terça-feira, 5 de outubro de 2010

ALGUÉM ME REPETIA


Gerhard Richter


A voz é grave e rouca.
Na mesa ao lado, chora uma criança que não conhece a memória.
Há uma voz quente que um dia me falou ao ouvido.
Dizia-me.
Tentava explicar-me os ventos, as marés,
o terno refúgio dos dias que estão longe.
Eu julgo que dormia aninhada, com os olhos brilhantes e o coração atento.
Talvez tenha sentido uma mão leve a percorrer-me as costas. Talvez devagar.
Fazia movimentos circulares. Talvez tentasse mostrar-me o caminho.
Dizia-me.
Eu não compreendi porque vivia como se recordasse já.
Não há tempo para o presente quando se está fechado na memória.
Disse.
Não vivia do passado. Não era isso que tentava dizer: Havia em mim a certeza
da recordação futura - como a espiral de onde não se sai.
A voz começou a delirar em círculos. Ofendidos talvez, os círculos.
Eu estava no centro desse som que baixava como se a qualquer momento
pudesse abater-se sobre mim. Sem me sufocar talvez.
Dizia. Dizia.
A linguagem tornava-se cada vez mais estranha e imprópria.
Como nos sonhos em que se procura gritar
talvez agitasse os braços levemente.
Mas nenhuma voz nos cabe nas mãos, nem nas palavras.
Eu habito a quente loucura do poema sólido que em mim se concretiza.
Eu habito a quente loucura do poema sólido que em mim se concretiza.
Alguém repetia.
Mas a voz era cada vez mais líquida e talvez não coubesse no poema.
As mãos arrastavam o corpo para o lugar onde a minha solidão
talvez recordasse a voz. Dizia-me. Para que mais rápido se interrompesse
o dia, para que mais rápido se recordasse
a vida. Eu ia rolando sobre a cama como uma criança em direcção ao abismo.
As mãos voltavam a trazer-me para o centro do círculo.
No silêncio, perderia a consciência. São sempre as vozes que nos trazem
de volta. Talvez.
Era o dia em que me encostei à parede para olhar o círculo, a voz, as mãos.
Como se observasse aquela solidão.
E não houve nada que me pudesse dizer: Talvez.


Filipa Leal, in A Cidade Líquida e Outras Texturas

estes troncos cortados de redondo




estes troncos cortados de redondo mostram as veias
a resina sólida e aderente, o diâmetro pronunciado da circunferência.

aproxima-se a intimidade acesa de chamas e brasas
e assim se compreende o corte certo de lenhas
pedaços assim, despidos de ramos, pedaços
de muitas árvores e como se brandidas
de lâminas paralelas, serras afiadas, em blocos
na impossibilidade de refazer a imponência
a grande altura, de copas mais ou menos inclinadas.

não é saudável ver assim os veios dos pinheiros
os veios dos salgueiros, os veios das macieiras
as veias assim secas sobre a lage –

em pedaços as árvores não respiram
formas inertes, sem asas, em geometrias
horizontais, por diâmetros grossos e finos
tristes, ao hibernar sem raízes.

num fim de tarde distante, sobre a serra
o crepúsculo coloca o agasalho
e cobre a manga curta de ideias largas
um azul de ganga coçada, um ténue rosa
sobre nuvens embaraçadas de algumas sombras.

pensa-se como é grande o céu
como é fresco o bosque e afinado o riacho
que canta sobre um pequeno salto de margens
e como assim belas e altas, de grandes almas
se erguem as árvores antes de cortadas.

quando se recua ao tempo sem incêndios nos pinhais
caem sobre os olhos quadros, velocidades rápidas
de fotografias a preto e branco, enchendo os anos
tornando as memórias de uma sobriedade antiga
uma invasão de sensível de boa natureza
e nada desmorona e tantos os encantos –

em pleno campo, longe de um circular cinzento
não se veste o horizonte de ruídos
rodas de borracha, buzinas, rodilhos de gente
e sobre as folhas em turbilhão
falam os pássaros
e os frutos da surpresa dos castanheiros
ouriços, muitos, de verde claro
que chocalham pequenos gumes afiados
e lembram, o regresso tão próximo
à Idade Média das cidades –