segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Não se esqueça de mim!

Embora não sendo poesia, há poesia e muita emoção neste texto, nesta memória, que partilho convosco.

«Quando eu morrer não se esqueça de mim». A memória esvai-se. Quero-me lembrar da expressão, do sorriso límpido, de uma beleza despovoada como o deserto. Da tua juventude. Não tinhas vinte anos, isso é seguro. «Não se esqueça de mim!» Lembro-me da combina: «Só quero durar até ao Natal». Porquê o Natal, Deus meu? Tu que irias ter com os anjos todos os dias, e contar coisas da Terra e dos homens, tu que fazes já parte do paraíso e sempre fizeste. «Até ao Natal, doutor», depois pare as torneirinhas que regam as minhas veias, tentando manter o verde da vida, das plan­tas com viço que no meu jardim, à míngua de seiva, soluçam em tons de castanho. «Não se esqueça de mim». Não me esqueço de ti meu menino Jesus feito menina. Tu só querias viver até ao dia em que nasceu aquele que dá sentido às coisas. Porquê meu Deus? Cumpri a minha parte e tu cumpriste a tua. Não mais qui­mioterapia depois do Natal, só a tranquilidade dos que têm fé e sobem, devagarinho, perante nós. «Não se esqueça de mim». Como te posso esquecer? És só uma voz, uma esperança, um fio de coragem, coisa pequena, apenas regato. E no entanto, amo-te como a uma visão, uma miragem que deixasse uma marca de pri­vilégio por ter tocado a tua mão. Tenho a memória exacta do can­cro. Começava no pescoço. Devagarinho subia através da nuca, silencioso, determinado como fera no capim. Penetrava o osso, abria o embrulho que esconde e protege a tua alma, e em tons de branco e cinzento, devagarinho, corroía o cérebro. Primeiro encostou-se, depois embuste, como erva daninha, começou a ali­mentar-se do teu sangue, sorveu a tua vida, entrou sem pedir licença. Conheci-te porque ao tocar o teu íntimo, a doença, cal­cula, fazia-te ver estrelas. Pequeninas, brilhantes e fugazes. Estra­nhas, contudo, porque surgiam durante o dia. «Doutor, não se esqueça de mim». Não me esqueço, nem do remorso pela pirueta de artista amestrado que se enche de orgulho pelo diagnóstico certeiro, ainda que seja o de uma flecha implacável que marca o destino. As estrelas que vê, minha querida, não habitam o céu, são fogo de artifício da doença que a consome. Coisa estranha a epilepsia. O cérebro invadido cria por momentos a ilusão de um firmamento. Eu vou tratá-la, quero dizer, trazer as estrelas à terra e apagá-las com um sopro. Como velas em dia de anos. Ao mesmo tempo, minha querida, apagar a ilusão. Eu próprio bate­rei palmas ao golpe de mágica que faz desaparecer as estrelas como te afastasse, te adiasse o Céu que no fundo desejavas. «Até ao Natal, doutor, e depois, não se esqueça de mim».Agora, onde estiveres, de certeza que há Mar. Brincas com o Menino Jesus que querias conhecer, a cuja festa de anos não que­rias faltar, menina que espera o nascimento do irmão. Escavam na areia crateras que a maré enche. Ouvem o adeus das ondas e sentem o abraço do seu retorno. De certeza que discorrem sobre coisas de somenos importância, quem sabe disputam pás e anci­nhos, clamando pela Nossa Senhora que ponha ordem naquela disputa. Estou certo que levaste a melhor, e o menino Jesus, a cujos anos não querias faltar, faz carranca e beicinho. Nossa Senhora irá decerto lembrar a generosidade que é necessário te: com quem se convida para os anos.» Deixa a menina brincar». «Só até ao Natal, doutor, e não se esqueça de mim». Não te esqueças tu de mim. Onde estás lembra-te de que cumpri a minha parte, lutei contra a besta que te consumia e de mim te apartava, apa­guei as luzes que pareciam estrelas e criei a ilusão de adiar a eternidade. Como se fosse possível, meu Deus, haver vida para além do Natal.

Nuno Lobo Antunes, in Sinto Muito

Al di la


Al di la

Para além das luzes do pinheiro de Natal
Para além dos fios das cabeleiras de prata
Para além da chama que sobe no castiçal
E do brilho dos cristais das bolas em cascata

Para além do aroma dos sonhos e doçuras
Para além da melodia que entoa o disco antigo
Para além das renas sobrevoando nas gravuras
E do esquecimento e do gesto a um amigo

Para além da esperança deslizando no telhado
Para além do segredo do presente embrulhado
Magia, recordação, noite sem igual

Para além da saudade etérea e infinita
Para além da carta que deixaste escrita
Que seja hoje e sempre Natal

Pi

Natal, e não Dezembro

Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
Das mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.

David Mourão-Ferreira (Lisboa, 1927-1996)
Cancioneiro de Natal

Natal

Leio o teu nome
Na página da noite:
Menino Deus...
E fico a meditar
No milagre dobrado
De ser Deus e menino.
Em Deus não acredito.
Mas de ti como posso duvidar?
Todos os dias nascem
Meninos pobres em currais de gado.
Crianças que são ânsias alargadas
De horizontes pequenos.
Humanas alvoradas...
A divindade é o menos.

Miguel Torga (S. Martinho de Anta, Vila Real, 1907 - Coimbra, 1995)
S. Martinho de Anta, 24 de Dezembro de 1966