quarta-feira, 5 de maio de 2010

Cruzou por mim veio ter comigo numa rua da baixa


(retirado da internet)

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).
Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
E' estar ao lado da escala social,
E' não ser adaptável às normas da vida,
'As normas reais ou sentimentais da vida -
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lagrimas,
E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.

Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-se com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se ha uma razão exterior a ela?

Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
E' ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
E' ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.

Tudo o mais é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki.
Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.

Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.

Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lagrimas (autenticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha olhos tristes por profissão

Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!

E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.

Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!

Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!

Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.

Álvaro de Campos

Fragmentos de um ensaio escrito de joelhos

Eu considero o amor dentro de uma genuflexão, “esa genuflexión máxima del arrebato”, como escreveu um dia Diego Medrano (Oviedo, 1978), num livro que tem muito de coisa genuflectida, a começar pelo título El hombre sobre las rocas e a acabar numa espécie de nota constritiva, pseudo-explicativa e testamentária, o último poema “Despedida y cierre”.

Todo o livro de Medrano é percorrido por um movimento violento de queda (e mais: pela suspeita de que o tempo é uma força essencialmente vertical, num só e decisivo sentido, ignorando alguma relatividade defunta por delicadeza e alguma gravidade crítica por vício), incorporando uma certa “atitude atlética de cair / sobre a causa das coisas contraproducentes / primeiro”, como escrevi num texto não muito longínquo, que caía ao meu lado também, curiosamente numa repartição do erotismo de cujo nome agora não quero lembrar-me.

Morto por vestir os andrajos de um maldito na era do capitalismo tardio e da realidade rarefeita, Medrano aparece na capa do seu livro de óculos escuros (icárico ma non troppo, diríamos), com ar de boémio condescendente, uma mistura de lobo iluminado pelo uivo transparente da epístola, com as multidões apagadas dos últimos dias aos seus pés, personagem de um telefilme policial dos anos 80, entre o tédio e a dinastia de princípios, a pose e a poesia autodestrutiva, a noite analfabeta e os recados do rancor.

Mas não é da marca Medrano que eu quero falar. Comecei por dizer que o amor que eu considero, considero-o dentro de uma genuflexão, de uma aterragem forçada de joelhos no áspero chão do virtuosismo, tal como acontecia na infância, quando tropeçávamos, ainda em terra firme, e como era bom tropeçar, cair de joelhos, sangrar e fazer um curativo minúsculo com direito a vínculo perpétuo com a vida. Hoje já não damos conta que caímos. Porque a excepção é não cair, habituamo-nos à queda. Também não sentimos o tempo e o tempo tem atrito amarelo e dá nas vistas. Enfim. Eu quero é voltar à genuflexão, depois de ter caído do início do texto até aqui, mas dou-me agora conta que já não é da mesma genuflexão que eu quero falar, nem mesmo daquela que queria falar quando comecei esta frase genuflexa. Going on.

Medrano, no poema 25, que fala de genuflexões, arrebatamento, lobos, céus e infernos (deus sabe o quanto Blake se fartaria de o reprovar se um dia o tivesse de aceitar na sua lista de amigos do facebook), Medrano fala também com o desconhecimento de causa daquele que, uma vez consciente de que cai, não consegue prever o fim, o limite da queda, a fronteira entre a queda e a sua consequência indízivel, e, por isso, antecipa-a no gozo insalubre das metáforas e no silêncio escorregadio dos mitos. Antes dessa “genuflexión máxima del arrebato”, Medrano escreve: “Desconozco si nuestras vidas están llamadas a convertirse en literatura por encima de la normalidad, del sentido común (…)”. De alguma forma, Medrano convence-se e pretende convencer-nos de que:

1. A literatura é uma excepção à banalidade da queda (a literatura está “por encima de la normalidad” e a normalidade é cair)
2. O sentido comum não é literatura, logo exerce o seu direito de queda.
3. A vida (sentimental) situa-se algures na suspeita (ele desconhece, não ignora) entre a normalidade da queda e a excepcionalidade da terra firme, que é uma espécie de enfermaria ilegítima do sentido comum, cheia de profissionais competentes que tratam das nódoas negras e das feridas que a queda contínua provoca nas nossas microscopias para sempre.