sábado, 21 de novembro de 2009

Um choro de criança ou o caso da casa que queria ser reconstruída




"Bem sabes que estou morta
vai para três anos
quando cairam as traves
os telhados nos tectos
os tectos aos bocados no soalho."

Abriram-se as portas da casa
de noites negras e redondas.
os redemoimhos entraram.
encontraram os lugares do vento
ficaram, qual alicerce fúnebre.

As cortinas habitam, inquilinas
no ar cinzento, esventrado, dentro,
fora conversam com as gárgulas
guiam os dias de segredos pardos.

Na velha cozinha, na mesa de chapa,
jaz deitada a chaminé,
a chaminé de um velho samovar,
escuro, no pouco brilho do esmalte,
soçobrado.

Na névoa fina a casa chora
chora como choram as crianças
convulsa de soluços, sem saída
agitada, sem futuro.

Por ali, quando passo, cissia:

"Viajante, caminheiro, amigo
se passares por mim não olhes,
não provoques os destroços brancos,
as caliças nas escadas.
como bem sabes estou morta
vai para três anos."

Há palavras que nos beijam


Sonia Delaunay "Projecto para quatro xailes"


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperançar louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'