quarta-feira, 31 de março de 2010

A bela adoecida




Uma mulher ama
as obrigações sujas
da sua igreja e adoece
por tempo indeterminado
numa instituição incompreensível
mas a sua doença, pelo contrário,
melhora a olhos vistos
na perspectiva do príncipe que a vê
da tremenda intolerância da Terra.

Uma mulher adoece onde o branco actua
de tal forma aflito e por toda a parte exigente
uma mulher adoece com um véu mal regulado
pelo veredicto da água surda que corre
da sua castidade extraterrestre
quase como cabelos
aperfeiçoados por enigmas
e pequenas famílias de serpentes
muito pouco verdadeiras

Uma mulher adoece até atingir
um estado suficientemente
adoecido. Depois uma mulher pára
de adoecer de repente:
quer subir na carreira de doente
e maltrata o meu perfil
com motivos pouco nítidos.

De príncipe e de louco
todos nós temos um pouco.
Mas eu não tinha tanto veneno
no beijo para te despertar
do teu desperdício
como te despertei
no dia em que eu próprio adoeci.

terça-feira, 30 de março de 2010

O homem que contempla


William Turner "uma cidade à beira de um rio com crepúsculo" 1833


Vejo que as tempestades vêm aí
pelas árvores que, à medida que os dias se tomam mornos,
batem nas minhas janelas assustadas
e ouço as distâncias dizerem coisas
que não sei suportar sem um amigo,
que não posso amar sem uma irmã.

E a tempestade rodopia, e transforma tudo,
atravessa a floresta e o tempo
e tudo parece sem idade:
a paisagem, como um verso do saltério,
é pujança, ardor, eternidade.

Que pequeno é aquilo contra que lutamos,
como é imenso, o que contra nós luta;
se nos deixássemos, como fazem as coisas,
assaltar assim pela grande tempestade, —
chegaríamos longe e seríamos anónimos.

Triunfamos sobre o que é Pequeno
e o próprio êxito torna-nos pequenos.
Nem o Eterno nem o Extraordinário
serão derrotados por nós.
Este é o anjo que aparecia
aos lutadores do Antigo Testamento:
quando os nervos dos seus adversários
na luta ficavam tensos e como metal,
sentia-os ele debaixo dos seus dedos
como cordas tocando profundas melodias.

Aquele que venceu este anjo
que tantas vezes renunciou à luta.
esse caminha erecto, justificado,
e sai grande daquela dura mão
que, como se o esculpisse, se estreitou à sua volta.
Os triunfos já não o tentam.
O seu crescimento é: ser o profundamente vencido
por algo cada vez maior.

Rainer Maria Rilke, in "O Livro das Imagens"
Tradução de Maria João Costa Pereira

Últimas vontades




Deixo-te uma indicação inquieta
e uma explicação concisa
sobre a forma como deves
vender a tua ausência
a mais ninguém.

Deixo-te um velho planeta bipolar
e maioritariamente triste nos trópicos
da decência
uma nação na bancarrota da sua pose
irresponsável perante o auxílio.

Deixo-te uma bússola e um pêndulo
completamente perdidos nos seus afazeres
domésticos e desprezíveis.
O pack inclui ainda uma venda de oxigénio
e um revólver compreensivo
que fará as vezes da minha vez.

Deixo-te o misterioso compasso que desenha
ângulos mortos nos desertos onde acaba o coração
e começa o âmbito da flecha que não atingiu
por pouco uma história mais simples.

Escrúpulos que não cabem na caixa
negra deste poema.

segunda-feira, 29 de março de 2010

penélope - a canção de primavera


Jonh William Waterhouse " a song of springtime" 1913

preso,penélope, preso
na memória dos teus seios
que em sonho abres qual cisne de lábios grossos
em dança branca na altura de dois braços.

luzes,penélope, luzes
nos faróis helenos de fogueiras nas muralhas
onde adormeço células de cordas tensas
no círculo veloz de sangue enfermo;
caminhante de desejo .

desconheço, penélope, desconheço
as invejas de helena, as fúrias de aquiles
só não gosto destes muros onde esmoreço
de espada à cinta, lassa, sem deslizes.

ainda,penélope, ainda
trabalham agulhas sobre as águas
na esperança de um barco à vela,
uma jangada, uma tábua colada de dedos
e o corpo, o corpo forte de ulisses.

resistes,penélope, resistes
e sei que um dia não serão só raios
sobre o ulmeiro de ítaca
nem só lágrimas de noite no destecer de tecidos.
a luz exacta de uma seta surgirá no teu pranto
e o fim dos pretendentes.

levaremos argus e o alaúde de ébano
voltaremos a visitar os campos -

O último andar

No último andar é mais bonito:
do último andar se vê o mar.
É lá que eu quero morar.

O último andar é muito longe:
custa-se muito a chegar.
Mas é lá que eu quero morar.

Todo o céu fica a noite inteira
sobre o último andar.
É lá que eu quero morar.

Quando faz lua, no terraço
fica todo o luar.
É lá que eu quero morar.

Os passarinhos lá se escondem
para ninguém os maltratar:
no último andar

De lá se avista o mundo inteiro:
tudo parece perto, no ar.
É lá que eu quero morar:

no último andar.


Cecília Meirelles (Rio de Janeiro, 1901-1964)

sexta-feira, 26 de março de 2010

Informações Úteis



Amar mata.
Amar puede matar.
Vietato amare.
Aimer peut entraîner
une mort lente et douloureuse.
Loving can cause male impotence.

Richelieu




por favor.por favor. não se importa

mar. tanto mar
o não limite errante num cerco de vento
nuvens e um sol tímido de gente.

muitos anos atrás um túnel escondido
nas linhas de um comboio e encostas de uma serra
época de generais e domínios de frança.
na arqueologia fugaz de fato e alfaiate
desceu escadas de ferro à luz da lanterna
acendeu filamentos dentro de uma capela
no meio de espíritos e nichos vazios;
antigo templo invisível sem nomes nem símbolos.

uma alta abóbada e três barras metálicas onde
porventura rendas, um crucifixo e talha dourada
em toda a volta um ruído de água em direcção ao rio.

desce.desce.sobe.sobe. quatro horas ao fim do dia
e o fim das pilhas. escuro. que susto. A mãe zangada
15 anos e quatro manchas de lama nas abas do casaco.

mar.tanto mar e um altar. A analogia do divino.

vem a propósito a existência dos anjos. Onde são?
vestem-se de branco?
será que se escondem atrás da linha do mar
num terraço plano de precipício onde
descansam asas e saltitam algodão?

a analogia. a entrada secreta de um túnel.
talvez exista uma porta naqueles arenitos mais míudos
uma porta de Alice
que abra uma saída.

de repente um céu húmido de castelos brancos.
um breve granizo. Um pouco de sol.
uma nuvem de asas grandes nas mãos de uma criança.
gaivotas debicam pepitas esfusiantes de milho.

na mesa mineral de um lugar seguro
interroga a possibilidade física de uma porta de mar
e o caminho qual será?

chega o empregado:

por favor. um café curto e um sumo de laranja natural
desculpe. por acaso não tem o público? O jornal?

imaginou um grande espaço branco e anjos
todos descalços, um pouco suspensos de asas
cabelos soltos e olhos de muitas cores, tizianos
na luz de auréolas, uma genética de néons
anunciada de trombetas solenes:
agora à sua direita something completely diferente!

pouco a pouco as gaivotas saíam.
incrível. as nuvens tão diminutas e o azul.
como mudou a atmosfera.
a palha entupiu numa pevide
e lembrou-se do Richelieu, o melro que fugia aos gatos
entre camélias rubras e azáleas claras, floridas, o tempo delas -

A falling love (epílogo e teorema)





I

O amor não é como Roma:
demora a cair.
Por isso, a volúpia é lenta
e o poema não nos ensina
o pára-quedas a tempo
nem que a queda
também ela é um objecto
passível de cair.

Demoradamente.

II

Porque repara: pode-se fazer tudo com o amor a cair.
Pode-se, inclusive, fazer amor com o amor a cair.

A neve, por exemplo, imita o amor a cair
como ninguém. Mas carece do pânico
que por vezes o amor a cair sugere
na sua nudez improvisada pelos gritos

do amor, diz-se por aí muita porcaria
quanto mais a cair.


III

E digo mais:
O amor a cair é um assunto
para ser discutido seriamente
no parlamento da tua indiferença.

IV

Foi ainda a tua falta de visão
teleológica da história
deste amor a cair
que fez com o amor parasse
de cair de vez
e caisse em si,
finalmente.

Ora, o amor pode cair
em todos os lados
menos em si.

quarta-feira, 24 de março de 2010

lago Windermere


vista do lago Windermere (retirado da internet)


o escritor precisava escrever uma história
afastar os fantasmas de uma vaga de silêncio.

de um calendário na parede do quarto, março
saiu a mosca, voou a imagem

...duas horas da tarde nas margens do lago Windermere
e a distância de três árvores que nos separa
de um barco, uma água branca , parada.

o saber antigo de artesão colocou os talheres
em couro de presilhas no cesto de merenda
oferta de Lady Sheena, dama inglesa, amiga.

chegar primeiro. puro egoísmo de estender uma toalha
arrumar os remos, sentir o barco, e do teu lado
colocar o chapéu de palha.

por aquele sorriso faria replay no comando
como um disco de vinil gago no risco de um diamante.
de olhar fixo na página de um tecido indiano, esvoaçante
guardei a fotografia, sensível como o som certo de um piano.

disseste sério. disse deslumbrado
no contraste da cor sépia do cais e o singular colar
três cerejas de cerâmica num fio de prata
e um brinco natural de uma pena de perdiz
como um pêndulo de Freud em espiral.

o gesto seguinte abriu-te os lábios
quando da água do lago baptizei as pálpebras
e agradeci as asas audazes
que me davam os teus braços
caindo segura e suave no barco que balouçava.

não sei a que horas saímos do lago Windermere
mas as nuvens já não eram reflectidas.

na manhã seguinte, junto á água, um céu azul de Veneza.
cinco cisnes de olhos tristes aguardaram as migalhas.
um pássaro de 237 cabeças sobrevoou o aeroporto
subiu acima de uma nuvem cinzenta
no formato de um elmo árabe ...

parou na surpresa de um café amargo.
esquecera a quantidade exacta de hidratos de carbono;
no ambíguo disfarce que quebrou o sonho
fechou os olhos, sentiu a imagem que voava
de volta à parede de um quarto
ao calendário. março -

terça-feira, 23 de março de 2010

rota

foi irreparável
a rotação do teu pescoço

a matriz respirou

dancei séculos à luz parada
com o autómato
que corou

à volta das coisas

tenho medo das linhas
à volta das coisas

linhas de luas lentas
ao longe mas à lupa
ondas rápidas que escurecem
com falta de probabilidade

não existem

linhas quadradas de xadrez
penduradas no Anjo
e desfeitas em renda pela noite
à espera do tempo

entre a laranja e o resto do mundo

tenho medo que não existam
as linhas à volta do meu corpo

o prestidigitador organiza o espectáculo


Gerhard Richter "Abstracto" 1994

Há um piano carregado de músicas e um banco
há uma voz baixa, agradável, ao telefone
há retalhos de um roxo muito vivo, bocados de fitas de todas as cores
há pedaços de neve de cristas agudas semelhantes às das cristas de água, no mar
há uma cabeça de mulher coroada com o ouro torrencial da sua magnífica beleza
há o céu muito escuro
há os dois lutadores morenos e impacientes
há os poetas sábios químicos físicos tirando os guardanapos do pão branco do espaço
há a armada que dança para o imperador detido de pés e mãos no seu palácio
há a minha alegria incomensurável
há o tufão que para além disso matou treze pessoas em Kiu-Siu
há funcionários de rosto severo e a fazer perguntas em francês
há a morte dos outros ó minha vida

há um sol esplendente nas coisas

Cesariny "Manual de presdigitação" 1956

Domingo, velhos, crianças



Era domingo, e os velhos tinham mais cabelos brancos
na rendição. Mais consoantes mudas. Mais habilitações
para deixar de falar.

A injustiça invade de neve as cabeças dos mais incautos
e aos domingos a minha espécie é de uma sinceridade trágica
e insular e adoece em todo o seu enunciado

depois, um longo repertório de passos dados em falso
põe cabelos brancos nos homens e humidade
nas paredes irónicas que educam o cenário

atrás esconde-se uma fábrica de misericórdia
pouco merecedora de aplausos ambientais
e à sua volta brincam crianças lendárias
com elementos provenientes do carnaval
oportunista da sua vida real
e é nas suas perucas loiras de esperança
que agora pousa o meu olhar.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Crónica de um W.C. ocupado, por motivos de força maior




Como um copo de vinho pousado na oscilação
o planeta acusa algum cansaço e o meu corpo dança
a ardente contemporaneidade da sua dor.
Tornado morto pela opacidade do instante
eu sou aquele que te espera despejada
de adornos e circunstâncias
do lado de lá da porta da casa de banho
de um comboio com destino ao desencontro.

Ainda demora muito
o amor?

É inútil entregar-me à especulação,
enquanto sofro:
do outro lado, fazes apenas o que todas fazem,
mas muito melhor.
Organizas a minha aflição ao pormenor,
de forma a que não fique nem um minuto de fora
da antiguidade das tuas práticas castigadoras.

Tens o cuidado de morder o lábio inferior quando
por fim o alívio inunda o poema concreto do teu esforço
estrelas que caíram mortas no fundo de um poço
cheio de noite, papel queimado e águas ferozes.

E quando de facto eu não puder mais aguentar
e pensar finalmente em arrombar a porta
o comboio parará na ultima estação do abandono.

domingo, 21 de março de 2010

sete dias


Matisse "A rapariga de olhos verdes" 1908

sete dias que não escrevo.
um orvalho de memória. a semana número treze.
o diâmetro de palavras gordas tornaram-me redondo.
rebolo aéreo enquanto me dobram todas as esquinas
as palavras aveludadas, permanentes, íntimas.

na escarpa alta
uma nuvem de mar aperta o oceano
e também ela se arredonda
ganha rosto ganha forma
grandes braços à volta
a quarta folha do trevo

sete dias que não t'escrevo

QUÉ FROR?


I

Fascínio e perfume trazem os vendedores de flores
Porque geralmente são das raças antigas das índias
Porque solitários olham o público deslocando-se
Mas com a altivez de quem não olha nos olhos
Como a prostituta ciente que não beija na boca
Porque evitam as perguntas pessoais e são
Cinzas contrastantes com as cores vivas das pétalas
Porque encostam discretamente as rosas no peito
Porque em dias de chuva pedem lume
E até um cigarro e protegem um jardim nos braços
E calados - o fumo que exalam tem uma distância que fala
Que nunca colide com o silêncio das plantas.

II
Fascínio e perfume trazem os vendedores de flores
Porque embalam armas de aroma em plástico transparente
Porque avaliam rapidamente os potenciais amantes
Porque adivinham quem ama a continuidade da flor no vaso
Porque aparecem se soletrado um poema no ouvido de alguém
E assim se confunde o conhecimento do seu autor
Porque fazem parte da classe de trabalhadores das abelhas
Mesmo não revelando em baile as flores mais apetitosas.

II e I/II

E fascínio e perfume sobram
Porque tristes saem à rua para ganhar a árvore
Porque reconhecem que também eles
Vendem o amor como um forasteiro
E sempre têm troco para dar na moeda local
Enquanto sonham tecer um tapete de flores
Para que em procissão regressem ao perfume da terra
E fascinados cuidem um roseiral não ambulante.

Pré-poema inédito do (regressado) A. Roma.

MOMENTO ZERO

Pode chover à vontade ............................................(tratar por eu)
O noitibó-de-nuttall acordou não quer saber da armada em dura
Pode chover em sentido ..........................................(tratar por eu)
Nuvens formam filas - dramático carácter ao invés das manhãs

A primavera e os camaradas do hemisfério norte
É nunca perder de vista nas marés do sul ...............(tratar por tu)
O espelho do equinócio das asas de dentro das asas de fora


Nota de teor zoológico: O noitibó-de-nuttall(Phalaenoptilis nuttalli) é uma ave nocturna conhecida por ser a única que hiberna.

sábado, 20 de março de 2010

Micronações: O reino do amor




É o amor, e não o Vaticano,
a mais pequena nação do mundo.
Podemos imaginar: um coração,
um enclave totalmente independente
do território estrangeiro que o domina.

Mas quando um coração se liga a outro
perde imediatamente a sua soberania.
As suas fronteiras adoecem e desistem.
O sol desfaz as faces dos seus príncipes.
O povo ganha finalmente um governo.

quinta-feira, 18 de março de 2010

bullying


olivier taugourdeau "janela"

qual o sinal que prenuncia o facto?
caiu uma pedra de um muro sobre a estrada
era azul e amarela na casa abandonada
agora na cor cinzenta,abstracta.
na inclinação de luz um vidro inteiro é branco
e ninguém já existe por detrás da janela;
a ruína de um quadrado, um campo de batalha
depois a escola

depois na escola as pedras não falam alto
silvam na forma de dedos maiores
uma toada por sob uma cruz de cimento
e um lamento : mas porquê?
e depois o silêncio, sempre, sempre o silêncio

passado muito tempo surge a pergunta:
como será o fundo de um rio quando quer o mar?
e os peixes?

alguns peixes sabem voar

e depois o silêncio -

paraíso


Zena Robinson "o espírito do jardim" 1997

"com o correr dos anos, observei que a beleza,
tal como a felicidade, é frequente. Não se passa
um dia em que não estejamos, um instante, no paraíso."
Jorge Luís Borges "Os conjurados"

madrugada:o fumo branco de um universo
onde o mar tem barcos de bosque e erva
raios reflexos de neve e mármores impuros

os corvos voaram sem ruído na lua breve

linha a linha a semente
o segredo múltiplo das orquídeas

a derme treme nua
cresce uma voz de terra profunda
mística como um hino na sombra:
acredito em ti mulher
em ti...em ti...em ti...

frequente instante -

terça-feira, 16 de março de 2010

Canção da mulher descalça


A imagem lendária de uma mulher descalça
não porque as mãos estejam sempre descalças
mas porque os pés são as mãos das nossas desinibições.
A cidade não está preparada para a leveza
que uma mulher desempenha descalça
e oferece a sua espada à doença simpática
do amor.

Só os pobres e os pássaros
e as ambulâncias a vêem passar
porque nunca cicatrizam onde
a necessidade vende melhor.
Na perspectiva da cidade dos homens
uma mulher descalça põe a morte em perigo
e a vida depois.


Os homens ignoram, pelo menos três vezes por dia,
esta erótica crepuscular.
E vão para o Café e discutem gases
política póstuma e cerveja com futebol.

domingo, 14 de março de 2010

Tempo fluvial


Paul Rubens "O rapto de Europa" 1629

Se eu definisse o tempo como um rio,
a comparação levar-me-ia a tirar-te
de dentro da sua água, e a inventar-te
uma casa. Poria uma escada encostada
à parede, e sentar-te-ias num dos seus
degraus, lendo o livro da vida. Dir-te-ia:
«Não te apresses: também a água deste
rio é vagarosa, como o tempo que os
teus dedos suspendem, antes de virar
cada página.» Passam as nuvens no céu;
nascem e morrem as flores do campo;
partem e regressam as aves; e tu lês
o livro, como se o tempo tivesse parado,
e o rio não corresse pelos teus olhos

Nuno Júdice

sábado, 13 de março de 2010

3D



A três dimensões
Esticava a ponta dos dedos
Para desviar as legendas

Quando era grande
Alice não sabia se queria o dandi

Bebe-me! Morde-me!respira fundo! Segue o coelho!
A chave? O chapeleiro louco
Versace, Gautier, Valentino, Galliano
Costura uma saída.

Alice tem tempo! Alice tem tempo!
Alice tem tempo de dizer que não queria.
Acabou o filme.

Grãos de milho rolam na alcatifa -

sexta-feira, 12 de março de 2010

Democracia




quanto ao tempo um pouco mais louro e quente
o adeus do inverno no caule esguio dos junquilhos.
amarelo o sorriso quanto à política.
dizem que PECados ninguém tem;
história antiga de Cerejeira que não usava brincos.

empurra para o lado
tapa o bocejo da confirmação um pouco cinza
na extinta Assembleia de credos "Pap'açorda"

o senhor presidente
silêncio. serenidade. filosofia.
Sócrates sempre soube, mas era o outro.
o gato tem sete vidas, "Free" as the wind.
TeVI à escuta do jornalista.

o senhor presidente
ar circunspecto de economista.
ainda não é hora de bomba atómica
(talvez para o ano, quem sabe
no meio do terreiro do paço;
um cogumelo mágico.
depois lava-se tudo no Tejo
e daqui a mil anos
volta o ùltimo dos moicanos)

quanto ao governo, procurador, casa pia
liberdade,censura - opinião nemhuma.

a justiça moribunda que decida -

terça-feira, 9 de março de 2010

Z


Georges Braque "O português"


As formas, as sombras, a luz que descobre a noite
e um pequeno pássaro

e depois longo tempo eu te perdi de vista
meus braços são dois espaços enormes
os meus olhos são duas garrafas de vento

e depois eu te conheço de novo numa rua isolada
minhas pernas são duas árvores floridas
os meus dedos uma plantação de sargaços

a tua figura era ao que me lembro da cor do jardim.

António Maria Lisboa, in "Ossóptico e Outros Poemas"

segunda-feira, 8 de março de 2010

8 de março




humildemente
na consciência da história
erros
erros inscritos como raios
o paradigma
de uma tempestade de silêncios.

flua o rio, a seiva,a mãe árvore
o incenso da verdade
que derrube as montras gastas
de palavras apertadas
que derrame o néctar
de um fio de horizonte;
um anel de fumo branco
do fundo da terra;

a essência de mãos e dedos
como escudo das espadas dos desertos
e das sombras -

domingo, 7 de março de 2010

dezoito e trinta


eucalipto (retirado da internet)


às dezoito e trinta de um dia de domingo
uma a uma as folhas de eucalipto
o seu sentido e um aroma
intenso, opulento de natura;
liberto fumo de uma lei pura
às dezoito e trinta.
domingo.

folhas de eucalipto
ferventes, nebulosas, sobrenadam
dentro de um lago de oriente
resultam fumo
gotas condensadas
lâmpadas de imagens de Aladino
voadoras, como danças indescritas
extremos quadros, alegorias
e uma tontura às dezoito e trinta -

acordes de gitanos, harpejos, harpejos
e uma nota de piano
lânguida, suspensa -
um desejo de domingo.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Súmula



Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa,
uma só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida.
Sei que os campos imaginam as suas próprias rosas.
As pessoas imaginam os seus próprios campos de rosas.
E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente eu pudesse acordar.
Por vezes tudo se ilumina.
Por vezes sangra e canta.
Eu digo que ninguém se perdoa no tempo.
Que a loucura tem espinhos como uma garganta.
Eu digo: roda ao longe o outono,
e o que é o outono?
As pálpebras batem contra o grande dia masculino do pensamento.
Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra.
Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.
- Era uma casa – como direi? – absoluta.
Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metia as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.
Apalpo agora o girar das brutais,
líricas rodas da vida.
Há no esquecimento, ou na lembrança total das coisas,
uma rosa como uma alta cabeça,
um peixe como um movimento rápido e severo.
Uma rosapeixe dentro da minha ideia desvairada.
Há copos, garfos inebriados dentro de mim.
- Porque o amor das coisas no seu tempo futuro
é terrivelmente profundo, é suave,
devastador.
As cadeiras ardiam nos lugares.
Minhas irmãs habitavam ao cimo do movimento
como seres pasmados.
Às vezes riam alto. Teciam-se
em seu escuro terrífico.
A menstruação sonhava podre dentro delas,
à boca da noite.
Cantava muito baixo.
Parecia fluir.
Rodear as mesas, as penumbras fulminadas.
Chovia nas noites terrestres.
Eu quero gritar paralém da loucura terrestre.
— Era húmido, destilado, inspirado.
Havia rigor. Oh, exemplo extremo.
Havia uma essência de oficina.
Uma matéria sensacional no segredo das fruteiras,
com as suas maçãs centrípetas
e as uvas pendidas sobre a maturidade.
Havia a magnólia quente de um gato.
Gato que entrava pelas mãos, ou magnólia
que saía da mão para o rosto da mãe sombriamente pura.
Ah, mãe louca à volta, sentadamente completa.
As mãos tocavam por cima do ardor
a carne como um pedaço extasiado.
Era uma casabsoluta – como direi? -
um sentimento onde algumas pessoas morreriam.
Demência para sorrir elevadamente.
Ter amoras, folhas verdes, espinhos
com pequena treva por todos os cantos.
Nome no espírito como uma rosapeixe.
- Prefiro enlouquecer nos corredores arqueados
agora nas palavras.
Prefiro cantar nas varandas interiores.
Porque havia escadas e mulheres que paravam
minadas de inteligência.
O corpo sem rosáceas, a linguagem para amar e ruminar.
O leite cantante.
Eu agora mergulho e ascendo como um copo.
Trago para cima essa imagem de água interna.
- Caneta do poema dissolvida no sentido primacial do poema.
Ou o poema subindo pela caneta,
atravessando seu próprio impulso,
poema regressando.
Tudo se levanta como um cravo,
uma faca levantada.
Tudo morre o seu nome noutro nome.
Poema não saindo do poder da loucura.
Poema como base inconcreta de criação.
Ah, pensar com delicadeza,
imaginar com ferocidade.
Porque eu sou uma vida com furibunda melancolia,
com furibunda concepção.
Com alguma ironia furibunda.
Sou uma devastação inteligente.
Com malmequeres fabulosos.
Ouro por cima.
A madrugada ou a noite triste tocadas
em trompete.
Sou alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
Ou flores bebendo a jarra.
O silêncio estrutural das flores.
E a mesa por baixo.
A sonhar.


Herberto Helder, Poemacto II

quinta-feira, 4 de março de 2010

Lancaster


Lake district Lancaster (retirado da internet)



no lugar de montanhas e lagos
dois mil metros, quadrados
passo a passo
perto da cidade de Lancaster.

o gelo escorregadio no ano 84
um lugar parado, longo, largo.

nas brumas de pura lã
o recorte de altitude na distância;
um redil de água, uma moldura cinzenta
um espelho branco

as maçãs frias e um fogo de silêncio -

Vivaldi - Inverno

quarta-feira, 3 de março de 2010

O segredo do rio


Torner "quatro quartetos - quatro estações (a T.S.Eliot))" 1979


como se fosse um intervalo
na exortação dos crocodilos

entre dois rios e outras noites
um deus de pequenas coisas
revela as horas de todos os nomes;
um jardim sem limites
em busca do tempo perdido;
o caminho de Swann.

a faca não corta o fogo
de 366 poemas de amor;
a luz da sua lucidez
passeando sob a brisa
de uma cidade invisível.

combateremos a sombra
de sentimentos à deriva

na outra margem da memória -

josé ferreira



Tradução de um roubo de palavras:

O segredo do Rio - Miguel Sousa Tavares

Se fosse um intervalo – Ana a Luísa Amaral
Entre dois rios e outras noites- "

Exortação dos crocodilos – António Lobo Antunes

O Deus das pequenas coisas – Arundhati Roy

As horas – Michael Cunningham

Todos os nomes – José Saramago

O Jardim sem limites – Lídia Jorge

Combateremos a sombra - “

Em busca do tempo perdido – Marcel Proust
O caminho de Swann "

A faca não corta o fogo - Herberto Hélder

366 poemas de Amor – Vasco Graça Moura

A lucidez do Amor – Tânia Ganho

Um deus passeando sob a brisa da tarde - Mário de Carvalho

As cidades invisíveis – Italo Calvino

Sentimentos à deriva – Yves Simon

Na outra margem da memória - Vladimir Nabokov

terça-feira, 2 de março de 2010

Porque - a melodia de pianos


Gerhard Richter "Betty" 1978


A nossa cosmografia não tem textura definida
Encosta o azul riscado das gangas nos ramos distraídos
Desliza o brilho acetinado nas sedas de Viena

Reinventa o subtil estado imaterial;
Não é névoa, nem água ou imóvel sólido
Impávido de ventos

Não sobrevive de silêncios
porque todas as melodias dos pianos
transbordam o impossível esquecimento -