quinta-feira, 13 de agosto de 2009

O verdadeiro válido sentido tão simples



Dali "Sonho causado pelo voo de uma abelha em redor de uma romã um segundo antes de acordar" 1944


O verdadeiro válido sentido tão simples:
despertar na aurora calma lançando
os braços como setas no ar morno
de um dossel de cama desfeita
sustendo o olhar fechado de um encontro
de uma mão, dedos, um outro corpo ainda morno
a alça inclinada, o assomar deitado de um seio
janela interior de um desejo macio de algodão
acordando o lobo, o capuchinho, os lábios vermelhos
que se estendem em cima da mesa ao pequeno almoço
de laranjas, pão centeio, o escorregar da manteiga
um pouco de doce
mas não tão doce quanto o primeiro exercício de juntar
os rostos brasindo as cores de raios quentes da praia;
morenas e verdes de ramos nos desenhos de uma flora
nas soltas camisolas caídas junto ao lago branco
toalha de felpo na hora de uma chuva imersa de espumas
no descolar de gotas: um jogo morno de dois corpos.

Válido, tão válido o sentido, sem teorema
como o voo elegante de uma luz de pirilampo
um canto feiticeiro
uma candeia acesa
a fogueira que chama.

noite





Mas a noite ventosa, a noite límpida
que a lembrança somente aflorava, está longe,
é uma lembrança. Perdura uma calma de espanto,
feita também ela de folhas e de nada. Desse tempo
mais distante que as recordações apenas resta
um vago recordar.

As vezes volta à luz do dia,
na imóvel luz dos dias de Verão,
aquele espanto remoto.

Pela janela vazia
o menino olhava a noite nas colinas
frescas e negras, e espantava-se de as ver assim tão juntas:
vaga e límpida imobilidade. Entre a folhagem
que sussurrava na escuridão, apareciam as colinas
onde todas as coisas do dia, as ladeiras
e as árvores e os vinhedos, eram nítidas e mortas
e a vida era outra, de vento, de céu,
e de folhas e de coisa nenhuma.

Às vezes regressa
na imóvel calma do dia a recordação
daquele viver absorto, na luz assombrada.

Cesare Pavese, in 'Trabalhar Cansa'
Tradução de Carlos Leite