terça-feira, 1 de maio de 2012

Ciclo de vida do Poema


Nasce sobre o manto da poeira
Verso ante verso cria espaço
Ternos firmamentos a compasso
Desenha-se na lua a noite inteira

Cresce a entoar a estrela etérea
Canta ao universo imensidão
Luz a envolver tal escuridão
Pedaço infinito de matéria

Morre em leito lácteo ao avesso
O Poema ainda a nascer
Na Poesia como no viver
Há no fim o esboço de um começo.

a carta que te escrevo ( XIII )




escrevo-te esta carta para que a guardes
aberta sobre um qualquer lugar do quarto
em cima de uma pulseira, de um vestido ou de uma meia
para quando por lá passares por uma outra razão
a encontres por acaso
e com um sorriso nos braços
a coloques sobre o olhar dos cabelos
e entre as duas mãos e os dez dedos.
vou-te contar, começa assim:

tenho uma camisa azul clara, sem bolso e com um desenho bordado
pequeno, um cavalo de crina sobre o lado esquerdo
o lado mais apertado, este esquerdo que tanto bate.
as persianas estão corridas naquela dualidade de serem brancas e estar escuro
para que a manhã não rompa de raios, clara,  sobre as marcas da noite
um sono tardio de pecados que não se confessam a ninguém
só aos botões, desapertados pelos sonhos luminosos nesta carta e nestas letras
com o propósito bom de ser um voar sobre as margens, mais além
uma ponte romana de uma primeira construção
um avanço sobre as pedras estreitas, sobre os peixes que descem
sobre as borboletas que sobrevoam, sobre as lilbélulas que voam
sobre os reflexos dos choupos, dos pinheiros, das bétulas, dos plátanos
de todas as árvores, ramos, folhas ou flores de frutos num maio trabalhador –

são muitas palavras para dizer o desejo de ser
de ser o som de um despertador, um despertador diferente
que em vez de gente, desperta o intangível, de uma leveza e de um sossego –
se não houvessem paredes, nem janelas fechadas, nem quartos, nem casas
provavelmente habitaríamos uma choupana com uma cama de juncos e folhas
ou de um linho tecido de manualidades, certamente um outro lugar, autêntico
de um artesanato inventado pelas mãos
e não haveria portas
e se nessa choupana, não muito distante, morasse o mar
poderíamos ouvir os búzios, a toda a hora, e sem os chamar-

desculpa, começo a falar-te de uma camisa azul clara, de uma crina
e acabo a falar do mar, perco-me, dou voltas com o corpo numa articulação de vento
que me sopra de lado de dentro e me faz perder a direcção –

estás confortável? às vezes interrogo-me de como colocas as mãos e os braços
e de que forma me lês; com os cotovelos sobre a mesa
ou se estendida sobre o sofá, de lado, com o cabelo preso ou solto
numa trança ou em ondas
e sempre com os olhos grandes sobre as minhas pequenas letras
que se tornam enormes se te forem como a seda             
como um lenço de flores
sobre a fealdade dos medos e das sombras –
letras enormes sobre os perigos das ilhas, sobre os novelos sem história
sem agulhas que tecem camisolas, sem as primaveras  que se adoram –

adorar é uma boa palavra, uma palavra de essência
que nasce sem que as outras consigam explicar
adora-se o sol, o mar, as pedras roxas de um caminho, as carumas
as folhas de um salgueiro, mesmo o cheiro do eucalipto senão for em demasia
mas adorar como essência e como palavra inexplicável, implica mente e corpo
mãos e dedos e braços que se abraçam, memórias, ausências e presenças
saudades e permanência
adorar é querer mais do que a razão explicável –

adorar implica escrever cartas com letras emprestadas pelo céu
por um paraíso que junta no branco da lua
ou num crepúsculo que arde;
a febre sempre a febre a fronteira da sublimação –

mas chega de palavras, sim, palavras que ardem, uma fogueira permanente
no primeiro dia de Maio e a ser mais quente que um verão, chega de palavras
é tarde como os dias de inverno, é preciso que te acomodes no lugar onde estiveres
e que escutes um violão, o seu som, as suas cordas reboando sobre a madeira nobre
e exótica, uma a uma, dedilhadas pelo imã, pelo indicador, pelo baixo do polegar, devagar
para que a carta caia ao chão, das duas mãos, dos dez dedos, devagar
sobre o chão, quando da invasão do sossego, para quando adormeceres –

a concha e a pérola, o búzio e o mar, repito o som –
a concha e a pérola, o búzio e o mar, repito o som –
a concha e a pérola, o búzio e o mar, repito o som –

um dia azul, quando a manhã acordar.
tiro a camisa, o motivo e afago a crina, o pelo curto do pescoço
um tom mel de um cavalo lusitano
os meus olhos estão enormes de cansados
mas julgo que dormes –
vou guardar o resto das palavras
e abraço-te muito sem que estremeças –
boa noite, meu anjo, dorme bem, sobre uma onda de fenos –