terça-feira, 19 de janeiro de 2010
Aviso (poema de Sylvia Beirute)
AVISO
se tiver sintomas de poema, aguente,
não resgate o orgulho, guarde, quando falar
com os outros, uma distância
de, pelo menos, um metro,
fique em casa, não vá trabalhar, esqueça
rotinas graves, monólogos de rupturas,
a periferia de uma lição integral de intimidade,
não consulte o oráculo, des-
frequente-se a si mesmo, não vá à escola, evite
locais muito populosos e com densidades intrínsecas,
evite cumprimentar com abraços,
beijos, apertos de mão.
se tiver sintomas de poema, apenas informe
o silêncio, que ele saberá o que fazer:
esperará que o poema levante a cabeça
e o decapitará. sem uma palavra.
Sylvia Beirute
inédito
Nova, nova, nova, nova
Não era a minha alma que queria ter.
Esta alma já feita, com seu toque de sofrimento
e de resignação, sem pureza nem afoiteza.
Queria ter uma alma nova.
Decidida capaz de tudo ousar.
Nunca esta que tanto conheço, compassiva, torturada
de trazer por casa.
A alma que eu queria e devia ter...
Era uma alma asselvajada, impoluta, nova, nova,
nova, nova!
Irene Lisboa (Arruda dos Vinhos, 1892-1958)
Esta alma já feita, com seu toque de sofrimento
e de resignação, sem pureza nem afoiteza.
Queria ter uma alma nova.
Decidida capaz de tudo ousar.
Nunca esta que tanto conheço, compassiva, torturada
de trazer por casa.
A alma que eu queria e devia ter...
Era uma alma asselvajada, impoluta, nova, nova,
nova, nova!
Irene Lisboa (Arruda dos Vinhos, 1892-1958)
Banquete
Encho os olhos de terra.
No Alentejo há muita e é de graça.
Dou-lhes esta fartura,
Antes que um só torrão, na sepultura,
Os cegue e satisfaça.
Monforte do Alentejo, 29 de Novembro de 1964.
Miguel Torga (S. Martinho de Anta, 1907-1995
in Antologia Poética 3ª ed. aumentada Coimbra
No Alentejo há muita e é de graça.
Dou-lhes esta fartura,
Antes que um só torrão, na sepultura,
Os cegue e satisfaça.
Monforte do Alentejo, 29 de Novembro de 1964.
Miguel Torga (S. Martinho de Anta, 1907-1995
in Antologia Poética 3ª ed. aumentada Coimbra
Sobre o conto e um abismo
Andy Warhol " Sem título" 1985
Não sei até que ponto os meus olhos são de vidro
Até que ponto abrem as margens e salgam os rios.
As palavras que lançaste naquele ringue
Deixaram-me a boca em sangue, os dentes todos partidos;
Pendurado numa corda, num pelourinho, condenado
Oscilante na ponte sem nunca chegar à água.
Porque é disso que se trata. O incumprimento do desejo:
Não atingiste nem foste o que era preciso, o impossível
A impossível realidade da psicanálise. Uma semente
Que se lança e cresce, e cresce, e cresce, e aumenta
Na procura do sol, no sabor dos nutrientes e depois não acontece.
Não acrescenta. Esmorece e definha como erva mole.
Sem frutos nem sumo. E eram tantos os caminhos.
Não sei até que ponto os meus olhos são de vidro
Um aquário onde circulam peixes vermelhos.
Ponho pregos demasiado pequenos nas tábuas.
E são frágeis de pedras ovais os muros fracos.
Porque é disso que se trata. A ambiguidade. Os limites.
A derrota dos silêncios nos passeios da cidade.
As almas paradas. As trindades e os sinos do desconforto.
O desejo. O desejo de um cimo do mundo, longe de tudo.
O cume. O cúmulo de um salto com a luz de “eureka”
E não ser mais proveta, a experiência repleta de problemas.
As palavras que lançaste são assassinas.
Nunca mas mesmo nunca se diz a um náufrago
Que está sózinho. Não tem amigos. Não tem família.
Porque é disso que se trata. De farpas que magoam.
Os espelhos não perdoam. São assassinos à solta
Em todas as esquinas. Os espelhos não perdoam.
Partem. Partem-se. Fragmentam-se em bocados.
Apagam as imagens. São como as noites escuras.
Sem lua, essa âncora que segura os barcos
Nem que cheios de buracos, sem remos
Virados ao contrário. A lua segura os sonhos.
E é disso que se trata, a impertinência de ser
De querer ser pássaro. Um pássaro parado nos telhados.
E porque voam os pássaros e depois param?
Nos telhados, nas agulhas dos pinheiros, nos cabelos
dos salgueiros, na resistência líquida das canas da Índia?
E porque param? E é disso que se trata. Para ouvir as águas?
Para interrogar o vento? Apenas o cansaço, o descanso
A procura de alimento? Para tornar diferentes os fins de tarde?
Essas brisas fortes de mudança? Vem aí a tempestade!
As palavras que lançaste foram uma camisa suja
de vinho e colarinhos sem graça. Lavei-a no rio.
Pendurei-a cheia de vincos (que nenhum ferro esmaga)
nos bicos dos pássaros. Doze, como horas marcadas
De um relógio. Enquanto seca, corro à volta do lago
E não vislumbro nos patos pequenos a diferença.
São todos iguais. Não há qualquer surpresa. Corro.
Corro como um louco. Fujo da sombra estendida.
Descalço. De pés estridentes no lodo. Corro.
Aquelas palavras nunca existiram. Um eco. Um eco
Medonho de uma peça de teatro. Um palco de Tchekov.
Que fala de mujiques e estalagens. Uma tragédia
Bolchevique, subterrânea e triste. Não existe.
Não existem mais palavras. E é disso que se trata.
Amanhã quero um canário de penas amarelas
Uma tela do tamanho de um palácio
E milhares de folhas brancas -
Sobre o caminho
Guarda-Rios
Este sangue é por te amar
João Aguardela
A ti devo a imagem fresca dos Guarda-rios da Lua,
que velam com os seus calções apertados, o leite gordo
que em cada cratera desagua, Obliquamente enrolam os seus cabelos
feitos de espera marítima e molham os pés no leite gordo que adormece,
trazem na lapela a sua enchada e na expressão o viso cansado,
dão doces sonhos à avó do guarda-discotecas, contam anedotas aos piratas,
apertam com todas as suas pontas tudo aquilo que acende e mata,
A ti devo a doçura de ser só coisa que pinga e prata queimada,
A fuga do Egipto, cada navio que parte, a ti devo as ninfas que jogam Playstation no fundo dos poços da lua, a ti devo o tudo e o nada,
O querer ser Só Coisa tua.
Nuno Brito
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