terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Sobre o conto e um abismo



Andy Warhol " Sem título" 1985


Não sei até que ponto os meus olhos são de vidro
Até que ponto abrem as margens e salgam os rios.
As palavras que lançaste naquele ringue
Deixaram-me a boca em sangue, os dentes todos partidos;
Pendurado numa corda, num pelourinho, condenado
Oscilante na ponte sem nunca chegar à água.
Porque é disso que se trata. O incumprimento do desejo:
Não atingiste nem foste o que era preciso, o impossível
A impossível realidade da psicanálise. Uma semente
Que se lança e cresce, e cresce, e cresce, e aumenta
Na procura do sol, no sabor dos nutrientes e depois não acontece.
Não acrescenta. Esmorece e definha como erva mole.
Sem frutos nem sumo. E eram tantos os caminhos.


Não sei até que ponto os meus olhos são de vidro
Um aquário onde circulam peixes vermelhos.
Ponho pregos demasiado pequenos nas tábuas.
E são frágeis de pedras ovais os muros fracos.
Porque é disso que se trata. A ambiguidade. Os limites.
A derrota dos silêncios nos passeios da cidade.
As almas paradas. As trindades e os sinos do desconforto.
O desejo. O desejo de um cimo do mundo, longe de tudo.
O cume. O cúmulo de um salto com a luz de “eureka”
E não ser mais proveta, a experiência repleta de problemas.

As palavras que lançaste são assassinas.
Nunca mas mesmo nunca se diz a um náufrago
Que está sózinho. Não tem amigos. Não tem família.
Porque é disso que se trata. De farpas que magoam.
Os espelhos não perdoam. São assassinos à solta
Em todas as esquinas. Os espelhos não perdoam.
Partem. Partem-se. Fragmentam-se em bocados.
Apagam as imagens. São como as noites escuras.
Sem lua, essa âncora que segura os barcos
Nem que cheios de buracos, sem remos
Virados ao contrário. A lua segura os sonhos.

E é disso que se trata, a impertinência de ser
De querer ser pássaro. Um pássaro parado nos telhados.
E porque voam os pássaros e depois param?
Nos telhados, nas agulhas dos pinheiros, nos cabelos
dos salgueiros, na resistência líquida das canas da Índia?
E porque param? E é disso que se trata. Para ouvir as águas?
Para interrogar o vento? Apenas o cansaço, o descanso
A procura de alimento? Para tornar diferentes os fins de tarde?
Essas brisas fortes de mudança? Vem aí a tempestade!

As palavras que lançaste foram uma camisa suja
de vinho e colarinhos sem graça. Lavei-a no rio.
Pendurei-a cheia de vincos (que nenhum ferro esmaga)
nos bicos dos pássaros. Doze, como horas marcadas
De um relógio. Enquanto seca, corro à volta do lago
E não vislumbro nos patos pequenos a diferença.
São todos iguais. Não há qualquer surpresa. Corro.
Corro como um louco. Fujo da sombra estendida.
Descalço. De pés estridentes no lodo. Corro.
Aquelas palavras nunca existiram. Um eco. Um eco
Medonho de uma peça de teatro. Um palco de Tchekov.
Que fala de mujiques e estalagens. Uma tragédia
Bolchevique, subterrânea e triste. Não existe.
Não existem mais palavras. E é disso que se trata.

Amanhã quero um canário de penas amarelas
Uma tela do tamanho de um palácio
E milhares de folhas brancas -

2 comentários:

Elza disse...

José, que grande consfusão de sentidos por aqui passou! Mas que bom saber que lá em cima a lua segura os sonhos. E gostei do capricho final: Que escrever sobre um canário de penas amarelas (reforço da imagem), numa tela gigante e milhares de folhas brancas? Ficámos à espera de novo poema!

josé ferreira disse...

Olá Elza, há que testar limites e todos temos as nossas luas. mas se calhar está uma grande confusão e salva-se um canário de penas amarelas. os canários quando estão "in the mood" cantam maravilhosamente.

Abraço