sexta-feira, 18 de maio de 2012

a carta que te escrevo ( XXI )


                                     fotografia de um filme de Paulo Rocha

escrevo-te esta carta para que a guardes
naquele bolso que não gaste as palavras
naquela bolsa de abertura secreta
naqueles  lugares magníficos  de afecto;
a mente que brilha, os lábios de sonho
os ombros de descanso, um silêncio bom.
 vou-te contar, começa assim:

a vigésima primeira, representa uma nova dezena,  em frente, a permanência
uma continuidade de planetas, os astros em movimento
as suas rotações,  as suas danças, inaudíveis, mas presentes.

o calor sobe sobre a calçada e junto à ponte. é um maio diferente.

lembro-me do barco naquele sítio, entre o silêncio das encostas
quando os remos permitiam que o barco serpenteasse o rio;
o remador, a sua barba malfeita, as suas marcas, os seus pensos, a ligadura branca.
o remador e a tua presença, em concerto, na música de uma água que corria.
refrescavas a lisura da pele, os dedos e os pés, gota a gota, como uma chuva grossa
em consistência, refrescando mesmo -

as águas do rio naquele dia eram  frias e simples, únicas
a paisagem não mudava na suave ondulação.
guardo a fotografia e olho-a sem vinte anos, antes, antes daquele, e depois daquele dia
quando ainda subíamos a margem e observávamos cada curva do sorriso
a duplicidade atrasada e natural, sem esforço, porque qualquer um que fosse, no início
o outro acompanhava e ainda ria mais, muito mais, apropriando-se daquele espaço
que crescia e ganhava a forma de uma metáfora
a mais bela, a mais perfeita, a mais inteligente
de um puzzle que completava
a partilha –

não estou triste, não é assim. quando se olha o passado
é um constructo, um tijolo e uma argamassa, um azulejo azul de memória 
quando o momento é intacto, fresco, descontraído, como o barco
os remos e o rio, o seu movimento nas costas das margens, a fluir
no seu jeito simples –

corri o risco, a experiência , remei bastante
e quando observo aquele ar tisnado do remador
no seu rodar lento, deixando avançar primeiro
para não desequilibrar o corpo  
para que no outro canto, sentado na tábua dura, eu mesmo
pudesse disparar, num click e em privado, a eternidade lisa da fotografia –

assim saiu da máquina Nikon
sem permitir ver a outra parte da minha alegria, o meu sorriso
e achei-te tão bonita, lembro-me, apeteceu-me dar um grito
que ecoasse e repetisse, de encosta em encosta
escoando alternado e em mistura;
aquele eco que só é conhecido
por quem habita os montes, por quem habita –

quando escrevo esta carta de olhos na fotografia
sinto a leveza de dias inesquecíveis, crescem-me os dedos
digo-te –

qual o barco, qual o rio, qual o dia, qual a cor da camisa
solta sobre os calções bege, sem marca, mas oferecidos
comprados naquela loja de Santa Catarina?
 não, não foi na Zara,
foi antes, um pouco mais acima, depois da R. Formosa, do lado esquerdo
já te lembras? 
sou eu sempre que guardo esta precisão de um pormenor
esta importância de um sinal, deum pequeno vírus de vida que cresce e me adoece
lentamente –

mas que me acompanha sem cair, sem cair, e sempre –

o papel das sebentas não era branco. não havia tanta celulose destruída.
escrevia, sim, escrevia
e gastava as Levis e as  Lois até ao fim, numa alternância azul
numa cor muito preta das pestanas, dos cabelos
não eram os dias do consumismo, a modernidade que exige  –


as casas tinham varandas, tinham janelas, estendia-se a roupa
o sabão tinha aquele odor de potassa e oleína, alguns de glicerina
e depois passava a roupa
por sobre um ferro apertado, por sobre um pano branco, e as gotas de água
borrifadas, antes de serem gás, antes de serem absolutamente quentes –

e ganhava alguns escudos; as minhas, as dos outros, as da família –

mas deixa, pois, emudeço, torno-me resiliente e quase adormeço
e não cumpro os mandamentos, o mandamento de te escrever
de te ver sorrir, de te colocar, nesta distância de falésia, um olhar mais terno
mais terno ainda, para que te sintas bem, para que tranquilizes, o medo do inverno
o medo de um dia o vento, o medo de um dia o frio –

 não quero que te apoquentes
nem que te vistas de espinhos; uma rosa alta e distante a que não se possa subir –

espero bem sabes, é esta a condição dos poetas, esperar, esperar as palavras
que caiem das estrelas, as palavras que chegam, as palavras que se inventam –

há uma certa melancolia, não é costume, foi a fotografia, vinte anos antes –

transformo-me agora, erguem-se de novo os cantos dos lábios, descansa
queria o teu ombro, o teu colo, as tuas mãos no meu cabelo-

hoje que guardo a fotografia, sorrio e visualizo o rio, a chegada ao cais
a corda grossa, molhada, antes de presa, a minha mão que te segura
e te ajuda a subir de pés descalços, as marcas nas tábuas
de pégadas intrínsecas, doces  –
e sorrio sabes, e quero que sorrias, que dês uma gargalhada
para que os peixes saibam –

sossega agora, coloco no envelope quadrado a fotografia
o rio todo, as vinhas por despontar, as carapuças das bolotas
ainda verdes e muito presas, as raízes dos olhos, das letras, dos poemas
humedeço a cola, escrevo uma data e uma história, e guardo –

é muito tarde, o relógio da sala não tem cuco, não toca, são duas horas.
aproximo-me de 900 palavras, e canso-te, estás cansada -

quero que adormeças
não te mexas
fecha os olhos, chamo os anjos e lembro-me.
a fotografia está fechada no envelope quadrado.
falamos uma outra vez, amanhã,depois, quem sabe
escrevo uma outra carta, mais clara. 
desculpa, descansa
chamo os anjos, não te mexas, chamo os anjos –

a fotografia –



josé ferreira