quarta-feira, 18 de novembro de 2009

solta-se a fera

solta-se a fera
na arena da vida
o círculo do circo
começa ao nascer

a pele derrete
perde identidade
ao ser violada
com o ferro em fogo
estigma como amante
no escuro de cada sol posto

brilham os fios de prata
automatizam os movimentos
rebanhos humanos
sem pensar
fantoches manipulados
sem querer

tão pouco de ti
quase nada de ti
debaixo de comando
sempre
controlado por dentro
em hierarquias patentes

fiel depósito
de corvos negros em ferida
de pesadelos
de medos

impulso dado pelo estribo
entram na jaula
e brilham os fios de ouro
esvoaçam querendo fugir

mas tu fechaste-os
dentro de ti
vestindo-os como uma pele

nos teus olhos fundos
já não há alma
globos brancos sem menina

és besta encurralada
nas arestas da existência

és instinto
sobrevivência

o círculo fecha-se
a fera solta-se
na arena da morte

- de pulso

baloiço um pouco acima da terra
ao gozo do voo do pêndulo,
nos segundos só inverto
ou troco de vestido
entre (tanto) balanço
e dou mais lanço

Joana Espain

Trago em mim

[«Um psiquiatra perturbado, um muçulmano devoto»;
«Eu não sou eu nem sou o outro»]


Trago em mim
as almas do passado
E nem sequer as lembro

surgem-me às vezes
nítidas como palavras
espessas como sangue
ganham vulto no discurso
a que desconheço o berço
sussuram-me às vezes
o poema como água pura.

Obedeço a medo do que sou –
Como se fosse outros
ouço-me nas correntes
que transporto.

E sonho o reencontro.

2009.11.18
José Almeida da Silva

(Des)inspiração

Andei a manhã toda pela cidade.
Entrei e saí vezes sem conta
De casas de comércio adiado –
Quis desistir mas já não tenho idade –
A procurar metáforas e hipérboles
Imagens e antíteses, oxímoros e quiasmos:
– Não temos, era a resposta pronta,
E eu pensava, mas aonde se meteram
Agora todas essas figuronas tontas?
Não creio que tenham ido para o Brasil,
A viagem é cara, e já não há pilim.

Nas casas de comércio ofereciam-me
– Era só o que tinham em stock – vírgulas,
Pontos, telas e agulhas de croché,
Os fios tinham esgotado e não tinham
Palavras disponíveis no mercado
E não sabiam aonde ir encomendá-las –
Era denso o nevoeiro. Sim, o mesmo nevoeiro
Com que a noite inteira me tinha debatido
Quando quis escrever e o travesseiro
Me usurpou as poucas ideias que ainda tinha,
Trouxera-as da guerra em 73 da longínqua Cabinda.

Andei a manhã toda pela cidade. E quase ao meio-dia
Dei de caras com as palavras que então procurava:
Estonteadas e em desequilíbrio precipitaram-se
No abismo. E eu sem cordas para poder içá-las
E nem um só fio para as entrelaçar – um mar opaco
Para desvendar, e eu sem Barco, sem Remos, sem Luar.
2009.11.15


Haikai

Denso o nevoeiro
O longe sem horizonte
– Sem boieiro a fonte.

José Almeida da Silva

(des)inspiraç

(des)inspiração de chuva.

E sento-me em divagações lacónicas
prostrações canónicas
e ausências de ti.
Inspiro -
e sorrio se transpiro -
se por acaso de luas
ou sintaxes do destino
se abriram outras gavetas
e em tecido
(ou meias pretas)
me surgi.
Sonhei-te algures por aí.

Amanheci.
E em sombras vãs,
horas despidas,
perdi-te as linhas de insónias
em estruturas mal cosidas.
Expiro -
e as palavras em retiro.
Se acaso não for de luas
então de uvas ou de amoras
que eu espero em curtas demoras
e cruéis morfologias.
E partias
sem conceitos ou estruturas
em versos de chuvas amenas
e tardes de luz.
Por fim deserta.

E anoiteceu na casa do poeta.

Inês Beires