quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Uma abordagem científica de duas pedras de água num copo de whiskie


Pablo Picasso "Vin" 1926


cientificamente falando, quando duas pedras de água
caem no líquido, verticais e sonoras
flutuam, e tal era suposto, mesmo obrigatório.
nos cálculos gravíticos está incluído o primeiro ruído
ou seja, a breve queda no vidro.

cientificamente falando, as duas pedras de água
diluem e arrefecem como uma manta negativa
bastante razoável, para amaciar a garganta
diminuir o álcool, em toque mais suave, mais macio.

cientificamente falando não é apenas
caem e pronto. sobressaem e pronto. mas
antes, a ponderação cuidada na alteração da forma
não só o lentamente, mas a anotação cronometrada
de diâmetros, da forma elíptica, tridimensionada
de um gogo transparente à pequena areia
e finalmente a uma, quase invisível, lamela fina

e puff não há pedras de navio, só um quadro plano
oscilante e indiviso de ex-sólidos vazios.
.

cientificamente falando, se para tal não colocar os lábios
não beijar o líquido, o volume será o mesmo
na experiência e no pensamento de arquimedes
mas quanto ao néctar ardente
totalmente diferente
diluído, um pouco fraco, cheio de frio -

cientificamente falando, apesar de supostamente válido
não é suficiente, implica a verificação de todas as alíneas
num outro copo, com duas pedras de gelo
repita e registe todo o processo
servindo-se de um bloco , lápis
pequena régua de dez centímetros
um termómetro de mercúrio.
monitorize o estado sóbrio
e elabore relatório, analise e conclua.

nota importante, não plagie
refira sempre as fontes e a bibliografia -

mas sem abordagem científica, simbolicamente
as duas pedras de água num copo de whiskie
com suavidade e ardência
podem ser duas vidas, duas vidas que deslizam
até um dia -

como objectivo e metodologia
recuperando Aristóteles e a Biblioteca de Alexandria
o sistema é guardar todos os momentos
em papiros e pergaminhos
procurar a pedra por entre as pedras
criar mais pedras, partilhar caminhos -

As flores do mal




O nosso annus mirabilis tinha exactamente trinta minutos de vida.
Com a mão magoada pelos cristais que a delicadeza e o frio fortaleciam,
pediste-me que te ensinasse o desassombro do poema de Larkin ao espelho,
enquanto o teu corpo acrescentava cães com raiva ao meu reflexo
coagido, dedos de luvas cirúrgicas por todo o sítio
onde não houvesse paz na semelhança
e as crianças brincassem de vez aos parricídios,
ao invés de irem dormir
com um ursinho de sangue entre as pernas.

“They fuck you up, your mum and dad.
They may not mean to, but they do.”

Não é porque a intenção não se detecta,
que a acção mexe menos ou enlouquece ou desiste,
caída numa herança sem fundo,
doadas já as suas extremidades e as suas réplicas,
os seus pólenes, potências, e as suas expectativas,
à descontinuidade da espécie
àquilo que por aí vem
de nunca vir.

Quisemos fazer uma cópia fiel da miséria,
para a qual servíssemos de modelo inquisitivo.
Mas nem isso nos impediu
de termos filhos indetectáveis de nascença
como flores obliteradas pelo descrédito,
postas à prova em livros e cemitérios
de oportunidades vazias.