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No Inverno o rio transbordava, a chuva
e o sangue dos matadouros traziam-no
abundante desde a nascente. Não um rio
– disseram-me depois – um pequeno afluente
contido entre os muros das casas, vagando
a face impura dos campos e dos pátios, as artes
liquefeitas no clamor da intempérie
e os homens (essa voz
nidificada em cozinhas e colheitas, em papel
de paredes fechada, e apenas vagamente
familiar) abrindo caminho entre as águas
numa irmandade de súbito criada
à distância desamparada
de um eco
Como os séculos, os rios decorrem
sem culpa, com a estase do corvo pairando
O desastre nem sempre é distinto
dos vultos que brincam no gelo
e convergem, cúmplices, na inumana
paisagem
À revelia das mães, as crianças
desciam à rua para ver
o rio transbordar. O barro sem Deus
das bestas, a fluida forma
da morte tingia-lhes o calcanhar
e voltavam para casa
como os caçadores de Bruegel, o magro cadáver
da raposa ilustrando a culpa
doravante inscrita
em todos os postais de Natal