quarta-feira, 7 de março de 2012

A partir de "O Regresso dos Caçadores"




No Inverno o rio transbordava, a chuva
e o sangue dos matadouros traziam-no
abundante desde a nascente. Não um rio
– disseram-me depois – um pequeno afluente
contido entre os muros das casas, vagando
a face impura dos campos e dos pátios, as artes
liquefeitas no clamor da intempérie
e os homens (essa voz
nidificada em cozinhas e colheitas, em papel
de paredes fechada, e apenas vagamente
familiar) abrindo caminho entre as águas
numa irmandade de súbito criada
à distância desamparada
de um eco

Como os séculos, os rios decorrem
sem culpa, com a estase do corvo pairando
O desastre nem sempre é distinto
dos vultos que brincam no gelo
e convergem, cúmplices, na inumana
paisagem

À revelia das mães, as crianças
desciam à rua para ver
o rio transbordar. O barro sem Deus
das bestas, a fluida forma
da morte tingia-lhes o calcanhar
e voltavam para casa
como os caçadores de Bruegel, o magro cadáver
da raposa ilustrando a culpa
doravante inscrita
em todos os postais de Natal

águas de março



caíram três pedras de chuva sobre as folhas da mesa .
preocupa-me o teu olhar sobre a inconsistência
a minha a tua a de sempre.
preocupa-me a tristeza de portas fechadas
as que sentem –
tenho escrito menos palavras sossegadas
menos poemas de natureza
aqueles que se debruçam sobre jarras transparentes;
um ramo de tulipas amarelas, grandes, belas, ainda presas
nos seus corpos pendentes, como sol e sobremesas
brilhantes, luminosas, belas, grandes, amarelas, ainda presas
recolhidas num campo imaginário, um lugar de simbolismos
embora adquiridas num fim de tarde
entre a compra de quatro iogurtes e um vinho rouge
na loja útil de um supermercado -

caíram três pedras de chuva sobre as folhas dispersas
criando borbulhas de celulose, brancas
que se levantam e deformam as letras, armando-as de sal
amando-as, um pouco antes de serem de novo planas
de novo exactas e exaustas, na solidez do tampo –

caíram três pedras de chuva sobre as folhas agora âmbar.
há um oceano de silêncio e em nenhum bar soam músicas de blues
teclas de trompetes, vozes roucas de Armstrong , pianos de Casablanca –

e é março, e as águas murmuram nomes –

josé ferreira 6 de Março 2012