uma última reunião
e repetiu de modo diferente. tremia um pouco.
aos teus lábios quero-os sempre, quero-os sempre.

serviu-se dos sons da alma e escreveu-lhe um poema
em caligrafia cuidada, larga e absorvida pela textura branca
um guardanapo, um novo vulcão reaberto de nova lava
que deslizava, que queimava como um espelho de raios
de um rio importante, muito longo, de verdes margens.

duas semanas passadas, chove uma chuva gelada.
cinco folhas permanecem espalhadas pelo quarto.
a chama de uma pequena vela amplificada em círio, oscila.
as sombras movimentam-se sem ordem, é inverno.
as moscas não voam, a janela tem as cortinas fechadas.
vertical, olhando os quadros cegos nas paredes
fervendo, tremendo, soltou no ar as palavras, um eco imenso
por todo o lado, por todo o lado

aos teus lábios abertos de palavras duras
não os quero nunca

aos teus lábios abertos e combustíveis de palavras puras
quero-os sempre quero-os sempre

e rodava no eixo pesado dos pés como se preso
na rotação inexacta de uma estrela, rubro, ardente

nunca sempre nunca sempre nunca sempre -

O amor é uma companhia


Guy Bourdin

V

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.

Alberto Caeiro