domingo, 31 de julho de 2011

a história de Shell por Leonard Cohen (II)




Abriu-lhe os olhos e sorriu-lhe a sua curiosidade. Ele levantou-se e dirigiu-se a ela.
- Queres vir comigo?
- Está bem.
- É quase noite.
....
Deram as mãos e desceram a colina a correr. Folhas quebradiças desfaziam-se debaixo dos seus pés, e procuraram montículos delas para calcarem. Depois, ficaram a ver o trânsito a passar a grande velocidade pela rampa lá em baixo, as luzes incontáveis dos automóveis.
...
O ar estava límpido, as estrelas, grandes. Mantiveram-se juntos e herdaram tudo.
- Tenho de me ir embora.
- Passa a noite acordada comigo! Vamos ao mercado do peixe. Há grandes monstros esplêndidos embalados em gelo. Há tartarugas, vivas, para os restaurantes famosos. Vamos salvar uma, escrever-lhe mensagens na carapaça e devolvê-la ao mar, Shell, concha. Ou então vamos ao mercado de legumes e verduras. Eles têm sacas vermelhas de cebolas que mais parecem pérolas.
...
- Eu amanhã trabalho.
- O que não tem nada que ver para o caso.
- Mas é melhor ir andando.

(excerto de um livro de Leonard Cohen)

a história de Shell por Leonard Cohen


Fotografia de Bert Stern

Limitava-se a ser adorada. Por alguma razão curiosa, lembrou-se de um certo vestido que usara quando andava na escola e desejou vagamente estar a usá-lo ou saber onde estava. Ele tinha a cabeça inclinada, estava a sorrir. "Está pronto para passar a noite toda a olhar para mim", pensou ela. Sem falar, sem perguntar nada. Tentou imaginar quem seria ele.
....
Apercebeu-se que, anos atrás, era exactamente assim que desejaria ser observada, com música, diante de uma janela, com a luz suavizada pela madeira antiga.

Em breve deixaria de conseguir distinguir as pedras do muro ou a vedação de ferro encostada aos arbustos. Os passeios eram de madrepérola e, apesar de ela não ser capaz de o ver, sabia que o sol estava a arrastar a escuridão à medida que se retirava por detrás das colinas de cristas rosadas de Nova Jérsia. Será que ele iria fitá-la para sempre?

Fechou os olhos, mas nem assim deixou de sentir os olhos dele. Tinha o poder de um elogio indefensável. Não dizia que ela era bonita, mas dizia-lhe para se deleitar na sua beleza, o que era mais compreensível e humano, e agradou-lhe contemplar o prazer que criava.

(excerto de um livro de Leonard Cohen)