terça-feira, 25 de maio de 2010

Sem

Em cada morte há uma ausência eterna
Um vazio irrepreensível, silencioso e cheio
Em cada morte há uma luz que se perde
Um grito que se silencia na carne

Não há sentido na ausência
Não há corpo na memoria física

Olho o corpo frio, sem cor
Já não sei onde estás -

O luto é uma treva transitória
Tatuagem na mente e na pele
Uma luta vã pelo que já foi
Apesar da vida que fica

A saudade permanece
Morta-viva sem (a)braços

Há algo vivo nesta morte ainda viva em mim
Há algo de morte que me impregna os sentidos
Adormecidos de dor

Sentidos sem-abrigo
Sem o teu - abrigo

despir o poema



Salvador Dali "livro-árvore"

despir o poema em intervalos longos
cortar as sílabas, uma a uma, nos dedos de cada verso
e do avesso e não só por cima da mesa onde a folha
o sonho de um rumor que desliza.

despir o poema daquelas palavras que nasceram dos antípodas
clareando, na procura do que deveria ter sido a nudez pura
de Cleópatra e dos papiros, a branquidão de vestes, as letras
na magnitude de hieróglifos nas Pirâmides das paredes do Egipto.

despir o poema no exagero de te querer
como se ali os lábios abrindo o sono
os sons saindo, as roupas caindo
e não ser só o poema mas mais o desejo
de tocar a Génese, alimentar a semente
a terra e a tiara, de diamantes loucos
que serpenteiam nas ondas de um fumo rubro

e um som branco de alaúde -

O pior está para vir




Ajuda a garantir a descontinuidade da espécie.
Usa a paixão em todos os pontos finais
e lava sempre a tuas vírgulas com água e filosofia.
Veste-te ocasionalmente de príncipe.
Pelo menos duas a três vezes por semana
diz a Camila que a amas com frequência
e sentido funesto.
Não uses o W.C. destinado ao pensamento
a não ser que tenha mesmo de ser
e não haja gente viva num raio de uma vida
e 300 milhas para oeste.
Se te apetecer algo para comer
esquece a vizinha da frente
até porque essa já tem um marido
a pilhas e sete gatos para dar de comer
e o vírus da moda e as mucosas tristes.
Volta-te antes para Pessoa ou Baudelaire
dá uma volta por Benedetti, visita Borges
na cegueira de uma biblioteca antiquíssima,
os clássicos fazem-te calar
e tornam a fome mais subjectiva,
comestível até,
como uma lepra lenta e autotélica.
E depois reaparece. Todos desejam alguém
que surja das cinzas.
Mas não prepares uma ressurreição qualquer,
dessas que se compram na iconografia do previsível,
aberta vinte e quatro horas por dia,
entre o espancamento e o cúmulo da reacção.
Faz a vontade do pai e ao país: foge deles.
Mata-os a cada microsegundo com mais decepção,
dedos, dardos e gasolina
mas nunca o bastante
para que eles não se possam mexer,
pelo menos um pouco, da influência para cima.
E deita-te com a literatura toda aos teus pés,
porque entre centro e ausência
o pior está para vir.