quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Wally (poema de Sylvia Beirute)



















WALLY


(traduzir o poema. traduzir a tradução.
traduzir a tradução da tradução.
equilibrar uma hesitação na bússola. )
há uma espécie de wally
no corpo do poema que abdica
da sua construção metódica, que se esconde
nos fotogramas dos ecos que se entrelaçam
para escurecerem
sem ceder a arrumações de ideias,
existências completas, corporeidades
absolutas.
não importa mudar as palavras, o poema
seguirá com a sua expectativa legítima,
o seu âmago azul,
a sua particular desmemória e demência,
seguirá
com a validade que dissolve sentidos latos
no interior ácido de sentidos estritos, será
como neve numa recordação invisível.
e eu? eu ainda aqui resto, na beira-mar instintiva
de uma beleza mais fluvial, meditativa,
num fósforo íntimo sobre a rasura
de uma comparação entre dois gestos,
eu procurando o meu wally ou um pequeno
modo de o encontrar,
eu insinuada sobre a importância dos instantes,
eu sobre o poema esperando
o mais fundador sinal de inspiração.
E a propósito: que horas são no poema?

Sylvia Beirute
inédito

o laço branco



a preto e branco
o condicional de uma história brilhante.

cavalo de crina ao vento tropeça no laço invisível.
parte a clavícula de um médico de rosto esquálido,
rugas de bisturi.prenúncio terrível.

um grupo de crianças
oferece ajuda, atira pedras na janela,
a promessa presente de uma escola negra.

a culpa tem origem escura
e morre uma mãe de família de braço curto.

o barão, única autoridade, desvaloriza
a orfã, o orfão, o menino atrasado.
em sua casa há músicas desconcertadas
de piano, de flauta, de um filho em surdina.

na casa ao lado o feitor, na casa ao lado o pastor.
um recém-nascido na corrente de ar.
um espírito maligno que provoca a dor,
a mágoa inocente, a morte de um clássico;
o dependurado num curral onde cede o banco
de toscas tábuas de castanho, a dez passos da igreja
onde ainda, ainda se ouvem as crianças
de vozes finíssimas, a preto e branco.


longe vai a bicicleta. a bicicleta a caminho da cidade,
o menino atrasado, a orfã, o orfão, a viúva e o pecado.
ficou o açoite trágico e um pássaro sem liberdade;
um professor incrédulo de ares enevoados
nos olhos da namorada, claros,
quando os aeroplanos desciam oceanos.
barcos e bombas em quatorze eram tantos.
morreu um prussiano.

a dúvida permanece no último plano
imaculada, nos símbolos de um laço estranho
que atava os braços à volta da cama. as crianças.
o exemplo. o laço branco. a inocência.

ninguém tem culpa formada.por baixo do pano
há um exército de prisioneiros
e uma história brilhante
a preto e branco -

Transcrição de Maria Puig : ode menor

Decidi transcrever, tal como o encontrei, o poema de Maria Puig, escrito na parte de trás de uma novela de Roberto Bolaño, “Estrela Distante”. Esqueceu-se do livro em minha casa, esqueceu-se de muitos livros em minha casa. Ou melhor, em minha casa deixou muita coisa: Muitos textos a meio ou muitos textos completos. Para ela, nada estava completo. Poemas escritos na parte de trás de um recibo, nas margens apertadas de um flier publicitário, de uma agenda cultural, aproveitando a parte branca dos anúncios. Nas margens brancas do Ípsilon e do Expresso, que são curtas e não permitem o verso livre. Os textos desenvolviam-se numa caligrafia tosca, a que já me tinha habituado. Fosse a caneta vermelha ou ao lápis grosso que estivesse mais à mão. Transcrevi por completo um caderno cheio de poemas seus. Foram muitas outras coisas que deixou em minha casa.


Transcrevi o poema, como um paleógrafo atento e imparcial. Às vezes tive de usar uma lupa em forma de régua, para perceber se determinada letra era um “a” ou um “o”: Isso era importante porque muitas, eram criações de palavras novas. Transcrevia enquanto ouvia Bil Evans, música que associava sempre à sua chegada e à sua permanência em minha casa. Esquecia-me, muitas vezes, que estava com o Gmail aberto, em estado on-line, e era consecutivamente interrompido da minha função de paleógrafo. Então parecia que se abria o mundo de dentro rede: Várias pessoas que nos chamam e de que gostamos e que esperam isto e aquilo de nós.


O poema falava de gatos e fora escrito em Portugal, país onde viveu por quatro anos, como prostituta na cidade do Porto perto do Marquês. Imaginei o quarto da pensão cheio de livros, de camionistas e advogados que entram e saem, agora com outra brasileira ou ucraniana no seu lugar. Imaginei Maria Puig, a travesti, que em breve se tornava a Hermafrodita associada à cidade do Porto. Imaginei a gaveta cheia de preservativos, cuecas e soutiens vermelhos; Com alguns poemas no fundo escritos de forma desordenada entre um ou outro cliente. A pronúncia do Recife. O portátil sempre aberto no Messenger, com várias janelas de gente do Brasil a falar, antigas companhias, ou um ou outro cliente.
A guardar em Word, um anúncio publicitário a enviar para o jornal: “Maria – Hermafrodita – Marquês – 30 beijinhos” – Às vezes actualizando, dando mais descrições: “Gulosa, Morena, Faço tudo”. Depois um número de telemóvel que era só usado para as marcações.
Imaginei todas as conversas que ela deixou na minha memória. Pensando onde estaria neste momento. Num avião, num voo Rio-Lisboa, ou morta no fundo do poço como acontece a alguns travestis europeus, perseguidos por um bando rapazes da vida e com pouca sorte, de extrema-direita ou sem qualquer ideal. Um ou outro grupo a quem correu pior a noite.
Mas havia uma certa segurança na vida de Maria enquanto esteve no Porto. Tinha a protecção de muitos e era prostituta de luxo, signifique essa palavra, seja o que for.


Perdia constantemente os cadernos cheios de poemas. Deixava-os numa mesa de café, num clube, no cabeleireiro, enquanto atendia uma chamada no telemóvel, deixando-os em cima da mesa. Daí a minha necessidade de registar tudo o que deixou escrito aqui em casa. Salvaguardar pelo menos essa parte da sua produção.
Cada dia, como um arqueólogo da escrita, descobria coisas novas, um poema nas margens de um livro de Pavese, nas traseiras de um jornal desportivo, de uma revista cor de rosa, nas colunas de um desdobrável do supermercado. Copiava o que estava escrito na sua caligrafia tosca, fosse aquilo a letra vermelha ao lado da fotografia de uma actriz famosa, de um jogador de futebol, a quem também tinha rabiscado os calções, ou feito uma tatuagem nazi com a bic azul. Tudo isso passava a computador, sem qualquer interpretação. Limitando-me a registar, segundo normas específicas de transcrição, que seguia rigorosamente: documento que havia pendurado num painel de cortiça ao lado de computador. Ouvindo sempre o mesmo disco que associava à sua vida em minha casa.



Aqui fica a útil transcrição de “Ode menor”

................................................................................


Ode menor (Gato único em queda*)
Maria Puig

If my pillow could talk, imagine what it would say

Nina Simone


*

Um jardineiro muito curioso, acabou de plantar margaridas e girassóis, depois pousou os instrumentos de jardinagem e caminhou em direcção a casa. Não encontrou o caminho de regresso a casa, e percebeu que estava no fundo do mar. Mandou os séculos em espera sentarem-se, nas cadeiras do jardim. Os séculos olharam-se ao espelho e viram um gato negro de olhos verdes. Viram-se reflectidos cheios de espuma. O jardineiro contou-lhes três histórias e eles adormeceram. Não se sabe se o seu sonho foi o de uma nova era, mas quando despertam tinham os olhos cheios de azul e alegria subaquática. O jardineiro bebeu aguardente de anémona marinha e adormeceu. Todo ele espera subaquática e monólito aceso. Acordado por um tubarão martelo ou um peixe espada, regressou para o seu jardim e não para casa.


*

Vi várias coisas de cristal que confundiam poesia e prosa e que eram também eu própria; Confundiam também noite e dia, vida e morte, homem e mulher e eram hermafroditas como todos os milénios a vir.
Vi essas coisas de cristal a olharem-se ao espelho, a porem gel com as suas mãos peludas. Pagavam-me. Penteavam-se com o orgulho de um ditador asiático já morto, que escrevia poesia nos anos oitenta e que escrevia poesia nos anos noventa. Governador de um país de nome estranho, que escrevia livros de poemas que eram de leitura obrigatória na quarta classe e que todos os meninos do país acabado em “ão” deviam recitar: Três poemas escolhidos pela professora, no início e no fim de cada aula, antes do hino nacional e depois do hino nacional. Mandou construir várias estátuas suas em ouro que ocupavam toda a capital.
Vi todos os gatos que te morderam o pescoço fino. Perversos e queridos dentro das galerias da piscina ou do inferno - Ouvi o que eles te diziam, os ossos finos que te partiam: Gatos escritores e contabilistas que me ligavam às quatro da manhã ou cinco da manhã, com uma paciência de girafa. Gatos que me fodiam na pensão de manhã e me fodiam na pensão à tarde e me fodiam à noite e nos dias seguintes, como se fosse um dia único feito de silicone - Um gato único, num milénio cheio de cio. Gatos advogados, gatos camionistas ou montadores de andaimes que poupavam todo o mês só para me foderem. Trinta euros que deixavam e não gastavam em vinho ou na alimentação dos filhos. Camionistas, empresários, traficantes, professores de informática, gatos divorciados que me pagavam em droga.
Um gato único de olhos verdes e inchados pelo cio, como se olhasse para dentro e para fora ao mesmo tempo (E nisto lembrei-me de Battaille, do seu olhar estrábico; E de me dizeres que os estrábicos são os mais inteligentes e a maior parte das vezes sobredotados, porque a própria natureza já lhes deu um olho para cada lado, uma visão múltipla, ou mais abrangente, reconhecida pela ciência). Jorge Luís Borges também o era. Nessa altura deste-me uma lista de mais de dez autores estrábicos. Nunca nenhum estrábico ganhou o Nobel, dizia o início da lista.

*

O gato parecia que olhava para um aquário de peixes dourados, mas o aquário estava dentro de si, então o gato olhava ao mesmo tempo para dentro e para fora como um vento confuso, ou um tornado que perdeu a direcção e se come a si próprio: Os peixes dourados de fora, como eu, e os de dentro; Sei de um museu de História Natural em Toronto que possui um cavalo-marinho hermafrodita conservado em etanol. Foi descoberto por uns pescadores do Quebec em 1914, e que os biólogos acharam por bem conservar. O gato único já tinha ido a esse museu e tinha pago caro para ver o cavalo-marinho, que guardou na memória e que depois apagou da memória, ou seja: A reforçou. Na memória do gato já não era só um cavalo-marinho hermafrodita, era mais do que isso. Um gato único que descobriu a América e me possuiu – Um gato que lê romances cor-de-rosa e joga pólo aquático ao fim da tarde. E depois me liga, depois do treino, ainda no balneário, pergunta se eu estou disponível. Desliga o telemóvel, vem ter comigo. Liga o telemóvel, deita-se com a mulher. Volta a ligar o telemóvel em silêncio. O seu nome aparece depois na necrologia do jornal e nos registos electrónicos do banco. O seu nome desaparece depois. O jornal extingue-se, extingue-se o uso do papel como veículo de informação, extingue-se a necessidade de suporte. Desaparece toda a memória do cavalo-marinho e do gato.

*

Gatos que metem processos e os ganham ou os perdem. Que pedem às suas avós para lhes cozerem a camisa ou para lhes cozerem os calções da equipa.
Pedem um café e possuem-me rápido e automaticamente como um avião que passa,
Gato único que desenrola todos os fios. Faz deles um só, Fio ou antena. Gato que se esqueceu da sua cara e passa sem memória:


Já não gato, mas só cio
que escreve e abraça
Cio que precisa de calor e de
Chover: tropical na queda e na descida
amigo na chegada e na partida


Cio que é fumo industrial e Gelatina de hormonas que nutre as plantas

Gatos que têm um ataque cardíaco por segundo e
se vêem para cima da novela que mais gostam, deixando
que uma marca de esperma cole duas ou três páginas de uma Obra Prima da Literatura Universal, de um trabalho de uma vida de um escritor esquecido.
Para que a leiam e construam por cima (incorporando o passado)

Gatos de montanha e gatos urbanos que desdobram e cozem os séculos para com eles fazerem uma mini-saia vermelha. Que violam de manhã e à noite (analmente e não só) os professores de História Clássica e os professores de História Contemporânea – Gatos que me possuem ao som de Nina Simone e de Dina e que vêem com os olhos a piscar, o festival da canção. Gatos-Cio que vestem a História Universal, vermelha e curta,
Que saltam milénios e telhados só para me possuírem e serem já Coisa única:

Homem e mulher, dia e noite, vida e morte – Em tudo hermafrodita, à chegada e à partida, a vontade de ser toda a coisa ao mesmo tempo – Um milénio hermafrodita e de sexo curto, com o seu bikini vermelho a mergulhar, a sair da piscina mais fresco – A possuir-me e a esquecer-me: Múltiplo.



Maria Puig

Nuno Brito