quarta-feira, 22 de junho de 2011
a explicação do silêncio
Robert Doisneau
não saberia explicar o silêncio
o qual, no maior ruído absolutamente inaudível
não representava a desistência unívoca;
se de um lado um véu sem cor cobria as cortinas
do outro o deserto sem janelas e os raios fulminantes
fixavam ainda mais a frescura das palavras antigas;
a descer as nuvens, a percorrer planícies, a subir montanhas
e por fim, a seguir os rios pelos ombros comprimidos
até ao diminuir das ondas, o torná-las pequeninas;
tempos bons, tempos plenos, um mar liso -
não saberia explicar o silêncio
os dias eram os mesmos, gradualmente recuperando as margens de luz
nos passos que se arrastavam pelas sombras das árvores verdes
ou nas corridas forçadas por uma ordem, a mensagem, uma rotina de cidade;
a filosofia não explicava, não dava a anterior certeza da seta
de dias luminosos, permanecia a incerteza
e uma certa imobilidade ímpia, um céu escuro, de dia -
não saberia explicar o silêncio, o eclipse
quando o olhar se cruzasse de novo no preto e branco das fotografias
não saberia apagar o incêndio, os dias dolorosos de searas queimadas
dentro dos infinitos da pele irrigados nas artérias de versos
pelo lado de dentro, absolutamente imperceptível
exteriormente -
agia na transparência do rosto, suave no face a face;
um ligeiro levantar dos lábios, um sussurro sempre que alguém
uma palavra, sempre, uma frase mais completa e de sentido, sempre
quando alguém, alguma, ou mesmo uma chamada, do outro lado da linha
sempre, quando alguém se lhe dirigia e pretendia escutar o fim de um silêncio
tão calado, cronometrado no tic-tac ; um passo, dois passos.
por vezes imaginava, interiormente, um submundo de operários de Metrópolis
acertando as luzes nas múltiplas janelas dos prédios que invertiam os abismos
e reflectiam uma prosperidade oca de viadutos, estreitos, sem fim
verdadeiros labirintos mudos cortados pela força sonora dos violinos
dos metais, dos ruídos rufados de uma tumba de percussões
que invadiam as massas por entre danças hipnóticas nos destroços da máquina
enquanto o dilúvio ameaçava a barca dos últimos filhos -
não saberia explicar o silêncio, de mais um dia
uma multidão de tempo nos ponteiros da vida, minutos falecidos, gastos
sem qualquer substância, sem alimento entre o pensar e as mãos
sem um coração pelo meio que ditasse nos subúrbios da razão
o lugar das reticências, as gotas d’água sensíveis nos olhos irreflectidos -
não, não saberia nunca explicar o silêncio
nem a enorme força interior - a anterior chama ardente que iluminava os dias
seda, semente e nascente de tantas palavras que brotavam multifacetadas
surpreendentes, em muitas cores de tulipas, em esguias e humanas
estrelícias, palavras vaporizadas na delicadeza impregnada de bons perfumes,
de jacintos, de rosas laranja, de jasmins;
e por vezes as pálpebras caíam no sonho profundo de ter os pés elegantes
percorrendo as imperceptíveis marcas no soalho, deslocando-se pela sala
numa valsa, uma dança, de rosto direito e olhos brilhantes;
aquele desejo não realizado de decidirem qual o canto iniciático
e percorrerem um a um, rodando, rodando, rodando, todos os cantos
todos os outros cantos, esvoaçando e esvoaçantes.
não saberia explicar o silêncio
nem até quando -
surgiu de súbito uma ambulância branca de lâmpada acesa
em gritos de cruz vermelha, e todos os habitantes da rua
viraram a cabeça, rodopiando;
um táxi parou junto ao passeio e despejou uma senhora de lantejoulas
um mendigo exigiu a presença de um euro
uma criança de dois anos correu para uma Collie altiva
um carteiro de ar indeciso reviu o jogo observando as cartas
e entregou-as certas, duas para o 1º esquerdo, três para o 5º, à direita
a cidade em cada minuto apresentava um quadro, movimentava-se
mas mesmo assim, envolvido na massa
não saberia explicar o silêncio, a ausência
sentiu um manto de tristeza naquela hora de ponta -
primeiro a vibração móvel, depois a música de Viena
procurou, procurava, onde estava?
na montra da loja um cinema mudo de um noticiário
não era tarde, acertou o ritmo dos passos, quase voava
não sabia como, quase voava -
um carro travou de repente, um quase acidente
um som de flauta numa janela aberta repetiu uma estrofe de pauta
uma quase música
um casal de namorados abraçava-se e quase juntou os lábios
passou um autocarro de dois andares.
quase voava,quase voava, os pés apressados.
chegou. a campainha tocou.
a cortina de renda com o cisne do lago, oscilou.
uma cadeira de baloiço abandonada. alguém descia.
uma brisa amenizava o suor na camisa. sorria;
o primeiro dia de há muitos dias -
José Ferreira 21 Junho 2011
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