domingo, 22 de abril de 2012

a carta que te escrevo ( VII )

escrevo-te esta carta para que a guardes
palavras de poema e setas de versos, acesos
sensíveis e de olhos abertos pelas costas da manhã
vou-te contar, começa assim:

se me olhasses neste preciso momento seria uma folha singular
de linhas ainda desertas e palavras por encontrar –
se me olhasses neste preciso momento seria uma caneta na mão
uma mão à espera das letras que se acumulam nos braços
e que antes de escrever, pousa um pouco, para pensar devagar
para escolher o deslize certo da tinta que te possa tocar no ombro
na face, à volta do rosto, nos cantos dos lábios -

 e um grande desejo
que te possa adormecer numa concha de mar e num açúcar de sonhos
com um pequeno fragmento de raiz de gengibre
 que queime um pouco e se transforme, num remédio bom –

 escrevo-te esta carta para que a guardes
quando as palavras se abrem de uma forma cada vez mais clara
querendo habitar , sempre, nesse lado esquerdo, sempre, nesse lado esquerdo
sempre de dias amarelos, de pólen sobre as asas
junto de jardins, junto de flores, junto de outros lugares –

 sabes que às vezes deixo de ver a mão, a caneta , a linha vazia e branca
e vejo círculos
círculos, uma girândola ininterrupta, girando com muita força
na circunferência dos olhos, e doem-me muito as luzes
luzes de sonhos, luzes iluminadas nos nossos nomes
na ausência imerecida de não caminharmos juntos –


círculos, círculos, e vivemos dentro dos sonhos reflectidos
na surpresa
como se corrêssemos á volta de um tronco, e de repente um parasse
e invertesse o sentido para nos tomar nos braços –

a surpresa
e surpreende, surpreende e sabe bem, imensamente, esse momento
ainda de batimento acelerado mas de sossego -

o sossego, a paragem, o ter o corpo encostado
o momento aconselhado para ouvir os pássaros e esquecer
esquecer a desordem dos espaços, das praças
a sólida frontaria de edifícios de cartão, roídos e em ruínas
no superficial de não serem essenciais, nem de importância acrescida
para esse abraço sossegado
por debaixo das árvores –

 sossego, um sossego de búzio e de mar –

muitos falam das cidades derretidas nas palavras fortes
em rios de carmim a descer montanhas e a invadir os pneus dos carros
de um apocalipse mortal e bonecos de metal que pensam com parafusos
em circuitos nano e em óleos fundamentais, um quadro sem o belo
de universos ainda mais desregulados
na ordem do cronómetro que tão certo marca o tempo e escreve
escreve acertadamente
horas de escrever e horas de acordar –

não são esses os dias de que te falo nesta carta
nem nunca me ouvirás delirar pelos buracos negros, pelos dias apagados
 não são esses os desertos que procuro encontrar
o meu desejo é a onda, sim , a onda e as ondas do mar
uma febre de paisagens quando o crepúsculo arde
as nuvens na frente dos olhos com os céus parados
e escutá-las
na semelhança de por vezes serem brancas e por vezes verterem águas
mas sem nunca esquecer o belo
o ombro, um cuidado, um carinho de almofada
e a onda, e as ondas do mar –

 elevo por vezes as palavras nesta espuma branca que abarca o areal
e não quero falar alto, não te quero acordar
nem quero que alteres o sono
um sono smooth de jazz, de jazz, um embalo, sim, um embalo
uma canção de embalar
para que também os meus olhos se fechem
devagar
na lentidão de versos soltos, devagar
na percepção de os dizermos juntos
para adormecer, para acordar
devagar
para adormecer, para acordar
devagar –

 estou quente, muito quente, cheio de febre de lugares, com os olhos trémulos de pressa
 uma pressa de adormecer
vejo na girândola uma gôndola
 uma gôndola parada numa estrada de cais, aguarda
vejo claramente Veneza
parámos dentro de um bar...

 escrevo-te esta carta, a nº 7, para que a guardes
para que atravesse o tempo
como um grande silêncio num fim dum poema
quando as palavras nos enchem tanto que não temos mais espaço
e calamos, e calamos tanto
e devíamos falar, mas sonhamos –

sinto uma maré vaza dentro dos meus olhos
e uma fuga para dentro, sinto-me adormecer
afasto os últimos arbustos para te ver chegar –

adormece,sempre, adormece em sossego
envio-te os meus braços vestidos de vento morno
um sopro de versos doces
e milhares de anjos que protejam o teu sono –

e beijo-te
beijo-te muito, boa noite –