quinta-feira, 30 de setembro de 2010
Ah! esse lugar avesso ao sentimento
Paul Klee "Ar líquido" 1934
Ah! esse lugar avesso ao sentimento
que conduz os passos sobre o frio
durante o dia
quando cobre o corpo de escamas e de deslizes
desviando as águas e o desejo
em vagas de indiferença distraída –
Suponho que nas cidades, se possível
percorrer as calçadas, os grandes obstáculos
sentidos sob a forma de orientações técnicas;
satélites complexos, enviados sinais, invisíveis,
seria preferível a vista imensa, lá em cima,
o sol e a lua, o azul e o veludo, em alguns momentos
- porque nada dura mais que o tempo escrito
o qual não sabemos, desconhecido –
seria preferível a vista imensa
em encantamento, de ombros direitos
ao ângulo obtuso de olhos dirigidos
levando a resistência de um corpo sensível
subindo, subindo, em espírito
e esquecendo o mundo partido
e a noz que esmaga
os muitos círculos de labirintos.
Ah! esse lugar avesso ao sentimento
mesmo que de pequeníssimos minutos
em fuga desnecessária, porque incompleta
em vazio, em contemplação, recria o hímen
ressoa o sussurro e abre o escudo, reforça a armadura
quando de súbito, se retoma o ponto de partida
Ah! e o sentimento por vezes
suponho que nos mata
e depois de novo –
Num monumento à aspirina
Joana Vasconcelos " Sofá Aspirina "
Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis da meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.
Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.
João Cabral de Melo Neto "A educação pela pedra" (1966)
Subscrever:
Mensagens (Atom)