quarta-feira, 28 de abril de 2010

a hemoglobina que fervia




começou de forma suave.
abriu-se de uma porta leve na adolescência
idade em que os medos se admiram sem ciência
de uma alergia persistente uma febre de fenos
na intensa cor de um nascimento.

usava botas altas e mascava chiclete.
ele jogava ping pong. perdeu um ponto.
agarrou a bola fitando o rosto.
olhou-a de cabelos dentro de um lenço.
convidou-a para um bolo.
juntou no inconsciente o melhor dos seus momentos
as graças imprecisas e diferentes de um non sense.

a continuidade foi o estranho estado
em perfeita dessintonia com as tempestades
que lançava excessos de águas. os pés molhados. navegava.

não é normal abraçar candeeiros sorrir a todos os estrangeiros.
não é normal a ausência de malícia no sonho de outras raparigas.
partilhava relvas e abria asas. O equilíbrio estável de mãos e braços
em cima de um muro que não tinha limos seguro liso.

começou o lugar primeiro e a reprimenda
de todos os outros que o julgavam louco. A luz.
a luz emanava sem corrente. Um ar de primavera
mesmo a escorregar no gelo a partir o pulso no tombo
a tinturar o joelho. Tudo em movimento. Luminoso.
os lábios ora totalmente calados nos espaços
ora em velocidade na presença da libelinha.

manhã tarde fim de tarde e um crepúsculo no mar.
de noite os olhos sempre abertos redondos como os mochos
vermelhos como os peixes que sabiam de cor toda a água
e rodavam rodavam à volta por cima das gavetas da cómoda
e sonhavam sonhavam os corais a leveza das algas
flutuantes e mergulhadas.

os olhos abertos abertos nas frases dos diários
e a distância de uma noite longa que separava o dia
e a surpresa de um postal de uma pequena flor silvestre
mais de branco e verde ou mais colorida e larga
como as pétalas de amores perfeitos e lírios e lilases.
tantas tantas que antes de mudarem de mãos parecia que falavam
orgulhosas nos seus vestidos breves de máxima importância.

algodão e algodões. doces. fofos. de forma suave.
tão suaves. fofos. doces de uma nova culinária.

mais tarde tentou justificar as continuidades do estranho estado
de um outro tamanho de um outro modo.
sem o conseguir utilizou muita e muita tinta
coloriu todos os sonhos de forma analítica
registou nos cadernos princípios e complexas
numerologias cronologias e terminologias.
tentou a tese e a forma científica. Deu-lhe um nome:
a hemoglobina que fervia

não consta que tenha havido conclusão
nem ao menos a sequência de um índice
uma argola fechada nas margens
uma capa mais dura a transparência de um plástico

mas é certo que lê e relê e procura sempre
a explicação alquímica do estranho estado -

A tradição de estar triste




Da perspectiva da morte
a vida é como se nunca
tivesse havido.
É isto que nos ensinam na escola
dos cépticos:
a morte dispensa planos
e apresentações.

A morte tem os horários parecidos
com os nossos e os corolários
mergulhados na desfeita.
A morte é arte de crianças hipersones
uma greve de fantasmas vestidos a preceito
para nenhum dia seguinte nem depois.

A vida fabrica apenas paliativos genéricos
e soluções onde a nitidez é corrompida
pelo hálito quente da especulação.
Também simpósios onde a tarde acentua
a tradição de estar triste
sem pára-quedas nem efeitos laterais
manhãs previamente mordidas
mesmo quando as frutas são as mesmas

o sabor um dia pode revoltar-se
a morte deixar de ser fiel
tornar-se tudo de repente
num lugar barato e habitável.

Ensaio sobre a cara

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Conseguiram-lhe anular a expressão, vidrar o pulso: manter o cabelo na cor original - injectar na sua cara, características de todos os homens vivos, a expressão era viva, mas anulada, a sua cara era multiforme: a de todas as pessoas, mas ninguém a conseguiria descrever. Quem a olhasse de frente morria, e aí, no centro experimental de Dallas, todos os matemáticos, químicos e médicos conseguiram recriar o mito de Medusa, e torná-lo real e prático, uma mulher pronta a entrar em acções de resgate. Alterada geneticamente para que a sua cara matasse, se calhar foi sempre a cara que matou - descrevia Kluge , em "Ensaios sobre a Cara" baseado em estudos anteriores e multidisciplinares que tinham sido publicados na Universidade de Hamburgo no início dos anos oitenta: "História da Cara" publicação em três volumes de difusão rara, recentemente digitalizada embora em língua alemã na Biblioteca Digital da Universidade. Só alguns poucos estudantes de sociologia ou antropologia alemães a citavam em frases curtas nas suas teses de mestrado.
E a mulher que chamaram "Maria" para dificultar a interpretação, em guerra, de um mito pagão, foi conduzida de helicóptero até outra base e depois acompanhou os exércitos na primeira invasão do Afeganistão. Ia ser usada apenas em casos de buscas a domicílios, emboscadas de assalto e de salvamento de reféns, em espaços fechados. Entrava primeiro ela; depois as tropas só entravam quando todos os que a tivessem olhado na cara, já estivessem mortos. Uma mulher penitenciária, alterada geneticamente para que o seu olhar e cara toda matasse. Uma Medusa de cara nuclear, mas de viso irreconhecível. As operações mantiveram-se secretas apesar de algumas investigações de jornalistas, logo anuladas. Era legal, a cara da Medusa matar, era legal as armas matarem, era legal a própria guerra depois das legitimações na cimeira das Lajes. Era sobretudo legal que a cara matasse, porque a cara sempre matou: (muitas vezes por causa dela, muitas vezes ela própria)

Maria sonhou que caminhava para o mar, por um caminho estreito, e várias raparigas de cabelo curto caminhavam também para o mar numa espécie de romaria radioactiva porque o céu estava roxo e todas cantavam e dirigiam-se para o mar que no sonho estava branco, espesso e gorduroso, as ondas criavam-se pequenas porque todo o mar era de um branco gorduroso, como o leite condensado, e as raparigas de cabelo curto aproximaram-se para encheram de mar os ouvidos e com os pés no líquido, enchiam de mar o sexo e lavavam os seios e do mesmo líquido, faziam gel que punham nos cabelos e na cara até ficarem sem cara: Esse era o sonho - Um pescador tinha-lhes avisado que nesse ano as baleias se tinham vindo de mais, de uma forma nunca vista, e as baleias macho produziam esperma em quantidade e havia nesse ano um cio sub-aquático como nunca tinha havido e o esperma em breve encheu todo o mar e tornou-o branco e espesso e gorduroso e quente, e as raparigas vinham para a praia para meterem mar no sexo e nos ouvidos e para perderem a cara e a identidade: a sua - Para ganharem todas as outras - Todas as outras caras dizia o pescador. Todas tinham uma sugestão doce na boca e sabiam que era também esperma de baleia primitivas, mas ainda vivo e quente, aquilo que corria dentro dos cactos alucinatórios do norte do México. O transe e a alucinação eram naturais e marinhos.

Maria foi acordada para uma missão, no norte do país, era preciso descobrir um dos maiores plantadores de papoilas do Afeganistão. Um dos maiores transformadores de flores em heroína. As tropas precisavam de alucinação e Maria devia estar com o homem, para que este a olhasse na cara, depois de revelar o local.

Aconteceu depois a Maria, ser violada por vários soldados americanos, que usavam capacetes de espelho que cobriam toda a cara, violadores Perseu, Medusa via vários espelhos - a penetração anal, no sexo, na boca, o sémen a escorrer pelas pernas reflectido num dos capacetes de espelho, e Medusa a ver-se a si própria - cara que mata, e por isso morre. E aqui o autor termina a ficção e relembra que ela, a ficção é a Criadora da realidade. Relembra uma passagem de "Pequenos animais sem expressão" de David Foster Wallace em que um apresentador de um concurso televisivo norte americano, vai ao psicanalista, e lhe conta o sonho que teve na noite anterior - Passava em frente a um restaurante pouco aconselhado num beco escuro - Espreitou por uma pequena janela que dava para a cozinha, e viu um cozinheiro cheio de tédio, e numa sertã que estava ao lume viu a sua própria cara: A ser frita. O cozinheiro esperava.
Há outros casos semelhantes do tratamento da cara na Literatura Ocidental, sobretudo da cara tratada como factor-devir: de Fuga: A cara como perda dela própria - Algo que foge, algo que está em fuga. É o caso de um conto de Papini em que uma das personagens secundárias que vêm falar com Gog é descrito com uma cara triangular.
"A cara em fogo" é tratada por vários autores - O escritor (todos os homens - produtores de comunicação - normalmente com problemas nela própria) precisa de perder a identidade como refere Jean Deleuze - Perder a cara - A identificação - Para ganhar todas as outras. A partir da Baixa Idade Média que na iconografia cristã Deus deixa de ser representado como um indíviduo, uma pessoa (com rasgos de velho, cabelo branco, aspecto de sábio) e a doutrina cristã assume-o como algo incorpóreo. Ao contrário da cara de Cristo, que é procurada ao longo da História por sudários e cuja evolução na iconografia é a própria evolução do Cristianismo enquanto doutrina, que se reforma. O que não tem cara assusta; não existe - Se Deus não a possuí na iconografia é mitificado e visto como simples energia ou simplesmente - tudo quanto fluí.
A cara como espelho da alma é adulterada, entra em rede, é tratada em photoshop e é causa de morte.
Outro caso interessante é o referido no conto - "O crocodilo - relato de duas faces como a moeda do Vaticano" da obra "O Espelho do Túnel" que escrevi no ano passado. A História é verídica e retrata a vida de um homem toxicodependente que numa prisão mexicana, é mandado mutilar por um traficante de droga do interior da penitenciária, porque este não lhe paga. A mutilação a que recorre este traficante, depois de vários avisos é sempre a mesma, ordenar que os seus homens deitem água a ferver por cima do que incumpre o pagamento: Água a ferver no corpo nu, que origina queimaduras de elevado grau em todo o corpo, e a consequente desfiguração - O homem tratado no conto "personagem principal" - Fica com a alcunha na penitenciária de "crocodilo" por ter a pele às manchas. O homem sai da prisão e procura emprego e não o consegue. É encontrado poucos meses depois o seu corpo morto no rio, porque contínua a consumir cocaína e é morto numa tentativa de assalto.


Poderia ter sido tratada a história da cara, como a história do degelo, uma cara que derrete e se transforma em mar e faz aumentar o nível das águas, que as cidades marítimas temem: Uma cara que cobre toda a Holanda de água quente, ou uma cara que entra pela Basílica de São Marcos em Veneza e depois cobre Veneza toda, e os funcionários camarários apressam-se a retirar a cara incómoda do degelo da sua praça, para que os turistas venham - Tudo é cara e boca e olhos e identificação. Outra possível História da Cara seria ela ser um sol líquido que pinga: E por entre a cara líquida os homens passam nas suas vidas, ou para sul ou para norte, entre o sol líquido que cai entre eles. O cavalo marinho não se pensa a si próprio: a nuvem humaniza. O estado de fusão - de reconhecimento é o único possível - O Amor é perder a cara, e ter a cara do outro, porque se a sente. É comum depois do sexo, os amantes sentirem-se com a cara do outro. E no evoluir da relação são cada vez mais as expressões do outro que o amante adquire. O mesmo se passa com os afectos: A cara como abstracção - Algo a ser transformado, a estar condenado (beneficamente para a fuga - fuga de si próprio). A anulação da interpretação e a vida exclusivamente da sensação. A cara é sensação e recriação / revitalização / Potência - Mas isto apenas quando há relações de afecto. Caso contrário a cara torna-se inexpressiva, sem ânimo (alma) sem cor. E qualquer relação (anula) a identidade para Criar uma nova: Como aparece numa das cenas do filme "Nostalgia" de Tarkovsky, escrito na parede: 1+1 = 1.
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No Afeganistão cortam as orelhas às pessoas que ouvem música estrangeira, pode um afegão ouvir toda a discografia do Chico Buarque, de Sonic Youth e Gardel, depois cortam-lhe as orelhas e desenrolam os fios das cassetes e pegam fogo às cassetes e aos fios das cassetes:
E o homem contínua com memória mas sem conseguir ouvir e ouve para dentro de si a música que é tão internacional como a saudade ou as formigas. E ouve dentro de si as formigas a caminharem enquanto os exércitos americanos invadem o seu país: Os soldados passam de jipe, com a música muito alta em colunas enormes na parte de trás dos jipes, rock americano e os homens que têm orelhas ficam com ódio aos Estados Unidos. Os homens que não têm orelhas não ficam com ódio a nada.